Geral

O cinema de Carlos Reichenbach nos Anos 80*

Por Fernando Oriente

Carlos Reichenbach é um dos mais emblemáticos cineastas-cinéfilos que já existiram. Sua paixão pelo cinema foi elemento fundador da sua obra. Carlão amava os filmes, todos os filmes. Não tinha preconceitos nem pré-julgava nenhum gênero, adorava o cinema em sua totalidade. Apreciava desde as obras mais sofisticadas intelectualmente, mais radicais e rigorosas em questões de forma e conteúdo até os longas mais obscuros, os deliciosos filmes vagabundos, esses que são cheios de explosões de criatividade, talento, capacidade de superação e improviso por parte de cineastas que contavam com orçamentos baixíssimos e tinham que trabalhar dentro dos códigos do cinema de horror barato, dos excessos de sangue, sexo, nudez e violência. Foi essa visão aberta do cinema, aliada a um talento nato, que fez de Reichenbach um dos mais viscerais e talentosos artistas e pensadores que o cinema já teve. Carlão via os filmes, a arte e o mundo ao seu redor com os “olhos livres”, expressão que adorava usar com frequência.

Carlos ReichenbachComo diretor, fotógrafo, roteirista, músico, escritor, professor ou crítico, é a partir dos anos 80 que ele passa a viver do cinema e da arte e construir uma carreira ímpar. Momento no qual passa a realizar grandes filmes, sempre com sua marca característica de encenador primoroso e visceral, que fundia gêneros, trabalhava sob condições precárias e delas tirava a capacidade para, dentro das limitações impostas, compor obras de uma complexidade extrema, que traduziam o mundo a sua volta, com suas questões existenciais, políticas e estéticas. Realizava tudo isso de maneira direta, orgânica, com sinceridade e paixão únicas. Subvertia convenções e fazia obras que dialogavam diretamente com o público, compostas com uma mise-en-scène primorosa que mantinha os dramas e os discursos na epiderme de seus filmes, na cara do espectador, dentro de um frontalidade desconcertante que continha, ao mesmo tempo, uma complexa rede camadas, texturas e subtextos que permitiam leituras das mais variadas.

Nos anos 80, Carlos Reichenbach dirigiu três obras-primas: ‘O Império do Desejo’ (1980), ‘Amor, Palavra Prostituta’ (1981) e ‘Filme Demência’ (1985), além do poderoso ‘Extremos do Prazer’ (1983) e do belíssimo ‘Anjos do Arrabalde’ (1987). E é partir de seus filmes nos anos 80 (mais especificamente desde seu primeiro grande trabalho, ‘Lilian M – Relatório Confidencial’, feito em 1975) que Reichenbach passa a consolidar e aprimorar seu estilo. Um diretor que, devido ao imenso repertório intelectual, a sua formação literária e seu amor aos livros e ao profundo conhecimento cinéfilo que possuía, utilizou de maneira criativa e particular uma infinidade de referências e de influências para construir um cinema particularíssimo, repleto de marcas pessoais, mas que não se mantinha preso a um ou outro estilo. Fez de melodramas a ensaios existencialistas, de dramas políticos a crônicas do cotidiano, da vida urbana, do universo proletário. Carlão fundia em um mesmo filme o sexo, o humor corrosivo, elementos fantásticos, as dores da existência, as crises pós-existencialistas de intelectuais confrontados com o fracasso ideológico, o dia a dia banal de trabalhadores, de tipos que viviam à margem da sociedade, de poetas melancólicos sem espaço para se expressarem e de jovens rebeldes sem rumo que vagavam pelas bordas de um país subdesenvolvido que vivia os últimos anos de uma ditadura e ainda tateava num processo capenga de construção identitária e na tentativa de consolidação de uma democracia.

Reichenbach construía seus filmes com uma notável habilidade na composição dos quadros, em que cada sequência era pensada e decupada de maneira funcional e que permitia que a narrativa e os dramas fossem consolidados dentro de cada cena. A evolução narrativa era amplificada pelo vigor com que Carlão compunha seus planos isoladamente, na capacidade de imprimir significados e abrir arestas evolutivas dentro de cada composição de quadro. Ele colocava personagens e dramas dispostos em cena para que a intensidade dramática e as modulações de seu discurso ficassem sempre em destaque. Reichenbach tinha uma noção das potências da imagem que poucos diretores alcançaram. Tinha um domínio completo de seus personagens, de como criava as interrelações entre seus tipos e de como desenvolvia as tensões e modulações dramáticas dentro da construção narrativa.

A câmera do diretor trabalhava em função constante das sensações que ele queria provocar com cada take e conduziam o olhar do espectador exatamente para onde desejava. Desde os posicionamentos e enquadramentos até os movimentos de câmera e dos personagens dentro do quadro, bem como toda a relação com o fora de campo, e os cortes eram compostos com o esmero de um artesão. Porque sim, Carlão era um artesão da imagem, bem como um encenador que dominava por completo toda a matéria cinematográfica, toda a gramática do cinema. Por mais sofisticado que fosse o trabalho de Reichenbach como diretor, ele nunca deixou que o preciosismo exibicionista ou o virtuosismo oco interferissem na construção de seus filmes, sempre repletos de uma auto-ironia que ampliava a força do seu cinema. Seus longas dialogavam diretamente com o público, todo e qualquer recurso que ele usava era para potencializar o poder dos dramas que encenava e dos discursos que compunha por meio das múltiplas camadas de suas obras.

O cinema de Reichenbach era composto por uma relação passional com seus personagens, por mais variados que fossem seus tipos, eles eram tratados pelo diretor com uma proximidade carinhosa, ele compreendia seus personagens, partilhava de seus dramas e, em momento algum, desprezava suas ações, por mais que essas fossem condenáveis. O amor que Carlão tinha por seus personagens faziam deles tipos bem mais interessantes, complexos dentro de seus potenciais e limitações demasiadamente humanas. Carlos Reichenbach era um cineasta dos valores humanos, das dores e alegrias, um apaixonado pela mulher e pelo homem em suas qualidades e defeitos.

Os longas de Carlos Reichenbach nos anos 80

A década de 80 pode ser considerada a mais fértil na carreira de Carlos Reichenbach, o período em que ele realizou suas melhores obras e desenvolveu um projeto de cinema pessoal a partir da relação dos filmes entre si e em analogia ao momento sócio-político e cultural em que o Brasil estava mergulhado. Não que os longas realizados antes dessa época, como ‘Lilian M’, e obras que Carlão produziu depois como a obra-prima ‘Alma Corsária’ (1992) e sue último filme, ‘Falsa Loura’ (2007), entre outros, não estejam à altura da grandeza da sua produção na década de 80.

O cinema de Carlão, por mais sofisticada que sejam as possibilidades de leituras, por mais complexas que sejam os conteúdos de suas obras e por mais rigorosa e perfeccionista que seja sua encenação, sempre foi um cinema de alcance popular e recheado por um discurso humano e universal.

Império do Desejo

‘Império do Desejo’

Reichenbach começa os anos 80 com a realização de ‘Império do Desejo’, um de seus filmes mais sofisticados e complexos. Em meio a muito sexo, nudez e sequências cômicas, Carlão insere um discurso existencial e político que fazem desse seu filme mais godardiano, com direito a sequências que remetem diretamente aos filmes mais políticos e provocativos de Godard. Aqui estamos em meio à alegoria e aos simbolismos. Carlão reúne uma série de personagens inusitados em uma casa de praia isolada e a partir de encontros e desencontros cria situações em que discute ideologia, existencialismo, novamente a política e chega a propor uma utopia como forma de vida capaz de legitimar os personagens como indivíduos autônomos e livres. Utopia que sempre foi uma forças motoras de sua arte e de sua personalidade.

‘Império do Desejo’ é um filme-manifesto, em que Carlão usa de uma liberdade de encenação desconcertante, que beira a anarquia, para amarrar tudo em um discurso dialético no qual questões filosóficas se confrontam com tópicos como o feminismo, a poesia, as doutrinas de esquerda, a especulação imobiliária, a sordidez do capitalismo e a negação do estilo de vida ordinário que a sociedade tanto valoriza. O filme usa personagens criados em cima de clichês para desconstruí-los por meio da evolução narrativa e da encenação visceral com que o diretor reorganiza e subverte os dramas.

O filme pode ser lido como a possibilidadedo escape por meio da utopia, da fuga física e emocional do mundo que aprisionava os personagens. Não existe ingenuidade nesse mundo idílico que Carlão constrói no filme, o que temos é a presença das liberdades de mise-en-scène como probabilidade de reinvenção e negação do mundo. São as possibilidades infinitas do cinema, que nas mãos de um cineasta com o talento de Carlão, são capazes de reinventar a realidade ao mesmo tempo em que critica de forma assertiva tudo aquilo que o diretor despreza na vida real.

Na sequência, Carlão realiza um filme seminal: ‘Amor, Palavra Prostituta’. Esse longa, feito graças ao fato do diretor ter ganhado negativos em 35 mm que estavam vencidos e com baixíssimo orçamento, talvez seja a mais pura expressão do conceito do cinema de Reichenbach, da sua capacidade de tirar de condições extremamente precárias o material para criar obras poderosas e realizar filmes excelentes. A precariedade como elemento e fator criativo.

‘Amor, Palavra Prostituta’ conta com quatro personagens centrais e bruscas reviravoltas narrativas e dramáticas, aborda temas caros ao diretor como as complexas e paradoxais relações entre homem e mulher, a misoginia, o desejo reprimido, o sexo como autoafirmação identitária, a carência emocional, a frustração existencial provocada pelas derrotas ideológicas que tanto motivaram um grande número de brasileiros ao longo dos anos 60 e 70 (na resistência ao regime militar e nos sonhos de um país livre e progressista a ser construído), os efeitos nefastos da ditadura e do capitalismo capenga de uma nação submetida há anos a um regime militar de direita voltado exclusivamente aos interesses das elites e do capital estrangeiro, a questão da anulação e do massacre da mulher – sempre relegada a segundo plano, objetificada e explorada dentro de um machismo patológico que Carlão via como um dos fundamentos da sociedade brasileira – e na constante incerteza em relação ao futuro que guiava a vida de todos no Brasil.

Amor, Palavra Prostituta

‘Amor, Palavra Prostituta

Tudo isso aliado a um tecido político onipresente, como se Reichenbach fizesse de cada sequência, dos dramas e de suas consequências, um estudo sobre o papel político do homem comum no Brasil na entrada da década. A política para Carlão está nas ações e nas inações, na incapacidade de ser de seus tipos, na vida alienada de uns e na dor resignada de outros, na exploração diária que os personagens sofrem bem como nos momentos de ternura que servem como abrigo a um meio opressivo em que o sujeito político não tem voz nem chances de se autodeterminar. Carlão sabe que os reflexos da política na vida dos cidadãos estão presentes em suas impossibilidades, na alienação de projetos de sucesso banais, na maneira como as pessoas usam, manipulam e descartam os outros. Ela está presente nos gestos, no sexo desesperado, no desejo incapaz de ser contido, na frustração e na aceitação resignada da derrota, na banalidade da ganância imediatista e na mediocridade de um cotidiano de tédio, bem como nas breves alegrias que não passam de instantes fugazes de escape.

Em ‘Amor, Palavra Prostituta’, Carlão faz um cinema típico da Boca do Lixo, mas com alto teor de complexidade e uma gama de camadas de leitura e interpretação. Trabalha dentro das limitações características da Boca, insere alta carga erótica à trama e abusa, com muito talento e em comunhão perfeita com o discurso que constrói ao longo do filme, da nudez dos corpos e da visceralidade das cenas de sexo. Usa a cidade de São Paulo de maneira orgânica, abusa da arquitetura caótica, da sujeira e do movimento ininterrupto e alucinado de uma cidade que foge de qualquer tentativa de controle e explicação por parte de seus habitantes. São Paulo é o reflexo do caos interno e das incertezas dos personagens.

Carlão dizia que teve que fazer de ‘Amor, Palavra Prostituta’ um melodrama por causa dos negativos vencidos, que puxavam a paleta de cores para o verde, elemento que exigia que as imagens seguissem o tom melodramático das tonalidades da película. Mas o melodrama é terreno fértil para Reichenbach, é um gênero em que ele pode potencializar as cargas dramáticas de seu discurso existencial e de seus comentários políticos céticos, bem como a força e a veemência de sua encenação. Além de usar referências de um de seus cineastas favoritos, o italiano Valerio Zurlini.

Em ‘Amor, Palavra Prostituta’, Carlão explora a intensidade das emoções dos personagens, encena de maneira direta as explosões de dor, desejo e carência dos dramas. É um dos filmes em que Reichenbach mais se aproxima da frontalidade da mise-en-scène de Samuel Fuller. Como na crueza presente na sequência dos efeitos traumáticos de um aborto mal feito ou na maneira como um casal em crise se agride com uma crueldade extrema, além da forma como filma os corpos nus e as cenas de sexo sem nenhum pudor e da forma mais direta e crua possível (aliás, tratar o sexo como elemento vital da vida e força motora dos indivíduos é uma das mais marcantes características do cinema de Reichenbach, que filmava o sexo da maneira mais objetiva e explícita possível). Como dizia Fuller, o cinema é um campo de batalha e é exatamente isso que Carlos Reichenbach faz dessa obra-prima que é ‘Amor, Palavra Prostituta’. Cinema visceral, pulsante e de uma brutalidade dramática desconcertante. Ao contrário de ‘Império do Desejo’, onde havia a chance do escape por meio da utopia tornada real pelas possibilidades ilimitadas do cinema, aqui os personagens não têm saída, são massacrados pela sociedade que os aprisiona e anula suas individualidades.

Extremos do PrazerSeu trabalho seguinte, ‘Extremos do Prazer’, novamente se utiliza das exigências de produção do cinema da Boca (o sexo e a nudez) e, mais uma vez, Carlão parte desses elementos para continuar a desenvolver seu discurso cinematográfico, sua encenação visceral e abordar os temas que o inquietavam e estimulavam e faz mais um filme extremamente pessoal em que discute e explora tudo o que deseja, mesmo respeitando os códigos impostos à produção do filme. Temos novamente personagens isolados em uma casa de campo. Tipos traumatizados ou alienados, de diferentes posições ideológicas que entram em conflito para que Reichenbach possa tecer seus comentários político-existenciais e por meio do choque emocional e físico dos personagens, desconstruir seus tipos e expor de maneira direta as contradições humanas, as incertezas de um país incapaz de encontrar um rumo e o vazio existencial do homem contemporâneo.

‘Extremos do Prazer’ segue a linha da fuga da cidade grande como Carlão tinha feito em ‘Império do Desejo’, mas aqui a utopia e as possibilidades de escape e autodeterminação são, como em ‘Amor, Palavra Prostituta’, massacradas pela realidade crua de um mundo que não dá chance para o ser humano se livrar de sua pequenez diante a máquina trituradora da sociedade. Novamente temos elementos de melodrama que surgem em primeiro plano e o ceticismo ácido de Reichenbach volta a ser posto no centro dos dramas e nas conclusões narrativas. Uma obra extremamente competente dentro daquilo que o diretor deseja construir. É um filme que dialoga com aquilo que Carlão havia feito antes, de maneira mais seca, mas nunca desinteressante ou sem o vigor típico da obra do cineasta.

Em ‘Extremos do Prazer’ temos uma das mais extraordinárias e poderosas digressões já realizadas por Reichenbach. Uma sequência em que a câmera, em constantes travellings, acompanha os personagens sendo dublados pelo próprio Carlão, que assume o ligar de fala pela boca dos personagens e com sua própria voz discute e problematiza não só o filme como o cinema.

Em seu longa seguinte, em 1985, Reichenbach se liberta de certas exigências que os mecanismos de produção da Boca do Lixo impunham e faz talvez aquele que seja seu filme mais pessoal e existencialista até o momento: ‘Filme Demência’, mais uma obra-prima dentro de sua carreira.O longa é uma releitura do mito de Fausto, do escritor alemão Johann Goethe. Além de ser uma oportunidade para Carlão inserir sua paixão literária dentro de seu cinema, o filme é uma perfeita alegoria para os tormentos do homem dos anos 80, bem como de qualquer época. Reichenbachfaz de seu Fausto, um empresário falido recém-saído de um casamento fracassado, o arquétipo do homem contemporâneo que desmorona quando as falácias do capitalismo desabam e a precariedade da existência e a pequenez humana ficam expostas como cicatrizes existenciais abertas.

O Fausto de Carlão perambula sem rumo pela noite paulistana, entre ruas desertas do centro da cidade, botecos sujos, casas de strip-tease e cinemas fuleiros. Em meio a sua jornada por um tecido urbano decadente Fausto encontra Mefisto, que vem cobrar suas dívidas, e confirmar ao personagem o inevitável fato de sua queda, de sua condenação e da impossibilidade de redenção. Novamente Reichenbach faz um uso primoroso da cidade de São Paulo como personagem do filme. Carlão registra as ruas com toda sua sujeira, suas luzes difusas, sua desordem orgânica.

Filme Dêmencia

Filme Demência

A jornada de Fausto continua ao longo de ‘Filme Demência’. Ele encontra personagens do passado e por meio de diálogos, Reichenbach vai introduzindo o discurso existencial, político e social que a cada filme marcam mais seu trabalho. ‘Filme Demência’ mantém o mesmo vigor de encenação dos trabalhos anteriores do diretor, só que aqui ele se permite flertar com gêneros como o fantástico, o terror psicológico e a fábula metafórica. Cheio de simbolismos, composto de planos com maior independência narrativa em relação ao todo do filme, as sequências de ‘Filme Demência’ são significantes isolados que vão enriquecendo o discurso do filme em direção a uma série de significados possíveis e interpretações que Reichenbach faz questão de deixar em aberto.

‘Filme Demência’ é um longa sombrio, repleto de nuances e com uma maior contenção na explosão de sentimentos e sensações que vinham compondo o cinema do diretor até então. É o filme em que Carlão usa menos a frontalidade na mise-en-scène; aqui ele prefere a construção de climas e sugerir mais do que mostrar. É uma variação de estilo em sua obra, que por mais que se distancie esteticamente de seus trabalhos anteriores, serve como uma evolução natural dentro do desenrolar coerente e natural de seu cinema como uma obra em constante diálogo consigo mesma.

Em 1987, Reichenbach realiza ‘Anjos do Arrabalde’, um filme em que a periferia de São Paulo é o centro da dramaturgia. Carlão conta a história de um grupo de professoras de uma escola pública. Diferentes entre si, todas carregam traumas e esperanças, distintas histórias de vida que são retratadas por Carlão com um humanismo tocante. Suas vidas pessoais, fora do ambiente de trabalho, fazem surgir diferentes tipos em cena para contracenarem com as protagonistas.

Carlão faz um recorte de diversos tipos humanos, de diferentes classes sociais e níveis intelectuais. O choque de classes, o preconceito e as impossibilidades de concretização dos relacionamentos, bem como os conflitos e a precariedade do trabalho em um país subdesenvolvido, movem a evolução dramática do filme e novamente Carlão usa pessoas comuns, vidas ordinárias para fazer um microcosmo das relações sociais e da construção político-social da sociedade brasileira. Esse talvez seja seu filme de maior apelo popular até a época. Mas um cinema popular que recusa soluções fáceis, respeita a inteligência do espectador e se mantém fiel as estruturas e a coerência interna da obra de Reichenbach.

Anjos do Arrabalde

Anjos do Arrabalde

Em ‘Anjos do Arrabalde’, Reichenbach volta a flertar de maneira mais explícita com elementos do melodrama, mas mostra uma grande capacidade para organicamente oscilar entre gêneros, indo do drama à comédia de costumes, da denúncia social às particularidades existenciais do universo feminino em seu íntimo. Mais uma vez Carlão se desloca em direção a outros setores e estilos do cinema para ampliar ainda mais a abrangência de sua obra, sem abandonar os elementos característicos de seu discurso. A encenação continua frontal, os dramas são expostos diretamente para o espectador e acomposição de quadros primorosa, com uma perfeita decupagem.

A obra de Carlão ultrapassou os anos 80 e entrou nas décadas seguintes mantendo sempre a mesma força. Carlos Reichenbach é um homem de cinema, um artista completo e dotado de uma sensibilidade raras vezes encontrada em qualquer canto do planeta. E os anos 80 podem ser vistos como o apogeu e a solidificação de sua carreira, de seu cinema único e de uma obra enorme e atemporal.

 

* Texto escrito originalmente para o catálogo da mostra Carlos Reichenbach – O Cinema de Autor Brasileiro, realizada na Caixa Cultural do Rio de Janeiro em 2015.

Editado e atualizado para essa publicação no Tudo Vai Bem.

Publicidade

Os 10 melhores filmes do primeiro semestre de 2016

Por Fernando Oriente

A Academia das Musas

‘A Academia das Musas’

Aqui está a lista dos dez melhores filmes que estrearam em São Paulo entre a primeira semana de janeiro e a última semana de junho de 2015, na opinião do Tudo Vai Bem. Estão incluídos apenas filmes inéditos e recentes. Não considerei lançamentos de filmes em cópias restauradas, mostras, sessões especiais ou festivais.

Sim, o Tudo Vai Bem gosta de listas. Embora sejam reducionistas em questões críticas e de análises, são boas para contextualizarem filmes, gêneros, tendências e cineastas em determinados períodos ou mesmo ao longo da história.

 

Os 10 melhores filmes do primeiro semestre de 2016

  1. ‘A Academia das Musas’, de José Luis Guerín. (Espanha) (leia crítica)
  2. ‘Cemitério do Esplendor’, de Apichatpong Weerasethakul. (Tailândia) (leia crítica)
  3. ‘A Assassina’, de Hou Hsiao Hsien. (Taiwan) (leia crítica)
  4. ‘O Cavalo de Turim’, de Béla Tarr. (Hungria) (leia crítica)
  5. ‘Certo Agora, Errado Antes’, de Hong Sang-soo. (Coréia do Sul) (leia crítica)
  6. ‘Exilados do Vulcão’, de Paula Gaitán. (Brasil) (leia crítica)
  7. ‘As Montanhas Se Separam’, de Jia Zhang-Ke. (China) (leia crítica)
  8. ‘A Vizinhança do Tigre’, de Affonso Uchoa. (Brasil) (leia crítica)
  9. ‘Ela Volta na Quinta’ de André Novais. (Brasil) (leia crítica)
  10. ‘A Bruxa’, de Robert Eggers. (EUA/Canadá)

Tivemos um primeiro semestre ótimo em relação às estreia – os seis primeiros filmes da lista chegam muito perto da perfeição e todos os dez escolhidos são ótimos, além de outros belos longas que não entraram na relação, mas que estiveram nos cinemas nos últimos seis meses. Se 2016 também foi um ano com uma grande quantidade de filmes bons em cartaz, esse primeiro semestre de 2016 manteve a qualidade e até aumentou o número de estreias impactantes dentro de um período reduzido de tempo.

Um filme especial entrou em cartaz no CineSesc em São Paulo, ‘Visita, ou Memórias e Confissões’, realizado por Manoel de Oliveira. O longa, feito em 1982 e mantido inédito até a morte de Oliveira no ano passado, estaria entre os primeiros dessa lista se fosse uma produção mais recente, o que por critérios de seleção o mantém fora da lista. Mas não podia deixar de mencionar, já que se trata de um filme sublime que foi mantido inédito a pedido do realizador até sua morte e foi visto pela primeira vez ano passado. No Brasil ‘Visita, ou Memórias e Confissões’ teve suas primeiras exibições na Mostra Internacional de Cinema em São Paulo, que teve sua 39ª edição realizada no último mês de outubro.

‘O Signo das Tetas’, de Frederico Machado e o cinema atual no Maranhão

Por Fernando Oriente

Com a estreia em diversas cidades do país no dia 14 abril do segundo longa de Frederico Machado, ‘O Signo das Tetas’, o sucesso do curta ‘Macapá’, de Marcos Ponts em diversos festivais do país e do exterior e um grupo cada vez maior de jovens se lançando na produção de curtas e longas, documentários e ficções, o cinema feito atualmente no Maranhão é um dos mais promissores do Brasil. Com duas escolas de cinema: a Escola Lume, do próprio Frederico Machado e a recente Escola de Cinema do Maranhão, inaugurada no centro histórico de São Luís, o momento cinematográfico maranhense é de ebulição, experimentação, estudos, expectativa e afirmação.

O Signo das Tetas

O Signo das Tetas

‘O Signo das Tetas’ confirma o talento de Frederico Machado como cineasta. No longa temos novamente o intenso trabalho do diretor em relação à construção do tempo como espaço de ampliação e desconstrução da memória, fragmentação do passado e dilatação existencial de um tempo presente sempre indefinido, marcado por cicatrizes, incertezas e pelo peso da inação e do rancor. Machado trabalha muito bem a densidade dos quadros, a força isolada de cada plano, contamina seu filme com o desconforto e as incertezas do não-pertencimento e do não-lugar de seu protagonista. Fala de um Brasil feito de deslocamentos, de partidas e tentativas de retorno. Vemos seu personagem central vagando pelo interior do Maranhão, entre estradas de terra, rodovias, rios, cidadezinhas, hotéis baratos e puteiros de beira de estrada. Machado trabalha sempre com uma construção narrativa composta de estilhaços, de uma não linearidade em que tempos se sobrepõem, memórias se projetam sobre o que é vivido nesse presente incerto movido pelos desejos e remorsos desse andarilho desterrado que conduz o filme. Saudades da mãe, dos seios da mãe que lhe davam o alimento e o abrigo, saudades de amores que foram abandonados, de uma religiosidade que se perdeu entre o sagrado e o profano, a fé e o erotismo. Uma violência latente acompanha o personagem, que mediante sua incapacidade de retornar ao abrigo da mãe e da sua casa de infância, suas impossibilidades de se auto-determinar e sua sensação de fracasso o movem em jornadas cíclicas, em que mesmo em eterno movimento, não para de andar em círculo, retornando física e mentalmente sempre aos mesmos lugares, sempre aos mesmos não-lugares.

Frederico Machado faz um cinema muito pessoal, desde seus curtas e em seu primeiro longa, ‘O Exercício do Caos’ (2013), está sempre mostrando uma inquietude, uma busca que aprimorada a cada filme por uma solidificação de seus processos formais, estéticos e discursivos. Machado não tem medo de tentar e, entre acertos e erros, vai melhorando a cada filme, se tornando mais sólido como diretor, definindo seu estilo e construindo obras mais sólidas. ‘O Signo das Tetas’ é marcado por passagens belíssimas, simbologias, sequências de muita força e suas poucas limitações fazem do filme uma jornada imperfeita, mas extremamente sincera em busca daquilo que o diretor quer dizer e construir como cinema. Um filme de sensações, altamente existencialista em seu discurso e calcado na força da construção dos espaços, do tempo e da relação do homem com a imensidão tanto do mundo a sua volta quanto de seu universo interior.

Macapá

Macapá

‘Macapá’, curta de Marcos Ponts é um forte plano único, um exercício de cinema que desmascara o processo e a relação entre o realizador, sua atriz e as emoções que ele busca atingir por meio da construção e manipulação dos sentimentos. Ponts destrói a quarta parede e faz um filme estudo em que ele mesmo, fora de campo, tenta fazer com que uma atriz inexperiente entre em contato com suas emoções, com seus traumas, para que assim o diretor possa filmá-la no estado de perturbação emocional ideal para a cena que pretende gravar. Antes de tudo o filme é um gesto de coragem, em que Ponts se expõe como realizador manipulador, em que escancara os processos utilizados para se atingir os objetivos cênicos de uma sequência que será usada em seu longa de ficção ainda não finalizado. Ao fazer isso, ‘Macapá’ já se torna um curta forte por si só, como um filme isolado, mas ao relacionarmos o processo, naquilo que Ponts se expõe, podemos fazer um paralelo entre o curta e as muitas formas que o cinema usa para falsificar as imagens e as emoções que vemos na diegese de tantos filmes. A sinceridade e a coragem como o diretor se coloca no filme, como expõe sua relação de controle emocional sobre a atriz é um gesto corajoso, mas feito com muita dignidade por Ponts, que ao expor a si mesmo – fora de campo – e a atriz sozinha no interior do quadro – num misto de perplexidade, insegurança e perturbação – ele se coloca como um elo do processo de criação tão frágil e inseguro quanto à atriz em cena. O posicionamento da câmera e a iluminação desse plano único que compõe ‘Macapá’ potencializam muito o discurso do filme. Um filme raro, original e corajoso.

Fora esses filmes já mencionados, muitos curtas captados em digital estão sendo finalizados ou já começam a ter suas primeiras exibições no Maranhão. Entre eles um belo trabalho documental em curta-metragem do jovem Domingos de Jesus Pereira, ‘A Vida Louca de Eparina’s Crazy’, um filme que retrata um morador de rua homossexual da periferia de São Luís em seu cotidiano, com depoimentos e imagens muito bem escolhidos e um tratamento horizontal e dignificante que Domingos faz de seu personagem. O filme foi feito dentro de um processo coletivo entre Domingos e seus colaboradores e teve exibição na última edição do festival Maranhão na Tela, que aconteceu em março desse ano. Esse é apenas um dos diversos trabalhos que estão em andamento no cinema maranhense, jovens realizadores como Denis Carlos, autor do documentário longa-metragem ‘Quem Toma Conta Dá Conta’, estão mantendo a cena maranhense bem aquecida.

É fundamental lembramos que o Maranhão sempre esteve à margem da produção nacional, com pouquíssimos ou nenhum incentivo ou financiamento. Mas é do Maranhão um dos mais interessantes e talentosos documentaristas do cinema brasileiro pós anos 60, Murilo Santos, que realizou dezenas de documentários, sua grande maioria em curta-metragem, filmando em 16mm e super 16mm. A obra de Santos é pouco conhecida, mas está sendo resgatada no Maranhão e já pode ser encontrada em alguns canais da Internet. Santos sempre se interessou pela cultura, pela história e pelas tradições do Maranhão, um dos Estados mais ricos do país quando o tema é música, religião, manifestações populares, arte e história.

Tudo Vai Bem: Dois anos no ar

Por Fernando Oriente

películaNesse dia 4 de Fevereiro de 2016 o Tudo Vai Bem completa dois anos no ar. Primeiro gostaria de agradecer a todos os leitores do site, os compartilhamentos de críticas e textos, os que curtem a página do site no Facebook, os que divulgam meu blog e as muitas mensagens e comentários recebidos. Procuro manter uma média de um novo texto publicado a cada semana. São geralmente críticas de filmes, mas também algumas coberturas de festivais e mostras, listas das melhores estreias do ano e outros textos sobre assuntos variados. Faço questão de mesclar críticas de filmes em cartaz e recentes com análises de filmes antigos, desde o cinema mudo até décadas mais recentes. Já são mais de 100 publicações ao longo desses dois anos.

Um detalhe importante: procuro quase sempre escrever sobre filmes que acho minimamente interessantes e dou prioridade aos que gosto muito e a obras-primas feitas ao longo da história do cinema. Como não tenho muito tempo e nem gosto de ficar escrevendo sobre obras que acho medianas ou ruins, muitos filmes que não gosto não entram no site, independente da repercussão que tenham. Durante as coberturas de festivais e mostras, aí sim escrevo o máximo possível sobre as obras exibidas, independente de gostar ou não delas. Mas isso não impede que, eventualmente, eu e publique uma crítica bem negativa sobre algum filme, caso aja um motivo específico ou mesmo me der vontade.

Devido a outros compromissos de trabalho, infelizmente deixei de cobrir alguns festivais e mostras importantes e por vezes não escrevo sobre alguns belos filmes que entram em cartaz ou tem exibições especiais. Vou tentar sempre ir ao máximo de eventos e cobri-los para o site, mas isso depende da rotina de trabalhos, como meus cursos, aulas, projetos acadêmicos e textos que me são encomendados para catálogos, livros e outras publicações em que colaboro.

Além das muitas críticas já publicadas, quem quiser saber um pouco mais sobre os cineastas e os filmes que mais gosto e que sempre terão prioridade no site, basta entrar na janela Os Cineastas Favoritos do Blog.

Uma coisa é importante ser destacada, para mim, em se tratando de cinema não existe gênero, escolas, país ou estilo de filme que não goste. Aprecio bons filmes e desgosto dos que acho ruins. Simples assim. Cinema é forma e discurso, independente de boas intenções ou debates que certos filmes possam despertar no âmbito cultural, social ou político. Cinema sem preconceitos, sempre dentro da subjetividade natural que guia qualquer texto crítico, longe de ser o dono da verdade e com os olhos livres – como diria o grande Carlão Reichenbach. É assim que o Tudo Vai Bem continuará seu caminho. Muito obrigado a todos.

Os 10 melhores filmes de 2015

Por Fernando Oriente

2015-logoAqui está a lista dos dez melhores filmes que estrearam em São Paulo em 2015, na opinião do Tudo Vai Bem. Estão incluídos apenas filmes inéditos e recentes. Não considerei lançamentos de filmes em cópias restauradas, mostras, sessões especiais ou festivais.

Sim, o Tudo Vai Bem gosta de listas. Embora sejam reducionistas em questões críticas e de análises, são boas para contextualizarem filmes, gêneros, tendências e cineastas em determinados períodos ou mesmo ao longo da história. Após algumas revisões, filmes do primeiro semestre mudaram de posição na lista final de 2015.

Os 10 melhores filmes de 2015

  1. ‘Adeus à Linguagem’, de Jean-Luc Godard. (França/Suíça) (leia a crítica)
  2. ‘Mia Madre’, de Nanni Moretti. (Itália) (leia a crítica)
  3. ‘La Sapienza’, de Eugène Green. (França) (leia a crítica)
  4. ‘Noites Brancas no Pier’, de Paul Vecchiali. (França) (leia crítica)
  5. ‘Sniper Americano’, de Clint Eastwood. (EUA) (leia crítica)
  6. ‘Já Visto Jamais Visto’, de Andrea Tonacci. (Brasil) (leia a crítica)
  7. ‘O Cheiro da Gente’, de Larry Clark. (França) (leia a crítica)
  8. ‘A Pele de Vênus’, de Roman Polanski. (França) (leia a crítica)
  9. ‘Corrente do Mal’, de David Robert Mitchell. (EUA) (leia a crítica)
  10. ‘A Visita’, de M. Night Shyamalan. (EUA)
Adieu au Langage

‘Adeus à Linguagem

2015 foi um ano excepcionalmente bom para estreias em nossos cinemas, um dos melhores dos últimos tempos. Fechar a lista dos 10 melhores de 2015 foi tarefa difícil, alguns belos longas ficaram de fora. Mas listas são listas e tenho que seguir certos critérios. Mediante esse dilema, excepcionalmente, vou mencionar quatros filmes (poderiam ser mais uns dois ou três, mas mantenho certo limite para as menções em listas de ‘melhores do ano’) de que gosto muito e que por pouco não entraram na lista:

  •  ‘Do Outro Lado’, de Kiyoshi Kurosawa. (Japão)
  • ‘Mad Max: Estrada da Fúria’, de George Miller. (Austrália/EUA) (leia crítica)
  • ‘Norte, o Fim da História’, de Lav Diaz. (Filipinas)
  • ‘Batguano’, de Tavinho Teixeira. (Brasil). (leia a crítica)

39ª Mostra Internacional em São Paulo: dicas e apostas

Por Fernando Oriente

39ª Mostra Internacional de Cinema em São PauloA Mostra em 2015 chega com uma retrospectiva fortíssima, os filmes restaurados pela The Film Foundation, fundação criada por Martin Scorsese que já restaurou mais de 700 filmes de diversos países e dos mais variados períodos históricos e escolas da história do cinema. Entre os filmes inéditos de mestres, temos longas de Manoel de Oliveira, Paul Vecchiali, Julio Bressane, Ermanno Olmi e Ruy Guerra, entre outros. Os novos títulos de cineastas contemporâneos de primeiro time trazem filmes de Miguel Gomes, Kiyoshi Kurosawa, Takeshi Kitano, Maria Augusta Ramos, Helena Ignez, Naomi Kawase e Arnaud Desplechin. Serão exibidos também clássicos do cinema brasileiro de Rogério Sganzerla, Ozualdo Candeias e José Mojica Marins e uma série de filmes em cópias novas do mestre italiano Mario Monicelli. Para completar as apostas em jovens cineastas que ainda estão em seus primeiros longas, como os brasileiros Pedro Severien, Anita Rocha Da Silveira, Allan Ribeiro, Aly Muritiba, Bruno Safadi, Cristiano Burlan e Gabriel Mascaro, os portugueses João Salaviza e João Nicolau e o romeno Radu Jude.

Vamos aos destaques:

  • ‘Visita ou Memórias e Confissões’, de Manoel de Oliveira

    Visita ou Memórias e Confissões

    ‘Visita ou Memórias e Confissões’, de Manoel de Oliveira

  •  ‘É O Amor’, de Paul Vecchiali
  •  ‘Garoto’, de Julio Bressane
  •  ‘Quase Memória’, de Ruy Guerra
  •  ‘Os Campos Voltarão’, de Ermanno Olmi
  •  ‘As Mil e Uma Noites: Volume 1 – O Inquieto’, de Miguel Gomes
  •  ‘As Mil e Uma Noites: Volume 2 – O Desolado’, de Miguel Gomes
  •  ‘As Mil e Uma Noites: Volume 3 – O Encantado’, de Miguel Gomes
  •  ‘Para o Outro Lado’, de Kiyoshi Kurosawa
  •  ‘Ryzuo e Seus Sete Capangas’, de Takeshi Kitano
  •  ‘Futuro Junho’, de Maria Augusta Ramos
  •  ‘Ralé’, de Helena Ignez
  •  ‘Sabor da Vida’, de Naomi Kawase
  •  ‘Três Lembranças da Minha Juventude’, de Arnaud Desplechin
  •  ‘Todas as Cores da Noite’, de Pedro Severien
  •  ‘Mate-me Por Favor’, de Anita Rocha da Silveira
  •  ‘Mais Do Que Eu Possa Me Reconhecer’, de Allan Ribeiro
  •  ‘Para Minha Amada Morta’, de Aly Muritiba
  •  ‘O Prefeito’, de Bruno Safadi
  •  ‘Fome’, de Cristiano Burlan
  •  ‘Boi Neon’, de Gabriel Mascaro
  •  ‘Montanha’, de João Salaviza
  •  ‘John From’ de João Nicolau
  •  ‘Aferim!’ de Radu Jude

 Filmes restaurados pela The Film Foundation

O Ideal seria assistir todos os títulos dessa retrospectiva, mas fiz um pequeno recorte com minhas preferências, em ordem alfabética.

  • ‘A Cor da Romã’, de Sergei Parajanov
  •  ‘Bom Dia Tristeza’, de Otto Preminger
  •  ‘Como Era Verde Meu Vale’, de John Ford
  •  ‘Coronel Blimp’, de Michael Powell e Emeric Pressburger
  •  ‘Garota Negra’, de Ousmane Sembene
  •  ‘Juventude Transviada’, de Nicholas Ray
  •  ‘Limite’, de Mario Peixoto
  •  ‘Manila Nas Garras da Luz’, de Lino Brocka
  •  ‘O Bandido Giuliano’, de Francesco Rosi
  •  ‘O Inquilino’, de Alfred Hitchcock
  •  ‘O Rei da Comédia’, de Martin Scorsese
  •  ‘O Show Deve Continuar’ (All That Jazz), de Bob Fosse
  •  ‘Rocco e Seus Irmãos’, de Luchino Visconti
  •  ‘Um Dia Quente de Verão’, de Edward Yang

 Veja aqui a programação completa da 39ª Mostra Internacional em São Paulo 

‘A Erva do Rato’ e um pouco sobre o cinema de Julio Bressane

Por Fernando Oriente

Julio Bressane

Julio Bressane

A partir das explanações de Julio Bressane sobre seu cinema e, particularmente, a respeito de seu filme ‘A Erva do Rato’ (2008), é interessante a proposição de comentários sobre a obra do mais importante cineasta brasileiro vivo. Bressane diz que não tem explicações sobre o que seus longas retratam; afirma não saber exatamente o que cada um de seus filmes diz de específico. Dentro de sua complexa abordagem das imagens e dos mecanismos do seu cinema, Bressane apenas questiona, aponta caminhos e exalta a procura da significação. Sua obra abre sempre possibilidades para interpretações, nunca para explicações. Julio Bressane encara o cinema, seus filmes, como uma travessia, por meio deles (os filmes) ele atravessa diversas formas de manifestações artísticas e distintas disciplinas do saber.

Suas imagens são dialéticas em essência; na composição dos quadros, na desenvolvimento de tudo aquilo que seus planos capturam, dentro e fora de campo, nas modulações dramáticas e nas variações internas e externas das ações e intenções de seus personagens. Bressane usa a luz de forma primorosa, é ela que articula a transformação do que está em cena. É essa luz transitória, que promove desenhos e revela o invisível dentro dos enquadramentos, que permite a constante presença sensorial do desejo de tornar-se, do desejo de vir a ser inerente das essências de suas imagens. As mudanças e nuances dessa luz compõem o devir do quadro que nada mais é do que o devir dos planos, o devir de seu filmes. Bressane imprime a presença material da luz em cada um dos fotogramas de seus filmes.

No cinema de Bressane as imagens assumem um caráter significante mais amplo, tornam-se significantes em si a partir do momento que se aglutinam em sequências digressivas em relação à narrativa como um todo. O diretor desprende suas imagens da continuidade diegética clássica. Elas não exercem função narrativa clara e contemplam, em um processo de continuidade e ruptura, bem como na relação entre o dentro e o fora de quadro, uma constante pulsão em dissolverem-se em outros elementos e significados através do tempo. A própria narrativa se dissolve em ações desarticuladas no peso do tempo.

E o tempo em Bressane é sempre heterogêneo. Cada plano contém diferentes tempos, já que no tempo presente coexiste o peso do passado e as incertezas e possibilidades do futuro. É a definição de Gilles Deleuze da imagem cristal, aquela que refrata a realidade, multiplicando-a. Na metáfora deleuziana, a imagem atual convive com uma imagem virtual, sentida pelo espectador, em que o passado está no presente. E nesse tempo heterogêneo o que formula as tensões do quadro é o conflito entre essas imagens (esses tempos). Esse conflito, tão bem explorado por Bressane, é a essência de sua dialética cinematográfica. Existem diversas questões que se formulam e muitas possibilidades de interpretação que se confrontam. São os fluxos do tempo que fazem do cinema de Bressane um acontecimento, não uma representação. O diretor não reproduz a realidade, ele a cria. Seus filmes podem ser vistos, ainda sob a ótica de Deleuze, como “lâminas de tempo”, recortes múltiplos e contraditórios desse mesmo tempo heterogêneo. Por meio desse processo, Bressane transforma o aparentemente banal em extraordinário, o comunal em descomunal.

Há no cinema de Julio Bressane um constante movimento de transformação caracterizado pelo encontro entre percepção e matéria. Ser e matéria não são jamais estáveis e é o devir dos planos (principalmente pelas potências das modulações da luz) que embala esse movimento constante de transformação. A percepção do tempo heterogêneo se dá por meio dessa luz e desse movimento sensorial que constitui a base da mise-en-scéne de Bressane. Dentro de uma concepção brechtiana, Bressane acentua a autonomia dos planos em que sua construção estética se solidifica. Seus personagens agem dentro de pulsões específicas que são acionadas pela palavra, pela percepção ótica, pelos estímulos cerebrais, pelo texto, pelas ações ou mesmo pelo tato. Estão sempre em busca de algo, sejam respostas, sejam sentidos. Em suma, estão sempre sendo conduzidos pelo desenrolar das imagens-tempo.

Novamente voltando a Deleuze, nota-se claramente em Bressane, por meio dessa rigorosa construção estética, “um punhado de tempo em estado puro (mas heterogêneo) que emerge na superfície da tela”. O tempo deixa de ser derivado da continuidade narrativa para aparecer (e ser sentido pelo espectador) em si mesmo. Em seus filmes, Bressane fatia fenômenos perceptivos e produz novas (mas transitórias) totalidades. Produz, de forma dispersa e aleatória, distintas situações óptico-sonoras de causalidade incerta, ou mesmo ausente, em que os ganchos de continuidade dramático-narrativos foram rompidos e se propõe ao espectador como um processo criativo multifacetado, que pode levar a distintas representações e significados.

'A Erva do Rato'

‘A Erva do Rato’

Sem de forma alguma explicar, mas tentando interpretar, vamos a ‘A Erva do Rato’, lançado pelo diretor em 2008. No longa (concebido dentro de um rigor que chega a ser intencionalmente esquemático), o casal protagonista vive uma espécie se suspensão temporal em que os eventos mínimos se arrastam. Em um primeiro momento o homem (Selton Mello) dita uma série de informações contidas em livros técnicos que são anotadas metodicamente pela mulher (Alessandra Negrini) em cadernos de fichamento. Esse processo (a fala e a audição) pode ser visto como uma afirmação e posterior interiorização de conceitos externos que, ao serem lidos mecanicamente por ele e anotados por ela, disparam outras pulsões que vão colocar o casal em um jogo de captura e exposição de sentimentos e desejos mais profundos. Ao fotografá-la em posições sensuais e reveladoras (mas também extenuantes e desconfortáveis), ele está capturando e apreendendo seu interior. O desejo sexual latente da mulher é exposto por meio de suas posições reveladoras, em que se abre ao olhar do homem. Esse, com uma câmera fotográfica, extrai dela partículas de sua essência ao mesmo tempo em que se excita (interiormente) com a visão de seu sexo exposto. Ao se abrir, ela faz com que sua sexualidade venha à tona; ela se desnuda e se desprotege. Com isso permite que algo “impuro”, ou mesmo abjeto, venha lhe penetrar o corpo e a alma. Esse algo “sujo”, desestabilizador de uma modus de vida pequeno-burguês, surge como um rato. O animal, considerado repugnante pela maioria das pessoas higiênicas e civilizadas, vai provocar o ciúme e a ira do homem, ao mesmo tempo em que vai acionar a pulsão sexual e a libido da mulher. O rato, e o que ele representa, não é algo meramente ameaçador, mas sim a materialização e a possibilidade de consolidação de desejos passionais e instintos recalcados do casal.

Alessandra Negrini em 'A Erva do Rato'

Alessandra Negrini em ‘A Erva do Rato’

É interessante, mesmo partindo de uma análise simplificadora e pouco extensa, notar como os elementos com que Julio Bressane trabalha podem assumir diferentes processos significantes que permitem diversas capturas e interpretações de significação nos espectadores de seus filmes. Para atingir tal nível de complexidade, o diretor solidifica seu discurso cinematográfico em planos rigorosamente construídos, em que compõe o quadro em todos os seus detalhes. Essa composição, que Bressane chama de montagem do quadro e compara ao processo criativo de um pintor, é a essência da dialética de seu cinema, de sua arte de tempos heterogêneos.

Mostra Nicolas Klotz no CineSesc em SP e ‘Rua Secreta’, de Vivian Qu nos cinemas

Por Fernando Oriente

Mostra Klotz e PercevalO cinema do diretor francês Nicolas Klotz vai muito além de seu longa mais famoso, o belíssimo ‘Questão Humana’ (2007), que chegou a ser lançado nos cinemas brasileiros e também em DVD. Os filmes de Klotz, sempre em parceria com sua mulher Elisabeth Perceval – tanto as ficções como os documentários e filmes experimentais -, trabalham dentro de uma constante pesquisa de linguagem e discurso, buscam sempre expressar tanto questões sociais, políticas e existenciais do homem contemporâneo quanto discutir o valor e as representações das questões que envolvem a imagem, sua construção e como essas imagens se relacionam com a arte, a história, as representações de mundo e a própria evolução do cinema na sociedade.

A Ferida

‘A Ferida’

Klotz e Perceval têm seus longas, médias e curtas exibidos pelo CineSesc em São Paulo, de 15 a 22 de julho, dentro da mostra ‘O Cinema de Klotz e Perceval: A França dos Excluídos’. São filmes raros, em diversos formatos e que dialogam constantemente entre si e com o mundo em que vivemos. Entre suas ficções, além do já consagrado ‘Questão Humana’, os destaques são ‘Paria’ (2000), ‘A Ferida’ (2004) – o melhor filme de Klotz – e ‘Low Life’ (2011). Esses dois últimos foram exibidos na Mostra Internacional de Cinema em São Paulo.

Uma sessão imperdível na mostra do CineSesc é que a reúne os curtas e médias de Klotz e Perceval, filmes que podem ser lidos como estudos, alegorias, ensaios e experiências visuais e sonoras sobre o próprio cinema, seus mecanismos, seus dispositivos e suas relações diretas com a história como arte e linguagem (todos extremamente cinematográficos, cinema puro e visceral). São filmes em que, apesar da desconstrução estético-narrativa, Klotz e Perceval não deixam de elaborar e desenvolver como parte de seu discurso político no cinema e destacar o papel dos marginalizados e excluídos dentro da composição do tecido social contemporâneo.

Dois outros destaques estão na programação da mostra no CineSesc. A estreia mundial do novo filme de Klotz e Perceval, ‘Zombies’, recém finalizado pelo casal e a primeira exibição do documentário ‘NK + EP’, dirigido pelo curador e produtor da mostra Leonardo Luiz Ferreira (autor do belo ‘Chantal Akerman, De Cá’ (2010), co-dirigido por Gustavo Beck). ‘NK + EP’ faz um registro sentimental da  passagem de Klotz e Perceval pelo Brasil em 2014 e a visita que o casal fez ao Morro do Vidigal no Rio de Janeiro na procura por uma atriz para um teste de elenco.

Veja aqui a programação completa da Mostra ‘O Cinema de Klotz e Perceval: A França dos Excluídos’ no CineSesc. 

 ‘Rua Secreta’, de Vivian Qu

Rua SecretaO primeiro longa como diretora da produtora chinesa Vivian Qu, ‘Rua Secreta’, tem dois blocos bem distintos, duas partes claras. Entre esses dois blocos existe uma grande diferença de intensidade. Tudo de positivo que existe na segunda metade do longa – um discurso forte com situações dramáticas bem exploradas que compõem um ácido painel da China dos dias de hoje como um Estado opressor, invasivo e que controla seus cidadãos como marionetes em meio a um crescimento econômico e tecnológico que fazem do país cada vez mais uma potência ocidentalizada – não se vê na primeira parte do filme.

Todos os primeiros 50 minutos de ‘Rua Secreta’ são construídos para criar uma situação de estranhamento no cotidiano dos personagens que vemos em cena. A partir de um registro seco, com uma narrativa dividida em fragmentos que acompanham o protagonista (um jovem que se divide entre o trabalho catalogando ruas para a confecção de um mapa digital da cidade e seus bicos como instalador de câmeras de segurança) e seu envolvimento com uma jovem que trabalha numa misteriosa empresa localizada em uma rua sem saída que não consta nos mapas, Vivian Qu tenta inserir os elementos de suspense a e a construção do estranhamento que irão ganhar força dramática e se constituir como discurso apenas na segunda metade do filme. O problema da primeira parte do filme é exatamente o fato da diretora não se aprofundar nas texturas das situações que ela indica e não assumir as características de cinema de gênero (no caso o suspense psicológico e as alegorias político-sociais). Vivian tenta fazer tudo ser natural demais, esconder o estranhamento através da aparente normalidade das ações, dos personagens e da realidade em que estão inseridos, o que é um ótimo recurso, mas que exige mais potência cênica e uma maior entrega dramática à força das situações sugeridas. Vivian se preocupa demais em manter o aparente controle narrativo quando poderia ter se arriscado mais, se entregado mais às imperfeições e aquilo que escapa pelas arestas das situações dramáticas, faltou dar mais força às sugestões e ter menos necessidade de manter a narrativa sob controle rígido.

Mas ao mesmo tempo, a cineasta deixa claro que existe muito mais do que a inocência do protagonista é capaz de perceber. Se ela faz questão (e é necessário que faça para o filme se consolidar como um todo a partir da reviravolta que dá início a parte final) de introduzir esses elementos de deslocamento e de mistério desde início, ela peca ao não se aprofundar por meio de uma encenação que potencialize a estranheza em meio à normalidade. Tudo na primeira metade é leve demais, fragmentado demais; falta o vigor e as texturas da própria mise-en-scéne que estarão presentes no segundo bloco.

‘Rua Secreta’ é um bom filme em seu todo, se consolida como discurso a partir da segunda metade e caminha sólido até o final. Vivian Qu acerta em cheio ao não dar explicações, em não criar nada que tire os personagens da sua situação de impotência e de sua incapacidade de perceber a força do todo que os esmaga. Ela consolida sua alegorias sobre a China contemporânea, deixa claro os processos brutais de transformação e controle que o Estado chinês impõe aos seus cidadão tratando-os como marionetes, objetos dentro de uma máquina gigantesca que tritura as subjetividades em prol de uma pujança da nação.

O problema do filme esta na construção do enunciado, que poderia ser mais densa e caminhar de maneira mais potente dentro do desenvolvimento dramático da narrativa. O longa é irregular exatamente por termos uma parte final com as exigências de texturas dramáticas exploradas com força de encenação e uma primeira metade mais frouxa. Isso prejudica o todo do filme, mas não o impede de ter suas qualidades, não tira as possibilidades de leitura do discurso de Vivian Qu, mas priva o espectador de se projetar com mais potência dentro das construções dramáticas desde o início. Para um primeiro longa, Vivian se sai bem e faz um filme com mais qualidades que defeitos, que se mantêm fiel a sua proposta dramático-discursiva, deixa clara a força da cineasta como encenadora e que merece ser visto.

Os 10 melhores filmes do primeiro semestre de 2015

Por Fernando Oriente

'Noites Brancas no Pier'

‘Noites Brancas no Pier’

Aqui está a lista dos dez melhores filmes que estrearam em São Paulo entre a primeira semana de janeiro e a última semana de junho de 2015, na opinião do Tudo Vai Bem. Estão incluídos apenas filmes inéditos e recentes. Não considerei lançamentos de filmes em cópias restauradas, mostras, sessões especiais ou festivais.

Sim, o Tudo Vai Bem gosta de listas. Embora sejam reducionistas em questões críticas e de análises, são boas para contextualizarem filmes, gêneros, tendências e cineastas em determinados períodos ou mesmo ao longo da história.

Os 10 melhores filmes do primeiro semestre de 2015

  1.  ‘Noites Brancas no Pier’, de Paul Vecchiali. (França) (leia crítica)
  2. ‘Mapas Para As Estrelas’, de David Cronenberg. (Canadá/EUA) (leia crítica)
  3. ‘Sniper Americano’, de Clint Eastwood. (EUA) (leia crítica)
  4. ‘Jauja, de Lisandro Alonso. (Argentina) (leia crítica)
  5. ‘Amor, Plástico e Barulho’, de Renata Pinheiro. (Brasil) (leia crítica)
  6. ‘Mad Max: Estrada da Fúria’, de George Miller. (Austrália/EUA) (leia crítica)
  7. ‘Depois da Chuva’, de Cláudio Marques e Marília Hughes. (Brasil) (leia crítica)
  8. ‘O Pequeno Quinquin’, de Bruno Dumont. (França) (leia crítica)
  9. Branco Sai. Preto Ficade Adirley Queirós. (Brasil) (leia crítica)
  10. ‘Top Girl ou A Deformação Profissional, de Tatjana Turanskyj. (Alemanha) (leia crítica)

Cadastre-se e receba por Email as postagens semanais do site Tudo Vai Bem:

O cinema de Tsai Ming-Liang – breves comentários

Por Fernando Oriente

Vive L'Amour

Vive L’Amour

Existem cineastas que marcam a vida de um apaixonado pelo cinema desde o primeiro contato com uma de suas obras. O cinema de Tsai Ming-Liang causou esse fenômeno na minha vida. Assim como diretores que descobri por meio de sessões na Cinemateca (quando ainda era na Rua Fradique Coutinho em São Paulo), em cineclubes, em retrospectivas, festivais, na Mostra Internacional de Cinema em SP ou mesmo em VHS ou na televisão. Essa lista de cineastas que literalmente mudaram minha vida, meu jeito de ver e pensar o mundo e que, por muitas vezes, falavam e pensavam por mim por meio de seus filmes pode ser vista nesse link do site. Mas esse breve texto é sobre a obra de Tsai, que conheci na primeira metade dos anos 90, ainda adolescente, no filme ‘Vive L’ Amour’ (1994).

Rever a obra de Tsai Ming-Liang completa, de ‘Rebels of the Neon God’ (1992) até ‘Cães Errantes’ (2013) – para ficarmos apenas nos longas feitos exclusivamente para o cinema (sem nunca deixar de lado a força de vários de seus curtas e filmes-ensaio) – é uma experiência que abala os sentidos. É uma oportunidade de penetrar um universo visual e material extremamente rigoroso em que conteúdo e forma se moldam em imagens particularíssimas compostas por um cineasta que constrói cada um de seus filmes a partir da força que imprime a cada plano. A dor crônica da existência e a incapacidade da construção de relacionamentos interpessoais estão presentes em todos os longas do cineasta malaio radicado em Taiwan. Esse aspecto ganha força extra pela constante opressão que os espaços (ambientes, cenários, extra-campo) exercem sobre os tipos.

Essa opressão da existência está fisicamente presente nos gestos e nas imobilidades dos personagens, no minimalismo recorrente da mise-en-scéne e no uso de elementos matérias como água, o calor e a seca, sempre em conflito com os elementos humanos. O desejo sexual reprimido, que quando se concretiza é de forma obsessiva, maquinal e dolorosa, torna o universo de Tsai ainda mais angustiante. Seus filmes estão diretamente ligados uns aos outros. Cada novo trabalho do realizador evolui a partir de sua obra anterior e remete ao todo de seus longas. É como se ele realizasse um mesmo filme, em que novos capítulos se somam, aumentando e diminuindo a importância de elementos em relação uns ao outros.

Adeus, Dragon Inn

Adeus, Dragon Inn

O que mais chama atenção no cinema de Tsai Ming-Liang são o rigor na construção das cenas e o impacto que ele extrai delas. Isso é notável na composição dos quadros, no posicionamento primoroso da câmera, na ação dos personagens dentro da cena e no pouquíssimo uso da palavra. No cinema de Tsai, é a partir da construção de cena que podemos apreender um discurso coerente que sugere a opressão dos personagens, sempre mergulhados em sentimentos como, apatia, amargura, melancolia, solidão e desilusão e esgotamento emocional. Essas sensações se encontram representadas nas atitudes e na sensação de claustrofobia provocada pelos ambientes fechados e pela maneira como as cenas de exterior são compostas para refletir os estados de espírito dos personagens por meio dos elementos presentes nos quadro. Nos espaços abertos, os personagens são como que objetos minúsculos que borram um cenário caótico em sua desordem e movimento, ainda mais oprimidos pela amplitude urbana.

Tsai Ming-Liang desenvolve sua mise-en-scéne com a intenção de ressaltar o peso da presença material e do movimento físico de seus personagens, bem como as sensações internas de seus tipos por meio de suas expressões faciais e seus gestos. Ele busca a densidade do tempo nessas ações, o que fica impresso nos deslocamentos e ao mesmo tempo na estagnação dos personagens no espaço do quadro, e a enorme relação que existe entre eles e tudo o que está no fora de campo. Tsai decupa seus filmes e compõe suas cenas organizando minuciosamente os deslocamentos das figuras dramáticas e suas ações. Ressalta sempre por meio desse processo as atitudes, os gestos, as poucas falas e o silêncio. As cenas são compostas dentro de um espaço global coerente, claramente lembrado a cada instante.

Tsai utiliza-se de uma possibilidade característica da mise-en-scéne contemporânea: o encerramento de seus personagens através do olhar da câmera para condicionar o peso da opressão dessas figuras dramáticas. Essa reclusão imposta pelo cineasta aos seus personagens permite a exploração de muitas possibilidades significantes desse encerramento espacial e existencial, principalmente a exposição dos estados de espíritos e dos sentimentos desses tipos. Esses elementos são orquestrados pelo diretor com o destacado uso do som, onde ruídos e silêncios dão espessura e densidade às cenas. A longa duração de planos, cenas que se estendem ao máximo da temporalidade dramática das ações encenadas, o posicionamento criativo e funcional da câmera, os ângulos fechados e os closes que penetram a alma dos personagens; tudo na estética de Tsai é composta para que seu cinema seja um catalisador de sensações, um registro do humano em estado bruto, um inventário sobre a angústia e a melancolia contemporâneas.

Cães Errantes

Cães Errantes

O impacto que Tsai Ming-Liang obtêm de cada sequência que constrói provoca um mal-estar no espectador, o arranca de sua passividade e de sua posição de conforto. Seus planos são contaminados por uma sensação de angústia que transborda a tela e atinge o público de forma sensorial. Os personagens de Tsai esvaziaram-se objetivamente; sofrem mais da ausência de si próprios do que da ausência de um outro, vivem um paradoxo entre o desejo reprimido de suas almas e o cansaço físico de seus corpos.

Influenciado por cineastas seminais do cinema moderno europeu, como Michelangelo Antonioni e Robert Bresson, bem como pela crueldade com que Maurice Pialat trabalhava o realismo dos dramas de seus personagens, além de nomes de peso do cinema asiático contemporâneo (Hou Hsiao-Hsien principalmente), Tsai constrói filmes que vão muito além de simples retratos do mal-estar da sociedade. Sua obra apresenta a complexidade da existência por meio das muitas camadas e texturas de seus tipos e de suas relações com o mundo. Um humor particular, ácido e cínico está presente na obra do diretor, que vai fundo nas dores humanas sem abandonar a sensibilidade do olhar e a delicadeza de situações banais, delicadeza essa que pode surgir do sofrimento, do patético e do grotesco. Um registro naturalista (sem cair nos artifícios e muletas de um certo gênero de cinema naturalista já saturado) e sensorial do mundo, impressos no rigor da construção estética, na complexidade e possibilidades dos significados, na materialidade presente impregnada em cada plano é o núcleo da obra desse que é um dos maiores autores surgidos no cinema nos últimos 40 anos.

D.W. Griffith: ‘O Nascimento de Uma Nação’ (1915) e ‘Intolerância’ (1916)

Por Fernando Oriente

'O Nascimento de Uma Nação'

‘O Nascimento de Uma Nação’

Impressiona que em apenas 20 anos desde seu surgimento oficial, o cinema tenha sido capaz de produzir duas obras tão intensas, com a linguagem cinematográfica já tão estabelecida e com elementos formais e narrativos em sintonia com aquilo que potencializa a força única que a encenação de um filme pode ter. Estamos falando aqui de ‘O Nascimento de uma Nação’, de 1915 e ‘Intolerância’, de 1916, ambos dirigidos por D.W. Griffith. Muito mais do que o mito em torno de sua figura, do homem que desenvolveu os poderes da montagem paralela, do pai do cinema narrativo ou mesmo do fundador do cinema clássico, Griffith era um exímio diretor de cinema e um encenador primoroso, e muitos de seus filmes provam isso. Sua obra tem uma força, uma beleza e um impacto no espectador que não diminuíram ao longo do tempo; seu trabalho não serve apenas para explicar a gênese da arte cinematográfica, sua verdadeira força está no quanto seus filmes eram bons. Um cinema narrativo direto, que colocava as ações em primeiro lugar, que conduzia as modulações dramáticas com maestria, que criava suspenses, cenas de ação impactantes, dramas comoventes, instantes cômicos e contava histórias de maneira objetiva e dentro de uma evolução narrativa concebida em ritmo visceral. Griffith não queria, na grande maioria de seus filmes, propor discursos e nem subtextos, queria apenas narrar histórias, criar imagens espetaculares e provocar emoção no espectador.

O diretor começou a filmar em 1908 e fez mais de 500 filmes até 1930, entre curtas, médias e longas. Dirigiu obras belíssimas como ‘Judite de Betulia’ (1914), ‘O Lírio Partido’ (1919) e ‘Órfãs da Tempestade’ (1921), entre muitos outros que nitidamente influenciaram grandes cineastas ao longo da história, de John Ford, Cecil B. DeMille, King Vidor e Vincente Minnelli a Sergei Eisenstein, Roberto Rossellini e Kenji Mizoguchi. Mas esse texto vai se debruçar sobre seus dois principais e mais famosos épicos: ‘O Nascimento de Uma Nação’ e ‘Intolerância’, feitos um na sequência do outro, no prazo de um ano. Dois longas de extensa duração, orçamentos altíssimos para a época e que contaram com muito investimento na construção de cenários majestosos, figurinos sofisticados, muitos extras e um primoroso trabalho de direção de arte.

D.W. Griffith

D.W. Griffith

Nos dois filmes fica claro o domínio técnico e a visão total de cinema de Griffith. A impressionante competência de compor detalhadamente os quadros em sua totalidade, a precisa escolha dos enquadramentos (com destaque para a notável habilidade em usar a força dramática, a beleza e as potências dos close-ups), a eficácia dos efeitos de montagem, a funcionalidade dos cortes, a amarração dialética entre os planos, a capacidade de extrair o máximo de significação das expressões dos rostos dos atores, o uso pontual e destacado dos movimentos de câmera e o apuro e a intensidade que Griffith impunha à movimentação, tanto dentro de um mesmo plano, quanto na relação direta entre a sucessão inquieta de diferentes takes.

O diretor alternava planos abertos recheados de ação intensa e movimento com sequências filmadas em primeiro plano, closes e ainda se utilizava da relativa capacidade da profundidade de campo que as técnicas da época permitiam para ampliar os espaços de ação dentro do quadro. Griffith foi um dos pioneiros a explorar as modulações dramáticas que os efeitos e variações da luz produziam dentro das cenas, para isso trabalhava tanto com a luz natural e os refletores, além de ser um dos primeiros a perceber como o uso de rebatedores poderia influenciar a função da luz na fotografia de um filme.

Todos esses recursos serviam para Griffith obter seu principal objetivo: construir narrativas fortes que evoluíssem de maneira intensa para explorar o máximo a força das histórias que queria contar por meio da linguagem cinematográfica. Porque em Griffith já se torna óbvio o quanto o cinema é uma linguagem própria e a força que essa linguagem tem.

Dois épicos

'O Nascimento de Uma Nação'

‘O Nascimento de Uma Nação’

‘O Nascimento de Uma Nação’ tem três momentos histórico-narrativos centrais, que envolvem duas famílias amigas, uma do norte dos EUA a outra do sul. O primeiro é a Guerra Civil Americana iniciada em 1860, seguida pelo assassinato de Abraham Lincoln e o último é o surgimento da Ku Klux Klan. Griffith amarra os fatos históricos para propor uma narrativa total que contemple uma leitura do foi a solidificação dos EUA como uma nação. A visão que o diretor usa no filme é um retrato fiel do pensamento do cidadão branco americano da época. Nessa visão está a crítica da guerra que transforma amigos em inimigos, o apogeu e a morte traumática do mais importante político da história dos Estados Unidos e a forma como o norte-americano tradicional, caucasiano, cristão e devoto dos valores do liberalismo via em qualquer povo ou raça diferente da sua uma forma de ameaça a seu ideário de liberdade e autodeterminação. O filme é extremamente racista, mas ele apenas retrata de maneira sincera e fiel como o pensamento americano tradicional dos anos 1910 (e ainda muito nos dias de hoje) era racista. É notório que, com raras exceções, os estadunidenses não tinham o menor respeito aos negros como indivíduos iguais a eles. Um país que viveu a escravidão carregará para sempre as cicatrizes dessa abjeção.

Como Griffith trabalhava dentro de códigos clássicos da construção narrativa, que tinha no maniqueísmo e na vilanização de tipos por meio de caricaturas uma de suas regras, ele faz dos negros (principalmente do político mulato que ganha força após a vitória do norte sobre os Confederados na Guerra Civil) os vilões da história. Vendo o filme hoje, com o mínimo de bom senso, a construção racista do filme é uma agressão enojante. Mas se vermos esse processo como fruto da época, possamos entender melhor que o racismo é algo muito mais atávico e nocivo do que imaginamos e que suas raízes são muito mais profundas. É interessante notar como o preconceito com que os negros são retratados no filme é uma característica comum ao cinema americano, que nos anos seguintes fez o mesmo com comunistas, asiáticos, hispânicos e hoje em dia com árabes e muçulmanos. Tudo o que é diferente da matriz racial e moral americana provoca pavor no cidadão médio estadunidense.

Para se ver a grandeza de ‘O Nascimento de Uma Nação’ como cinema temos que fazer o sacrifício de deixarmos a ridícula construção dos negros e a patética tentativa de tornar a Ku Klux Klan em um grupo de heróis salvadores dos valores da América de lado. O filme tem um ritmo impressionante, as cenas de ação são compostas com esmero e cheias de energia interna, drama e suspense são construídos com maestria e o longa flui com um vigor ímpar. As histórias são preciosamente amarradas pela força da montagem, a relação entre os personagens cresce ao longo de todo o filme, que é recheado de sequências belíssimas. Toda a maestria de encenador de Griffith fica nítida na maneira como ‘O Nascimento de Uma Nação’ utiliza uma gama enorme de técnicas cinematográficas para se consolidar como uma das mais fortes narrativas épicas que o cinema já teve.

'Intolerância'

‘Intolerância’

‘Intolerância’ é um projeto ainda mais ambicioso e sofisticado. Nele vemos uma possível tentativa de Griffith (nunca comprovada) de se redimir um pouco do racismo de seu longa anterior. No filme temos um apuro estético ainda maior por parte de Griffith, que usa mais movimentos de câmera (como travellings e aproximações e recuos de câmera), maior uso dramático dos closes, uma movimentação interna nos quadros mais acentuada, cortes mais brutos, maior variação nas modulações e no uso da luz e um verdadeiro tour de force de montagem, em que a montagem paralela trabalha não só sequências que se relacionam umas com as outras, mas que também intercalam com muita pujança quatro diferentes momentos na história da humanidade. Se existe um filme que podemos usar como exemplo dos poderes que a montagem paralela tem para a construção dramático-narrativa ele seria ‘Intolerância’.

A grandiosidade do filme também está em intercalar, sem perder a potência narrativa, o apelo visual das sequências que se passam na antiga Babilônia (com cenários enormes e suntuosos, além de um número imenso de extras) com cenas bem mais intimistas, com poucos personagens e que se passam já no início do século 20 nos EUA. O filme não perde intensidade em nenhum momento, tanto nos dois já citados quanto nos outros que completam a teia de narrativas intercaladas: o massacre dos Huguenotes na França do século 16 e um trecho da vida de Jesus em Jerusalém até sua crucificação. Todo o filme é recheado pela força dos melodramas, por imagens belíssimas, emoção, suspense, ação contagiante e o mesmo ritmo primoroso com que Griffith fazia suas narrativas evoluírem, além de sequências espetaculares.

Em ‘Intolerância’, Griffith usa quatro narrativas distintas para destacar a maldade, a traição, a ambição e a própria intolerância que dá título ao filme como características comuns do homem ao longo da história. Respeitando os códigos narrativos da época e buscando conclusões edificantes para agradar grandes platéias, o diretor constrói diferentes relações entre personagens que procuram destacar que o amor, a coragem e a compaixão são as únicas formas do homem domar seus piores instintos e ter uma chance de redenção. Em ‘Intolerância’, a presença das metáforas é marcante, como na belíssima imagem recorrente ao longo do filme em que uma mulher embala um berço em meio a um plano aberto (alternado por alguns closes) dentro de um cenário primorosamente composto que acentua os contrastes entre luz e penumbras e enfatiza a ação simbólica dessa grande mãe da história que embala infinitamente o berço da humanidade.

‘O Nascimento de Uma Nação’ e ‘Intolerância’, dois filmes mudos, feitos nos primórdios da evolução cinematográfica, são dois dos melhores filmes clássicos que Hollywood já produziu, duas das mais bem compostas narrativas da história do cinema. Longas em que o talento de um diretor salta aos olhos pela maneira como ele trabalha a encenação, usando todos os recursos possíveis para exercer o papel de um narrador que articula, interrompe, compara e unifica ações para construir a força das histórias que cria. Tudo com uma beleza visual impressionante e um senso de ritmo e movimento preciosos. Cinema puro, que não esconde sua ingenuidade discursiva, mas que extrai o máximo de emoção que só o cinema como linguagem pode alcançar.

Mostra de Tiradentes 2015 em SP: balanço e breves comentários sobre alguns filmes

Por Fernando Oriente

Cartaz Tiradentes 2015Se ao longo de 2014 o cinema independente brasileiro viveu entre impasses que apontavam certo saturamento do novo cinema praticado no país, com o surgimento de fórmulas, cacoetes e repetição superficial de alguns temas (deslocamentos, afeto, mal estar de viver, fusão ente ficção e documentário, excessos de metacinema e do uso do dispositivo como finalidade e não meio para o desenvolvimento dos filmes) ao mesmo tempo em que belos filmes apontavam caminhos interessantes a serem seguidos e afirmavam a qualidade de alguns realizadores, o ano de 2015 começou de maneira muito promissora. A 18ª Mostra de Tiradentes (principal plataforma para difusão e discussão do cinema independente contemporâneo no país ao lado da Semana dos Realizadores no Rio) teve em sua curadoria uma seleção de filmes fortes, que priorizaram a liberdade criativa, a inovação, o experimentalismo e exibiu filmes originais, dos mais diferentes estilos, que indicam que o cinema brasileiro independente está forte e não se encontra preso aos impasses citados acima e que tantas discussões levantaram ao longo dos último ano.

A Mostra de Tiradentes 2015 teve um recorte de sua programação exibido na cidade de São Paulo pelo terceiro ano consecutivo. O Tudo Vai Bem assistiu cinco longas e um curta desse recorte na capital paulista e podemos afirmar que a seleção de Tiradentes 2015 foi muito feliz. Com bons filmes, alguns irregulares, mas sempre com elementos interessantes, o cenário apontado por esses filmes traz uma injeção de vigor e consistentes provas de que o cinema contemporâneo brasileiro tem muito a oferecer.

Esse texto traz brevíssimas análises dos filmes assistidos pelo site em São Paulo.

‘Mais Do Que Eu Possa Me Reconhecer’, de Allan Ribeiro

Mais Do Que Eu Possa Me ReconheçerO filme de Allan Ribeiro aborda a solidão de uma maneira extremante original. Dentro dos códigos do documentário, e da relação complexa construída entre Allan e seu documentado, o artista plástico e vídeo-maker amador Darel, o longa penetra na casa e na intimidade do Darel para, por meio de depoimentos, imagens do cotidiano do artista, depoimentos e falas isoladas dele para a câmera e trechos dos vídeos gravados por Darel, construir um painel em forma de mosaico do cotidiano de um velho que vive das reminiscências de sua vida, de seus trabalhos como pintor, de suas imagens captadas e de suas memórias.

A fusão entre os tempos filmados por Allan, com as imagens produzidas por Darel aliados às memórias do artista, o amplo destaque que o filme dá ao ambiente de isolamento em que Darel vive e as lembranças da vida do personagem são construídas por meio de uma evolução narrativa livre, não-linear e que vai ganhando força ao desenrolar do filme e acaba por produzir um filme em que nada é explícito, tudo é sugerido, insinuado.

Imagens e depoimentos, bem como o registro dos silêncios, dos pequenos gestos e dos espaços formam um complexo conjunto visual e sonoro em que a passagem do tempo, as tragédias, a solidão, as perdas, as realizações de uma vida e as incertezas em relação ao futuro se fundem em uma matéria fílmica de rara originalidade e que conferem um caráter subjetivo e cheio de arestas para o discurso proposto por Allan Ribeiro. Um filme de detalhes e sutilezas, triste e melancólico, em que não se julga nada, em que tudo é transformado em reflexão e sensações. Um longa sofisticado no melhor sentido da palavra e que pede revisões constantes para que o espectador possa imergir nos diversos detalhes e camadas compostos pelo diretor.

‘Teobaldo Morto, Romeu Exilado’, de Rodrigo de Oliveira

Teobaldo Morto, Romeu ExiladoEm seu segundo longa, Rodrigo de Oliveira realiza um filme extremante pessoal (com uma sólida segurança em fazer um trabalho exatamente de seu jeito e sem concessões), em que com grande liberdade narrativa e de mise-en-scène (ao mesmo tempo em que impõe rigor e funcionalidade a essa encenação), constrói um jogo de representações por meio de personagens e situações dramáticas que nunca são o que aparentam ser. Tipos se desdobram, dramas se redefinem, novos conflitos surgem em meio à evolução narrativa. Passado e presente são colocados na tela dentro de um rigoroso processo dialético em que as significações se multiplicam e se abrem dentro das múltiplas capacidades de percepção das representações e simbologias que são o centro e a matéria de ‘Teobaldo Morto, Romeu Exilado’. Um filme que se desdobra em uma gama de tecidos interpretativos e possibilidades de leituras.

Um filme que respeita o tempo das ações e dos dramas, que permite o espectador absorver aquilo que vê na tela de maneira livre. Um belo trabalho de composição de planos, com precisa construção de quadros e bom uso de profundidade de campo dão mais densidade ao filme. Sequências marcantes como o longo plano sequência em que os amigos acertam suas contas com o passado, cenas carregadas de simbologia e força visual, um uso fortíssimo e dramático da música e uma cena de sexo de extremo vigor e urgência são alguns dos inúmeros destaques desse que é um dos grandes filmes de Tiradentes 2105.

‘O Animal Sonhado’, de Breno Batista, Luciana Vieira, Rodrigo Fernandes, Samuel Brasileiro, Ticiana Augusto e Victor Costa Lope

O Animal SonhadoIrregular como todo filme coletivo, embora mantenha uma coerente unidade entre suas partes, o filme tem um grande mérito por abordar o sexo de maneira frontal. As trepadas, a nudez, corpos em conflito direto e o desejo em estado puro são os temas do filme. Não existe a preocupação em se aprofundar nas situações dramáticas. O que os realizadores querem é abordar seus temas e as cenas de maneira frontal, direta; e isso o filme consegue.

Uma mesma simbologia do homem como animal sexual marca cada fotograma do filme. Com momentos fortes e algumas passagens mais fracas, ‘O Animal Sonhado’ cumpre o papel de sua proposta de maneira honesta. Abordar e colocar em primeiro plano o sexo direto, com a nudez dos corpos e o desejo escancarado é algo que anda em falta no atual cinema brasileiro. Só por isso, ‘O Animal Sonhado’ já tem méritos suficientes e merece ser visto como ele é, sem pretensões e com uma frontalidade bruta, em que os realizadores se entregam ao seu material de forma passional e sem medo do erro.

‘Medo do Escuro’, de Ivo Lopes Araújo

Medo Do EscuroUm ensaio, um filme experimental, um estudo de imagens, sons e texturas para compor um painel metafórico da condição do homem contemporâneo em meio a um mundo apocalíptico. Com complexa construção formal, uso constante de diferentes registros de captação (e a variação constante de texturas resultante desse processo), montagem ágil e muito movimento dentro dos quadros, Ivo Lopes Araújo faz de ‘Medo do Escuro’ uma experiência estética vigorosa, com situações de intensidade pulsante e algumas passagens em que o longa perde um pouco da força.

Um filme que se entrega e abraça com vigor elementos do experimentalismo, mas que não deixa de tecer comentários ácidos sobre a visão de mundo do diretor. Uma experiência estética rica (no sentido complexo e filosófico do termo estética, não apenas uma questão de forma). ‘Medo de Escuro’ pede a imersão total do espectador para atingir seus objetivos, e a trilha sonora executada ao vivo na sessão do filme em São Paulo potencializou ainda mais essa experiência. Imagens de grande impacto, simbolismos em primeiro plano e uma tensão constante e crescente que acompanha toda a evolução do filme fazem de ‘Medo de Escuro’ um exercício de cinema livre intenso e sensorial.

‘O Tempo Não Existe No Lugar Em Que Estamos’, de Dellani Lima

O Tempo Não Existe no Lugar Em Que EstamosDellani Lima mostra em seu novo longa uma notável maturidade como encenador, constrói um filme em que o centro dramático está naquilo que é sugerido, nas entrelinhas e subtextos, na distância calculada que ele mantém daquilo que encena. Por meio da história de um foto jornalista e professor de fotografia, incapaz de se adaptar as novas tecnologias do digital, ao mesmo tempo em que vive uma fase de impasses existenciais em que revê sua história de vida, ‘O Tempo Não Existe No Lugar Em Que Estamos’ é uma reflexão sobre a imagem, sobre a relação do que é registrado em oposição aos fatos e ao que é vivido pelo ser humano, bem como um tratado sobre o peso do tempo e da força das memórias no presente de um homem angustiado.

O filme de Dellani não cai em pieguices nem em discursos banais. Trata das emoções de maneira objetiva, em que o que está fora do quadro dialoga constantemente com as ações e a inércia dos pequenos dramas encenados. O destaque dado às significações, as possibilidade e limitações de imagens captadas (instantes congelados e eternizados em reproduções) ajudam a tecer um discurso sólido sobre o próprio papel do cinema no mundo. A distância que a câmera mantém das emoções e dos personagens, bem como a encenação sugestiva e controlada, que evita os arroubos sentimentais, tornam o filme ainda mais forte. Os momentos metafóricos são autênticos e as relações e analogias criadas por Dellani atingem uma força autêntica.

‘Filme Selvagem’, de Pedro Diogenes

Filme Selvagem

Em um dos melhores curtas dos últimos anos, Pedro Diogenes faz de ‘Filme Selvagem’ uma pequena obra-prima. Um filme godardiano com ecos de Walter Benjamin, Rogério Sganzerla e muito mais.

Com imagens belíssimas, um uso primoroso das texturas variadas dessas imagens (que dialogam dialeticamente com os textos narrados), uma montagem impressionante e um discurso extremamente complexo e urgente. Filmaço.

Os 10 melhores filmes de 2014

Por Fernando Oriente

2014Aqui está a lista do Tudo Vai Bem com os dez melhores filmes que entraram em cartaz no Brasil (mais especificamente na cidade de São Paulo) em 2014. Estão incluídos apenas filmes inéditos e recentes. Não considerei lançamentos de filmes em cópias restauradas, mostras, sessões especiais, filmes vistos em DVD, Blu-ray, baixados ou em festivais.

 Os 10 melhores filmes de 2014

  1. ‘Bem-Vindo a Nova York’, de Abel Ferrara. (EUA) (leia crítica)
  2. ‘Cães Errantes’, de Tsai Ming-Liang. (Taiwan)
  3. ‘O Gebo e a Sombra’, de Manoel de Oliveira. (França/Portugal)
  4. ‘O Ciúme’, de Philippe Garrel. (França) (leia crítica)
  5. ‘Era Uma Vez em Nova York’, de James Gray. (EUA) (leia crítica)
  6. ‘Avanti Popolo’, de Michael Wahrmann. (Brasil)
  7. ‘Amar, Beber e Cantar’, de Alain Resnais. (França) (leia crítica)
  8. ‘Jersey Boys – Em Busca da Música’, de Clint Eastwood. (EUA) (leia crítica)
  9. ‘Os Dias Com Ele’, de Maria Clara Escobar. (Brasil)
  10. ‘Hotel Mekong’, de Apichatpong Weerasethakul. (Tailândia)

VI Semana dos Realizadores: ‘É Tudo Mentira’, do coletivo No Passaran! e a seleção dos filmes do Indie Lisboa

Por Fernando Oriente

‘É Tudo Mentira’, do Coletivo No Passaran! (Brasil, 2014)              

Esse ano surgiram os primeiros filmes que tentam traduzir um pouco o que foram os protestos de rua no Brasil em 2013, principalmente os de junho. O melhor resultado foi alcançado pelo filme coletivo ‘Rio em Chamas’ (leia crítica aqui), que mesmo com suas naturais irregularidades entre os diversos segmentos, traz um forte conjunto de imagens, ficções e depoimentos que procuram levantar questões e propor um debate sobre o que aconteceu no país no ano passado, sem chegar a conclusões apressadas, ao mesmo tempo em quecoloca em cena as ações criminosas da PM. Por outro lado, tivemos o fraquíssimo ‘Junho – O Mês que Abalou o Brasil’, de João Wainer, em que o pior da estética publicitária, do tom oficial de grande imprensa e da visão elitista e classistapoluem o debate, tornam as conclusões rasas e manipulam os fatos para tendenciosas conclusões que buscam vilanizar e condenar manifestantes, atacar o Governo Federal ao mesmo tempo em que aliviam para a polícia militar e para os governos estaduais, principalmente o do PSDB em São Paulo.

É Tudo Mentira‘É Tudo Mentira’ não tem as texturas e a dialética de ‘Rio em Chamas’, que ao aliar imagens dos protestos e das repressões policiais a cenas de ficção e depoimentos, tem um poder de questionamento e de exposição interpretativa mais profundo do que foram as manifestações de 2013. Mas por outro lado, o filme do coletivo No Passaran! tem uma força enorme na variedade de imagens e registros (nas mais diferentes formas de captação e em diversas resoluções de imagens, indo do HD às câmeras de celular e transmissões em streaming) dos protestos, da violência dos policiais, da intensidade das massas nas ruas e do efeito catártico que os protestos atingiram.

Logicamente, os motivos, as intensões e as forças propulsoras das manifestações de 2013 foram as mais variadas, é impossível se chegar a consensos sobre uma ou outra reinvindicação principal. O que temos certeza é que os protestos começaram graças a uma intensa mobilização popular contra o aumento das passagens no transporte público e seguiram caminhos diversos, tendo causas urgentes como o direito à cidade, a democratização dos espaços, o fim da violência policial, a desmilitarização das polícias, os direitos LGBT, a igualdade de gênero exigida pelas mulheres, o direito à moradia por parte dos movimentos dos trabalhadores sem teto e o rechaçamentodas remoções forçadas e da ocupação física e simbólica do país pela FIFA, o COI e seus patrocinadores.

Em meio a todas essas causas, surgiram forças conservadoras que tentaram se aproveitar do momento de ebulição social para impor pautas capengas com base em moralismos e ataques ao Governo Federal, numa tentativa de impor mudanças no cenário eleitoral de 2014.

De volta a ‘É Tudo Mentira’. Além da imensa variedade de imagens e dos detalhes que essas imagens revelam, o impacto do filme vem primordialmente de uma edição vertiginosa, criativa e extremamente funcional, que funde sequências em ritmo frenético e acabam por envolver o espectador em meio à força dessas imagens e das ações que elas expõem de maneira frontal. ‘É Tudo Mentira’ é um filme manifesto, e como tal, naturalmente oferece um discurso em defesa dos protestos.

‘É Tudo Mentira’ também aponta o caráter de espetacularização que os protestos têm, um fator que acaba por entorpecer em uma espécie de êxtase os manifestantes e por transformar os atos nas ruas em verdadeiros happenings. Por outro lado, essa construção discursiva no interior do filme tende, em alguns momentos, a tornar as imagens, a matéria do longa e os próprios protestos em fetiche. Por vezes o filme se ancora demais nas músicas, no aspecto romantizado das ações espetacularazidas dos manifestantes e no ritmo intenso e entorpecente da edição. A sedução das imagens e dos sons aliados aos ideais nobres daqueles que tomam as ruas em nome de suas causas e com isso enfrentam uma cruel e fascista repressão da polícia e das forças de segurança é um elemento poderoso demais e, se usado sem freios de autorreflexão, questionamentos e proposições de conflitos, diluem as capacidades e as texturas de análise e debates do material central do filme.

Se por lado esse aspecto o longa fica refém do fetichismo, o papel dos grandes veículos de imprensa na manipulação dos fatos e das imagens é tratado de maneira preciosa. Várias cenas de telejornais da Globo, Globonews, Record e Bandeirantes são inseridos e mostram como esses veículos ultrapassam o patético em abordagens bisonhas dos manifestantes (taxados o tempo todo de vândalos e baderneiros), tentam desesperadamente deslegitimar as causas dos protestos ao mesmo tempo que defendem a polícia e os governos estaduais com falsas acusações aos manifestantes, mentiras e discursos oficiais de governadores (mais especificamente Geraldo Alckmin e Sergio Cabral).

‘É Tudo Mentira’ expõe o jornalismo mal feito, as manipulações mal intencionadas das grandes redes de TV (principalmente a Globo) e o quão ridículo é o discurso preconceituoso e reacionário de colunistas como Arnaldo Jabor, que tem duas de suas falas no Jornal da Globo, com uma distância de apenas alguns dias de uma para a outra, montadas paralelamente e que desmascaram a incoerência, a canalhice e o quão tendencioso Jabor é. São momentos constrangedores para o ex-cineasta e atual porta voz da moral da classe média desgostosa, mas de imensa diversão para o espectador.

Filmes do Indie Lisboa

Um dos grandes destaques da VI Semana dos Realizadores foi a inclusão de uma seleção de filmes portugueses que estiveram em edições recentes do festival Indie Lisboa, um dos mais conceituados do mundo em termos de cinema independente e contemporâneo. Os filmes exibidos na Semana foram escolhidos pelos próprios curadores do Indie Lisboa.

LacrauForam exibidos no festival carioca filmes como o longa ‘Lacrau’ (foto ao lado), de João Vladimiro, um ensaio simples e sofisticado que não segue nenhum preceito narrativo para registrar o sublime por meio de imagens e sons de paisagens e ambientes portugueses, do interior de país (tanto em uma vila, com seus moradores e suas pequenas ações, quanto em espaços abertos como florestas, rios e montanhas)aos cenários urbanos como o subúrbio de cidades, com suas construções em ruínas, sua arquitetura envelhecida e a presença espectral de seus moradores anônimos. Vladimiro registra tudo por meio de uma rigorosa construção de planos, variações constantes na captação da luz, mudanças na janela de exibição dentro da evolução do filme e constantes contrastes entre o foco e a granulação das imagens. Um filme que não perde a força em nenhum instante e mantém os sentidos do espectador sempre em estado de provocação entre a simplicidade e a beleza quase metafísica de suas cenas.

Outro filme português de impacto inegável é o média ‘Cama de Gato’, ficção dirigida por Filipa Reis e João Guerra. O filme faz uma abordagem frontal em estilo cinema direto para construir um realismo intenso, com câmera ágil, muito movimento dentro dos quadros e uma aproximação orgânica dos personagens. Sem apelar para situações abjetas, dramas intoleráveis e exploração de misérias, o filme retrata o cotidiano de adolescentes portugueses que enfrentam a precariedade da vida em um subúrbio pobre de Lisboa. ‘Cama de Gato’ é irregular, muito pela extrema visceralidade dos diretores, que levam a eventuais excessos narrativos, mas tem um tratamento do real próximo ao cinema dos anos 70, aquele de Pialat e Eustache, entre outros.

Outros destaques do Indie Lisboa na VI Semana dos Realizadores foram os três curtas do diretor Gabriel Abrantes (‘Liberdade’, ‘Taprobana’ e ‘Ennui Ennui’). Abrantes é um cineasta original, que trafega entre a sátira, a comédia, o cinema de invenção eo drama como muita competência e segurança. E ainda tivemos um belo e forte curta ‘Rafa’, dirigido por João Salaviza, que mostra claras influências de Pedro Costa, mas sem cair em emulações toscas.

‘Noite’, de Paula Gaitán e ‘A Misteriosa Morte de Pérola’, de Guto Parente na VI Semana dos Realizadores

Por Fernando Oriente

‘A Misteriosa Morte de Pérola’, de Guto Parente. (Brasil, 2014)

A Misteriosa Morte de PérolaO novo filme de Guto Parente é uma imersão claustrofóbica em códigos do terror psicológico por meio de uma manipulação precisa por parte do diretor de elementos básicos do cinema, mais especificamente a construção dos planos, os cortes e um uso primoroso do som, tanto dos ruídos quando dos efeitos e fragmentos musicais da banda sonora, além de um funcional uso das modulações da luz no quadro. ‘A Misteriosa Morte de Pérola’ é um filme que usa as potências do terror e do suspense psicológico para construir um tecido dramático em que a solidão e as saudades são exploradas em seus efeitos mais extremos, como sentimentos perturbadores e destrutivos. A ausência do ser amado e a solidão provocada por uma vida isolada em outro país são transformadas em forças capazes de levar à loucura e a morte.

Parente compõe seu filme basicamente de planos estáticos, em que a composição do quadro, com suas variações de luz e cortes sempre precisos entre as cenas imprimem à mise-en-scène um vigor de onde o diretor extrai as potências da progressão do suspense e dos dramas, dramas esses que são construídos a partir das sensações da protagonista: a jovem Pérola, que se encontra em um país da Europa remoída pelas saudades de sua vida no Brasil e do namorado e pela solidão de sua nova rotina em um ambiente estranho.

O filme se passa quase todo no apartamento em que Pérola mora na Europa. Parente revela os ambientes desse apartamento detalhadamente, explorando os espaços e a relação entre os cômodos, ao mesmo tempo em cria tensões entre o ambiente interno da casa com o extracampo, aquilo que se passa do outro lado das portas e janelas do apartamento, aquilo que o espectador percebe apenas por meio dos sons, da luz e das angústias da protagonista.

As cenas que não são compostas de planos estáticos são as sequências oníricas dos pesadelos de Pérola e as imagens em VHS, tanto aquelas em que as memórias da personagem sobre sua vida no Brasil nos são apresentadas, bem como as que são feitas pelo seu namorado na segunda parte do filme, quando esse chega ao apartamento onde Pérola viveu seus pesadelos, acompanhado de sua câmera de vídeo.

As imagens de VHS são um achado estético do filme, as texturas e imperfeições do vídeo relacionadas com a memória e as saudades de Pérola, bem como as novas imagens que seu namorado grava no apartamento, tentando por meio delas encontra-la novamente, se contrapõem dialeticamente com as cenas gravadas em câmeras digitais modernas de alta resolução e montadas em planos estáticos. Dessa dialética nascem algumas das mais interessantes tensões do filme, em que Parente explora o valor das imagens dentro de um processo de definição das identidades por meio das memórias e a força que o registro visual tem de recriar o mundo e ressignificar os espaços.

Entre as várias referências que Guto Parente usa para fazer de ‘A Misteriosa Morte de Pérola’ um filme rico em camadas de interpretação estão alguns elementos do Romantismo do século 19, sobretudo aquele de escritores como E.T.A. Hoffmann e Lord Byron, principalmente nas questões que envolvem os personagens e seus duplos e a intensidade de uma celebração do amor que se concretiza (apenas) após os tormentos da morte.

‘Noite’, de Paula Gaitán. (Brasil, 2014)

NoiteO novo longa de Paula Gaitán trilha caminhos que a cineasta conhece bem e explora há anos: o ensaio poético por meio de imagens, sons e potências da montagem. Em ‘Noite’, Paula compõe um registro extremamente pessoal da música e seus efeitos e relações com as pessoas nas noites do Rio de Janeiro. Nada no cinema da diretora é óbvio. Paula busca as sensações contidas no poder dos belíssimos planos que constrói, nos choques entre as sequências por meio da força do corte seco, nas capacidades das diferentes texturas de imagem que utiliza e no complexo trabalho de foco que impõem a cada take. Quando ela penetra um universo musical imagético como as noites cariocas, é sempre por meio de sua subjetividade que ela busca tecer seus discursos, captar e transmitir suas próprias sensações desse mundo que registra.

‘Noite’ é composto de planos fechados, em que o que interessa a cineasta são os rostos, as expressões, os corpos, o movimento e o suor daqueles que aparecem na tela. A música condiciona as ações de todos, sejam daqueles que dançam, dos que tocam instrumentos, catam, fazem discotecagens ou apenas observam e escutam as mais variadas melodias. A trilha sonora do filme é composta por diversos gêneros, que vão da música eletrônica ao jazz experimental, da MPB ao rock, do pop ao industrial.

Da mesma forma com que Paula Gaitán trabalha as distorções das imagens, seja pelas aproximações e movimentos bruscos de câmera, seja pela variação das granulações do quadro ou mesmo pela velocidade adulterada das sequências (com uso eficaz de variações de slow, sobreposições de planos em tempos distintos ou mesmo o congelamento das imagens) ela também trabalha o som, basicamente as músicas e os ruídos, dentro de registros distintos, em que as melodias são distorcidas, sobrepostas ou mesmo reduzidas a sons abstratos. Todo esse tecido estético permite a Paula ser subjetiva ao máximo dentro do processo do cinema de poesia que sempre cultivou. ‘Noite’ é um filme em primeiríssima pessoa, em que Paula Gaitán transmite um jorro de sensações visuais e sonoras por meio de um registro sensorial. É um filme que se sente, que trabalha na subjetividade de cada espectador.

Um das principais forças do filme vem do uso precioso que Paula Gaitán faz das luzes artificiais presentes nos clubes, casas de show ou mesmo nas ruas onde pessoas se juntam em função da música. As várias intensidades dessas luzes, os efeitos provocados pela variedade de cores e a relação entre os efeitos artificiais que as modulações das cores impõem às personagens e à própria imagem tornam a experiência estética de ‘Noite’ ainda mais envolvente.

Dos efeitos da música na noite carioca emergem corpos em êxtase, em movimento, em explosões eróticas latentes ou mesmo entorpecidos na inércia sedutora dos sons em meio aos espaços.

 

Cobertura da VI Semana dos Realizadores (parte 1)

Por Fernando Oriente

‘Sinfonia da Necrópole’, de Juliana Rojas (Brasil, 2014)

Sinfonia da NecrópoleEm seu primeiro longa solo, Juliana Rojas mantém várias características que marcaram sua carreira como curta metragista e que também estavam presentes em ‘Trabalhar Cansa’, o belo longa-metragem que ela assina em parceria como Marco Dutra. Mas em ‘Sinfonia da Necrópole’ vemos Juliana caminhar por novos caminhos e introduzir outros elementos em seu cinema.

Juliana sempre trabalhou dentro do registro dos gêneros cinematográficos, mais notadamente o horror e o terror psicológico. Nesse seu novo filme, o que mais chama atenção é a facilidade como a diretora encena com notável competência um filme de forte apelo popular, mas que não abre mão do rigor da construção e as texturas analíticas presentes na mise en scéne. ‘Sinfonia da Necrópole’ traz elementos carregados de comédia, conta com vários números musicais e ainda mantém o clima de suspense e terror psicológico que a cineasta domina tão bem.

A força dessa abordagem popular escolhida por Juliana é sustenta principalmente na construção do protagonista, o aprendiz de coveiro Deodato, um típico personagem do cinema clássico: jovem, simplório, recém-chegado a uma cidade grande vindo do interior, tímido e sensível. Deodato terá, ao longo do filme, a tarefa simbólica de completar sua jornada de iniciação na vida de uma grande metrópole como São Paulo. Ele irá aprender a viver em meio ao caos urbano e sua amplidão desordenada e desumanizadora, sentirá as dificuldades de adaptação ao processo de trabalho e ao ritmo de vida e ainda experimentará o amor, ao se apaixonar por uma colega de trabalho. Um amor (praticamente) não correspondido e constituído dentro dos preceitos clássicos do romantismo, como a admiração crescente e tímida do objeto de desejo e a idealização da mulher amada.

Juliana Rojas transforma o cemitério em que Deodato trabalha e onde se passam quase todas as cenas do filme em um reflexo estetizado de São Paulo. É a metrópole que se reflete na necrópole. Esse recurso permite que várias questões urbanas urgentes sejam inseridas simbolicamente por Juliana em meio aos dramas de Deodato.

A cidade representada, esse simulacro da metrópole que é o cemitério, enfrenta problemas como a desocupação forçada de imóveis (túmulos), a remoção compulsória (dos cadáveres) e a reorganização espacial urbana presente na verticalização dos espaços com a construção de novos túmulos dentro de pequenos “prédios”, que substituirão os antigos jazigos.

Toda essa alegoria é tratada com muita naturalidade e leveza dentro da encenação de Juliana. A mise en scéne é pensada em função dos movimentos evolutivos dos tecidos dramáticos (e cômicos) do filme. Situações de humor ingênuo (mas sempre perspicazes) são intercaladas por diversos números musicais de estilo clássico (em que os personagens dizem suas falas cantando e dançando). Momentos fantásticos em clima de cinema de horror, momentos românticos de sedução e devaneios de amor platônico também fazem parte do leque de gêneros que Julian costura com competência e ainda encontra espaços para tecer comentários sobre a finitude da vida e o conflito eterno entre a atração e o medo presentes na ideia da morte.

‘Sinfonia da Necrópole’ é um filme de encenação mais leve a ágil, algo que a proposta desse longa de Juliana exige. Não vemos a rigidez detalhista de encenação e decupagem presentes no trabalho anterior da diretora, o ótimo curta ‘O Duplo’, mas Juliana Rojas é uma encenadora de mão cheia e, em meio à leveza melancólica de seu novo filme, mostra sempre ótima composição de quadro, belos enquadramentos e elegantes movimentos de câmera.

Seu novo trabalho é apenas a mais recente confirmação do talento de Juliana Rojas. A facilidade como ela circula por gêneros diversos (e o apelo universal que esses gêneros carregam dentro de seus códigos internos), tanto em curta quanto em longa duração, fazem da diretora um nome certo para se esperar com ansiedade por seus novos projetos. Em meio a um momento de impasse da maioria do cinema contemporâneo praticado no país, Juliana é uma das que apresentam soluções criativas, complexas e ainda com sincero e natural apelo popular, que respeita o espectador sem nunca cair em formatos engessados ou vulgaridades.

‘A Vizinhança do Tigre’, de Affonso Uchoa. (Brasil, 2014)

A Vizinhança do TigreO longa de Affonso Uchoa é um ponto alto do cinema contemporâneo brasileiro. É como se vários elementos característicos desse cinema encontrassem em ‘Vizinhança do Tigre’ sua melhor expressão. A construção coletiva do roteiro e a encenação da vida de jovens da periferia de Contagem por eles mesmos como atores. A busca de uma representação do real por meio da força de uma mise em scéne porosa entre os dramas, os personagens e os espaços das ações, bem como uma preocupação com o que de mais humano e corriqueiro existe na frugalidade do cotidiano, todos esses elementos estão em sintonia no filme. Nada é forçado e nenhum recurso usado pelo diretor segue fórmulas pré-estabelecidas.

‘Vizinhança do Tigre’ alterna cenas longas em que a simples presença dos personagens em cena, seus diálogos, silêncios, brincadeiras e os momentos em que se preocupam com a precariedade da vida que levam atingem um alto grau de encantamento. É a vida e seus pormenores, encenadas com talento por Uchoa, que dão força orgânica ao filme.

O diretor alterna cenas estáticas, em que o a variação da luz pontua o quadro com passagens de câmera ágil, que confere dinâmica as ações sem nunca abrir mão de destacar a força do que vemos em cena. Os gestos, olhares, as expressões de alegria, tristeza e preocupação dos personagens bem como a força das relações que estabelecem um com o outro são ressaltadas pela mise em scéne e potencializadas pelo cuidado como Uchoa constrói a evolução natural das situações.

A ternura que por vezes domina o filme vem da maneira sincera com que o universo do longa é composto. As gírias, o jeito de falar, as roupas dos meninos, as músicas que escutam e cantam, as preocupações com a aparência que cada um carrega traduzem códigos de autoafirmação de pessoas que vivem a margem da sociedade de consumo, mas que por meio de pequenos gestos e gostos, se inserem no mundo com identidade e autenticidade. Tudo isso é matéria central para a composição de Uchoa.

‘Vizinhança do Tigre’ é um filme que da sua aparente simplicidade extraí uma sofisticada concepção do mundo por meio de uma rica expressão cinematográfica e de uma encenação extremamente intensa e bem composta; é um filme político em cada fotograma, faz o espectador cúmplice do universo e das pessoas que retrata, um longa sobre a construção de identidades em meio à precariedade. Um dos grandes filmes do ano.

‘Flutuantes’, de Rodrigo Savastano (Brasil, 2013)

FlutuantesO filme de Savastano é um típico representante do momento de impasse do cinema contemporâneo brasileiro. Um filme que contém um sincero e visceral desejo de se fazer cinema por parte de seu diretor, um tema atual que de desdobra em subtemas também atuais, o registro documental por meio de encenações e explicitamento dos dispositivos cinematográficos, a busca pelo gesto afetivo e puro dos personagens e o amontoado de referências intelectuais que acabam se perdendo ou entrando em conflito com a evolução do filme.

Ao retratar a vida de dois personagens que tem suas vidas ligadas ao mar, ao lixo acumulado nas águas e a reutilização desse lixo para a fabricação simbólica e prática de objetos funcionais ou de valor estético, ‘Flutuantes’ alterna momentos fortes como alguns dos depoimentos dos protagonistas, a força de suas criações (as casas flutuantes e as obras de arte interativas e de função ecológicas), os espaços onde eles vivem e atuam com momentos em que se nota apenas o desejo do diretor em mostrar imagens belas em registros de captação improváveis e discursos políticos que perdem a força ao querem abraçar uma representação de mundo que vai além das capacidades de ação de seus personagens (que são ótimas por si só, não precisam ser ampliadas a padrões gigantes para terem uma força que já carregam naturalmente) e do próprio poder de ordenar a relação das imagens com esses discursos dentro dos dispositivos do filme. Um pouco mais de confiança em seus fortes protagonistas e um menor desejo de correlacioná-los a grandes questões universais dariam muito mais força e unidade ao longa

O filme de Savastano é irregular, mas não tem medo de se atirar nas suas intenções e acaba por se perder em alguns momentos justamente na inocência da ideia tão comum ao nosso cinema independente de que apenas as intenções, os afetos, as referências e o escancaramento dos processos cinematográficos garantem a força de um filme.

 

Semana dos Realizadores chega a sua sexta edição com a exibição de alguns dos melhores filmes brasileiros do ano

Por Fernando Oriente

VI Semana dos RealizadoresA VI Semana dos Realizadores, que acontece de 19 a 26 de novembro no Rio de Janeiro, conseguiu, por meio de um ótimo trabalho de curadoria, reunir alguns dos melhores filmes brasileiros do ano. Filmes que passaram em poucos festivais pelo país, mas ainda não entraram em cartaz, além de filmes que terão sua primeira exibição durante o festival. Mantendo o perfil de investir em jovens realizadores do cinema independente contemporâneo brasileiro, aliados à exibição de novos trabalhos de cineastas autorais consagrados, a Semana de 2014 conta ainda com uma retrospectiva completa dos curtas e longas do diretor Kleber Mendonça Filho, o mais consagrado autor da nova geração do nosso cinema. Kleber também dará uma Masterclass no evento.

Entre os filmes programados pela Semana desse ano já assistidos pelo Tudo Vai Bem, estão os altamente recomendados ‘A Vizinhança do Tigre’, de Affonso Uchoa, ‘Batguano’, de Tavinho Teixeira, ‘Ela Volta na Quinta’, de Andre Novais, ‘Com os Punhos Cerrados’, de Luiz Pretti, Pedro Diogenes e Ricardo Pretti e ‘Branco Sai Preto Fica’, de Adirley Queirós.

Outros longas (ainda não vistos pelo site) também chamam a atenção na programação, como ‘Sinfonia da Necrópole’, de Juliana Rojas, ‘Nova Dubai’, de Gustavo Vinagre, ‘Noite’, novo trabalho da talentosa Paula Gaitán (primeiro filme da cineasta após o ótimo ‘Exilados do Vulcão, vencedor do Festival de Brasília de 2013) e o novo longa do mestre Luiz Rosemberg Filho, ‘Dois Casamentos’.

Também fazem parte da programação da sexta edição da Semana dos Realizadores filmes do prestigioso festival português Indie Lisboa.

O Tudo Vai Bem irá cobrir a Semana dos Realizadores de 2014 e publicaremos críticas dos filmes ao longo do evento.

Para começar, seguem links com resenhas do site para dois belos filmes que serão exibidos no festival carioca desse ano:

‘Batguano’, de Tavinho Teixeira; lei crítica aqui

‘Com Os Punhos Cerrados’, de Pedro Diogenes, Luiz e Ricardo Pretti; leia crítica aqui

Veja a programação completa da VI Semana dos Realizadores aqui

 

38ª mostra de SP: outras duas pequenas críticas e alguns comentários

Por Fernando Oriente

‘Prometo Um Dia Deixar Essa Cidade’, de Daniel Aragão. (Brasil, 2014)

Prometo um Dia Deixar Essa Cidae_Bianca Joy PorteMais um trabalho interessante de Daniel Aragão, ‘Prometo Um Dia Deixar Essa Cidade’ é um filme melhor que o anterior do diretor, ‘Boa Sorte Meu Amor’ (2012). Em seu novo longa, Aragão se mostra mais passional com seu material, se arrisca ao extremo e não teme cometer excessos e se atirar junto com o filme na fúria dramática que conduz a narrativa. O resultado é um filme intenso, irregular, muito subjetivo, mas com camadas de interpretação variadas.

Toda a força do filme vem da atriz Bianca Joy Porte e da relação que se estabelece entre ela, a câmera e a encenação do diretor, que constrói tudo na relação visceral com sua protagonista. Tudo no longa passa pelo filtro da percepção e dos sentimentos da personagem Joli, vivida por Bianca. As angústias, as incertezas, a loucura, a força brutal, as fragilidades e a sensação de não pertencimento da personagem conduzem o tecido dramático e a evolução da narrativa.

Bianca Joy Porte realiza um trabalho excelente em ‘Prometo Um Dia Deixar Essa Cidade’. Sua entrega física, emocional e psicológica ao filme fazem de sua atuação uma das melhores não só do ano, mas como dos últimos tempos. Bianca é uma verdadeira atriz de cinema, no nível das nossas melhores como Maeve Jinkings, Djin Sganzerla e Caroline Abras. São atrizes que vivem de forma precisa, em múltiplas texturas, qualquer personagem. Não carregam vícios de atuação em TV e nem interpretam a si mesmas, como acontece com muitos atores e atrizes consagrados, principalmente no Brasil.

‘Prometo Um Dia Deixar Essa cidade’ é um filme intenso, que tira o espectador da posição de conforto e que sabe que dramas são potencializados e se tornam mais poderosos dentro de uma relação aguda entre direção e atuação. Méritos para Aragão e, principalmente, para Bianca Joy Porte.

‘Anna’, de Massimo Sarchielli e Alberto Grifi. (Itália, 1975)

AnnaFilme impressionante (no sentido de maravilhamento provocado no espectador) dirigido por Massimo Sarchielli e Alberto Grifi, ‘Anna’ é um belo exemplo da forma como o cinema da primeira metade dos anos 70, depois do advento do cinema moderno dos anos 60 e dos cinemas novos na mesma década, lida de maneira radical com o processo de recriação e reconstrução do real como mecanismo central.

O longa é um extenso processo de aproximação, reconhecimento e compartilhamento entre a personagem central (a jovem Anna, de 16 anos de idade, grávida e moradora de rua) a câmera e a mise-en-scène orgânica e direta dos cineastas. Temos um filme em que o suporte – a gravação em vídeo transferida para 16 mm – torna o filme sensível em sua matéria, em sua estrutura física de registro e processamento de imagens. Um filme em que as imperfeições da captação em vídeo (uma novidade com poucos recursos no início dos anos 70), as texturas desse formato ampliadas e misturadas com a granulação do 16 mm torna o processo fílmico em um objeto físico de apropriação do real.

O tempo todo somos lembrados dessa existência física, material das imagens dentro do suporte. Os diretores partem desse fator e criam dispositivos distintos dentro do filme que expõem e questionam a apropriação que fazem da realidade e dos dramas que encenam e recriam. A agilidade dos movimentos de câmera permitida pelo uso do vídeo, sua capacidade de zoom e seus closes extremos dão uma inquietude constante na evolução do filme.

Os longos planos em que os personagens (Anna, os diretores, a equipe do filme e pessoas do círculo de amizade deles) discutem os mais variados temas, como nas impressionantes cenas captadas de maneira frontal dos debates políticos e sociais na Praça Navona em Roma, as cenas em que a intimidade de Anna é explorada em seus mínimos detalhes pela câmera (planos de seu corpo nu, de sua barriga de grávida, de seus seios de gestante) como na notável sequência em que a garota toma banho e um dos diretores caça piolhos em sua cabeça, bem como as passagens em que se discute o próprio processo da feitura do filme (com exposição dos microfones, falsos racccords e os debates sobre como serão rodadas uma sequência) tudo isso faz de “Anna’ uma explosão de realidade bruta na tela.

É interessante notar a relação que ‘Anna’ tem com o monumental filme de Robert Kramer ‘Milestones’ (1975), rodado e lançado na mesma época. O filme de Kramer tem proporções continentais e uma infinidade de personagens, enquanto ‘Anna’ se restringe a um universo bem mais fechado de espaços e personagens. Mas a relação de desnudamento e exposição de um momento sócio-político e cultural (tanto na Itália de Massimo Sarchielli e Alberto Grifi quanto nos EUA de Robert Kramer) atinge a mesma intensidade nos dois longas. E, ambos os filmes, remetem ao tratamento que o diretor francês Jean Eustache dá a apropriação do real, principalmente em filmes como ‘Les Mauvais Fréquentations’ (1963) e ‘A Mãe e a Puta’ (1973). Tudo isso, e muito mais que só se percebe ao assistir a o filme, faz de ‘Anna’ uma obra-prima.

 Mais alguns comentários sobre destaques da 38ª Mostra internacional de Cinema em São Paulo

Do Que Vem AntesDentro da programação da Mostra em 2014, vários filmes merecem críticas e análises. Entre esses, o excelente novo filme do filipino Lav Diaz, ‘Do Que Vem Antes’ (na foto ao lado), em que temos um trabalho impressionante de encenação, construção de planos e um tratamento primoroso do tempo. Um longa que elabora uma sofisticada reconstrução da memória dentro da história recente das Filipinas. Em um filme de 5 horas e 40 minutos, Lav Diaz constrói uma narrativa sólida, ancorada no poder das imagens, na força autônoma de cada sequência e em que nada é supérfluo. Nem um minuto sequer do longa existe sem uma razão e uma função. Sua duração é exata, o filme dura o tempo que precisa durar. Um dos grandes filmes de 2014.

‘Los Angeles Por Ela Mesma’, do americano Thom Andersen traça um painel da maneira como a cidade foi representada no cinema ao longo da história. A primeira parte é usada por Andersen para construir um painel sobre identidade, representações, espaços urbanos, arquitetura e evolução histórica de Los Angeles. Na segunda parte, o cineasta entra em análises complexas sob um viés político, social, simbólico, cultural e crítico da relação entre a cidade e os filmes que a retratam.

Outros longas merecem destaque: o uso originalíssimo e complexo que o mestre norte-americano do cinema experimental Ken Jacobs (com 82 anos de idade) faz do 3D em ‘Os Convidados’. Jacobs parte de um curta de 1896 dos irmãos Lumière para, por meio do uso de fotogramas desse curta em sobreposições de imagens que geram o efeito em três dimensões, fazer um estudo sobre perspectivas de quadro, função das imagens, profundidade de campo e da própria evolução da relação entre imagem e cinema ao longo dos tempos. ‘El Mudo’, filme peruano dirigido pelos irmãos Daniel e Diego Vega, faz um retrato seco e direto dos dilemas ético-morais que assolam as sociedades latino-americanas por meio da história de um juiz obcecado pelos valores do trabalho, da justiça e do direito. ‘Jauja’, do argentino Lisandro Alonso e com ótima presença de Viggo Mortensen como protagonista, é o melhor filme de Alonso desde ‘Los Muertos’ de 2004.

E ainda um destaque especialíssimo para a antológica sessão com três curtas (‘Lacrimosa’_de 1970, ‘O Porto de Santos’_de 1978 e ‘O Tigre e a Gazela’_de 1977) e o seminal longa ‘Noites Paraguayas’ (1982) do cineasta e fotógrafo Aloysio Raulino. Uma sessão toda em cópias 35 mm restauradas pela Cinemateca Brasileira.

 

Pequenas críticas de filmes da 38ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo (1)

Por Fernando Oriente

‘A Vida Invisível’, de Vítor Gonçalves (Portugal, 2013)

A Vida InvisívelSem dúvida, um dos melhores filmes dentro da Mostra desse ano. O longa de Gonçalves é um primoroso tratado sobre o tempo suspenso, a solidão e a incapacidade de agir. O protagonista Hugo vive imerso nesse tempo suspenso. Na inação e na solidão em que passas seus dias ele carrega o peso de um passado de memórias mal resolvidas, desencantos, rupturas e experiências deixadas por viver. Em meio a isso, ele enfrenta questionamentos existências sobre sua vida incerta como um foragido do mundo e receios em relação ao seu próprio futuro, que se refletem na morte iminente de um amigo de trabalho e nas impossibilidades de se relacionar com a mulher que ama.

Esse complexo tecido dramático é construído por Gonçalves por meio da força dos planos, em que a composição radical do quadro, a autonomia das sequências e as elipses narrativas gradualmente tecem uma carga dramática sensorial que se infiltra por toda a matéria do filme. Filme de sensações, em que tudo é sugerido pelo poder do discurso das imagens, pelo rigor como o quadro é geometricamente composto e na maneira como os planos são compostos como representações dos tumultos existenciais de Hugo.

‘A Vida Invisível’ traz um dos mais sofisticados tratamentos de luz vistos no cinema recente (comparável a ‘Cavalo Dinheiro’, de Pedro Costa – não acaso, os dois filmes são fotografados por Leonardo Simões). As sequências com luminosidade subexposta, a relação entre os focos de luz em meio a penumbras e sombras, o uso dramático dos ambientes escuros como reflexos da alma do protagonista, as diferentes texturas de luminosidade do quadro e as sequências em que a luz é abundante (seja no fundo do plano através de janelas ou em sequências a beira mar) são um dos pilares fundamentais da grandeza estética do filme.

Muitas das questões existenciais e dos elementos dramáticos (tratados com alto teor de sofisticação) e as opções estéticas de ‘A Vida Invisível’ remetem a temas caros para o cinema e a arte portuguesa, bem como lembram o rigor do quadro e o uso dos planos como agentes significantes presentes no cinema de Michelangelo Antonioni.

‘Noites Brancas no Pier’, de Paul Vecchiali (França, 2014)

Noites Brancas no PierComo era de se esperar, conhecendo o cinema de Paul Vecchiali, seu novo filme ‘Noites Brancas no Pier’ se confirma como mais um ótimo trabalho na carreira do diretor. Feito com orçamento baixíssimo, essa adaptação da novela curta de Dostoievski usa estruturas básicas de mise-en-scène, uma montagem enxuta feita a partir de elipses curtas e se apóia na força e nos sentidos paradoxais da palavra.

São várias cenas noturnas, em que um casal se conhece, tornam-se amigos e contam suas vidas um para o outro, noite após noite. Ele é um solitário que se encontra em fase de recolhimento, ela é uma jovem que aguarda o retorno do grande amor de sua vida. Na evolução do relacionamento entre os dois, em meio às vivências compartilhadas, ele se apaixona por ela e ela passa ver nele uma salvação para caso seu amado não regresse.

Tudo isso é encenado de maneira frontal e epidérmica por Vecchiali, com os personagens sempre em primeiro plano, dividindo a tela, ou com apenas um dos dois no quadro, enquanto o outro escuta próximo, mas fora de campo. O diretor trabalha esses primeiros planos pra dar ênfase ao texto falado, por vezes desfoca o ouvinte para deixar a nitidez naquele que fala e em outros momentos deixa quem está proferindo o discurso sob a luz enquanto aquele que ouve fica um passo a trás, na penumbra. Os diálogos são ditos em ritmo lento, ressaltando a sonoridade e as significações das palavras. Principalmente o personagem masculino diz seus textos de uma maneira antinaturalista (muito próxima ao estilo de Straub e Huillet) ao mesmo tempo em que ele evita demonstrar seus sentimentos por meio de gestos, expressões ou olhares. Os planos de fundo estão sempre fora de foco, aparecem como blocos de escuridão, luzes em flou, ou meras massas de cores opacas em meio à escuridão.

Trata-se de uma história de encontros e desencontros, recheada por vivências e experiências que os personagens carregam. São tipos frágeis, que vivem na incerteza do presente e nas dúvidas do que está por vir. Pessoas solitárias que projetam em seus sonhos uma variedade de esperanças tímidas, de possibilidades precárias. O que Vecchiali faz, com sua encenação direta e a força que coloca na palavra é oferecer dois seres humanos que representam toda uma humanidade que sonha, sofre, teme, mas sempre espera por algo que os tire da banalidade. Um verdadeiro banho de humanidade.

‘Salto no Vazio’, de Marco Bellocchio (Itália, 1980)

Salto no VazioUm dos melhores filmes da carreira de Bellocchio, o que já faz dele um dos imperdíveis da 38ª Mostra. Em ‘Salto no Vazio’, o cineasta italiano aborda um tema caro em sua obra: as relações tensas dentro do seio da instituição familiar e o caráter político que elas assumem. Temos no longa uma das mais radicais incursões de Bellocchio nesse terreno, um filme que trata a família burguesa como patologia e suas estruturas de dominação como expressão primal dos impulsos reacionários que comandam a sociedade. Além disso, ‘Salto no Vazio’ é um cruel retrato dos efeitos abjetos do machismo e do massacre psicológico e castrador sofrido desde sempre pela mulher.

Com uma encenação fortíssima, que carrega na complexidade das camadas narrativas para elevar as texturas dramáticas a extremos de tensão, Bellocchio usa estruturas alegóricas de sobreposição de tempos, referências à tragédia grega e ainda compõe um painel sobre os papéis políticos das classes sociais na Itália do final dos anos 70 e início dos 80, com o pano de fundo do choque (sempre fora de quadro e pouco mencionado na diegese) entre o conservadorismo democrata cristão, a presença de valores de anarquismo libertário e os ecos das ações das Brigadas Vermelhas e demais grupos de extrema esquerda, além da derrocada da representatividade dos partidos comunistas e socialistas tradicionais. Ao situar um drama íntimo em meio a uma instabilidade político-social de alta magnitude, Bellocchio faz de seu microcosmo dramático um fragmento que representa e amplia os valores e a significação da situação nacional italiana da época.

‘Winter Sleeps’, de Nuri Bilge Ceylan. (Turquia, 2014)

Winter SleepsCeylan é um caso raro no cinema. Após três filmes muito ruins – ‘Distante’ (2002) ‘Climas’(2006) e ‘3 Macacos’ (2008) – em que fazia emulações embusteiras do cinema moderno europeu, principalmente Antonioni, o diretor turco fez o bom ‘Era Uma Vez em Anatólia’ (2011). ‘Winter Sleep’, seu último longa em cartaz na Mostra desse ano, é mais um bom filme (embora inferior ao anterior), o que mostra que o cineasta encontrou uma maneira e um estilo de fazer um cinema sólido e autêntico em que faz fluir seus discursos e idéias.

Em seu novo trabalho, Ceylan volta ambientar todo o longa na região da Anatólia na Turquia. Seus dois últimos filmes mantêm um forte diálogo entre si. Se em ‘Era Uma Vez em Anatólia’ tínhamos elementos do cinema policial, em ‘Winter Sleeps’ Ceylan já dirige seu discurso para o terreno do drama familiar e social. Mas a relação entre as ações de tipos carregados pelo peso do passado, os conflitos reprimidos no interior dos personagens que rompem em tensões dramáticas cheias de ressentimentos e uma situação de confronto insolúvel entre classes sociais estão presentes de maneira epidérmica nos dois filmes. É notável como em fazer filme com duração maior (2hora e 37 minutos em ‘Era Uma Vez em Anatólia’ e 3 horas de 20 minutos em ‘Winter Sleeps’) Ceylan encontrou a maneira certa para desenvolver com firmeza suas narrativas e trabalhar bem as questões dramáticas dentro de uma relação mais bem construída com o tempo e os espaços dos planos e sequências.

‘Winter Sleeps’ chega a ter momentos fortíssimos, em que uma encenação sólida e uma decupagem funcional criam cenas marcantes, como as discussões cheias de crueldade e violência reprimida entre o protagonista e sua irmã e depois com sua mulher. As tensões familiares, a força dos conflitos entre os irmãos, a família afastada em um lugar atemporal no interior de um país dialogam diretamente com o universo de Anton Tchekhov, com quem o filme faz referências explícitas que merecem destaque até nos créditos finais. Nuri Bilge Ceylan virou um bom diretor, ‘Winter Sleeps’ é a prova que ‘Era Uma Vez em Anatólia’ não foi um acaso, e sim o momento em que Ceylan encontrou a força de seu cinema.

‘Non-Fiction Diary’, de Jung Yoon-Suk. (Coréia do Sul, 2013)

±¤ÁÖ ÁöÁ¸ÆÄÀÇ ÇöÀå°ËÁõEsse documentário sul-coreano faz um belo painel da história político-econômica e social recente da Coréia do Sul (sem deixar de contextualizar com épocas mais antigas na história do país) por meio de um fato principal (os assassinatos em série cometidos por um grupo de fanáticos) e dois paralelos (os desabamentos de loja de departamentos e de uma ponte). As três tragédias ocorreram entre 1993 e 1995, período em que a Coréia saia de um regime militar e entrava em uma democracia de orientação neoliberal. Outros assuntos são levantados durante o longa, como o perdão aos ditadores e seus crimes cometidos, questões envolvendo a exploração religiosa dos acontecimentos, a pena de morte na Coréia bem como os caminhos que o desenvolvimento acelerado trouxe para o país. É impossível ver o filme e não pensar no atual momento coreano, com sua economia inchada em meio à mega-corporações como Samsung e Hyundai, entre outras

O tema central no discurso do diretor Jung Yoon-Suk são os efeitos contraditórios e muitas vezes nocivos que o desenvolvimento capitalista traz para um país de terceiro mundo que se encontra em fase de crescimento econômico. Esses efeitos são sentidos por todos os lados e parecem ser inevitáveis consequências de imposições inerentes ao capitalismo, como as desigualdades sociais, a obsessão pelo lucro o descaso com a população em geral e a ausência de uma presença regulatória e protetora do Estado.

O filme é construído por meio de muitos depoimentos, mas ao contrário de inúmeros documentários que apenas acumulam testemunhos de forma rápida demais, esses depoimentos de ‘Non-Fiction Diary’ se relacionam entre si, ampliam as questões e os questionamentos levantados bem como sempre retomam temas e os aprofundam ainda mais. Imagens de arquivos bem editadas, textos impressos e imagens feitas nos dias atuais potencializam o caráter dialético do filme. ‘Non-Fiction Diary’ serve muito bem a nós brasileiros, principalmente se lembramos das políticas neoliberais insanas aplicadas por FHC no Brasil nos anos 90, na relação conivente que a Justiça brasileira tem com os criminosos da nossa ditadura que continuam impunes e nos conflitos que surgem decorrentes de desigualdades sociais aberrantes.

 

38ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo: dicas e apostas

38 MostraPor Fernando Oriente

A Mostra de 2014 começa com uma seleção bem forte. Vários cineastas de peso têm seus novos trabalhos na programação, vencedores de quase todos os principais festivais internacionais do ano serão exibidos nos 15 dias do evento em São Paulo e algumas pérolas do cinema poderão ser conferidas em cópias restauradas. Tudo isso a Mostra traz ano após ano, então vamos aos filmes recomendados pelo Tudo Vai Bem dentro dessa 38ª edição (alguns já assistidos e outros que chegam cercados de boas credenciais). Seguem pequenas críticas de filmes vistos, links para crítica de outros longas aqui mesmo no site e breves comentários sobre as apostas e os filmes que tem tudo para se confirmarem.

‘Noites Brancas no Pier’, de Paul Vecchiali (França, 2014)

Noites Brancas no PierPaul Vecchiali é um dos grandes cineastas vivos. Seus filmes foram pouquíssimo assistidos no Brasil, principalmente em cinema. Seu novo longa estar na programação da 38ª Mostra é motivo de celebração. Autor de filmes belíssimos como ‘Femmes Femmes’ (1974), ‘Corps à Coeur’ (1979) e ‘Rosa la Rose, Fille Public’ (1986), Vecchiali traz nesse seu ‘Noites Brancas no Pier’ uma adaptação da curta novela ‘Noites Brancas’, de Dostoievski. O livro já rendeu duas ótimas adaptações para o cinema feitas por nomes como Luchino Visconti e Robert Bresson. Vecchiali é um diretor do mesmo nível desses dois e seu filme já chega a Mostra como um dos mais imperdíveis do evento.

‘Acima das Nuvens’, de Olivier Assayas (França, 2014)

Acima das NuvensEm seu novo longa, Assayas recupera a força que tinha perdido um pouco em ‘Depois de Maio’, seu irregular trabalho anterior. Em ‘Acima das Nuvens’ temos novamente a encenação visceral do diretor francês, sempre com uma câmera inquieta e uma decupagem ágil. A intensidade narrativa e a carga dramática do filme se relacionam o tempo todo com uma sobreposição entre o tempo presente dos personagens e suas ações e a relação que eles mantêm com o passado e o que trazem desse passado, num jogo entre tempos distintos em que o processo de envelhecer (amadurecer) e encarar as marcas do que foi vivido (e deixado de viver) implica em escolhas e enfrentamentos num presente incerto cujas certeza são postas em dúvida por sensações de incompletude e uma falsa estabilidade emocional.

Esses conflitos são colocados por Assayas dentro da relação entre as cenas que vemos na tela e o peso que o extracampo traz (sejam as memórias, as relações mal resolvidas, as imaturidades e o medo de envelhecer da personagem de Juliette Binoche; bem como o que o diretor apenas sugere, deixando a complexidades dos tipos ainda mais abertas). No filme, a atriz interpretada por Binoche aceita participar de uma peça que fez quando tinha 18 anos. Só que dessa vez, ela interpretará a personagem mais velha do texto (uma mulher de 40 e poucos anos que se destrói por amor e obsessão por uma jovem que a seduz). Aqui Assayas faz da relação da protagonista com as duas mulheres da peça uma projeção sobre suas texturas emocionais: ela é as duas ao mesmo tempo, uma se projeta na outra, e a vivência da personagem de Binoche faz com que sua relação com as duas protagonistas da peça ganhe novos contornos constantemente e se projetem sobre o momento em que vive.

Ao fazer Binoche ensaiar a peça com sua jovem assistente vivida por Kristen Stewart (muito bem no papel) a relação entre as personagens da ficção e da vida real se sobrepõe e muitos conflitos são sugeridos, mas Assayas também os mantém no fora de quadro, seja por elipses ou por cortes bruscos. Ao lerem o texto, Binoche e Stewart projetam as relações ficcionais do texto no cotidiano em que vivem, e as relações de poder que estão na peça são subvertidas em um jogo em que dominadora e dominada invertem papéis. Mas o grande mérito de Assayas é compor toda essa dramaturgia densa de uma maneira sugestiva, evitando excessos emocionais e indicando caminhos muito mais do que os explicitando. A presença sempre ótima de Binoche em cena aumenta ainda mais a força do filme. Não é o melhor Assayas, mas ‘Acima das Nuvens’ está dentro da lista de belos filmes assinados pelo diretor.

‘Anna’, de Alberto Grifi e Massimo Sarchielli (Itália, 1975)

A cópia restaurada dessa obra-prima pouco conhecida do cinema italiano é um dos programas imperdíveis da 38ª Mostra. Os diretores Alberto Grifi e Massimo Sarchielli acompanham a vida de uma jovem dependente química grávida de 16 anos que eles tiram das ruas e trazem para morar com eles. As relações entre a câmera dos cineastas, sua personagem e os espaços e ações a que ela está inserida são de uma força poucas vezes vista no cinema.

‘Falstaff – O Toque da Meia Noite’, de Orson Welles (Espanha/França, 1965)

Um dos filmes mais pessoais de Welles e considerado seu melhor trabalho por muitos, ‘Falstaff’ será exibido em cópia recém restaurada. Essa obra-prima do cineasta norte-americano, rodada na Espanha, utiliza-se de vários textos de Shakespeare para refletir sobre questões existenciais do homem e os próprios processos criativos que marcaram a carreira de Welles.

‘Os Convidados’ de Ken Jacobs (EUA, 2014)

Um longa em 3D em que o formato é o principal elemento na composição do filme. Jacobs parte de um dos trabalhos dos irmãos Lumière ‘Entrada de Um Casamento na Igreja’ (1896) para construir cenas fragmentadas em 3D que refletem elementos da construção de imagens e das relações entre planos e sobreposições de representação imagética.

Os três longas de Victor Erice

Com apenas três longas em uma carreira que teve início em 1961, com o curta ‘En La Terraza’, o cineasta catalão Victor Erice dirigiu um dos filmes seminais do cinema europeu moderno, ‘O Espírito da Colméia’ (1973). Além desse filmaço, a 38ª Mostra exibe os outros dois longas do diretor, ‘O Sul’ (1983) e ‘O Sol do Marmelo’ (1992). Três filmes poderosos que fazem parte dos obrigatórios da Mostra desse ano.

‘Um Cão Andaluz’ (1929) e ‘A Idade de Ouro’ (1930) de Luis Buñuel

Também em cópias restauradas, os dois curtas de Buñuel representam marcos do cinema que influenciaram questões estéticas e materiais do próprio fazer cinema. Filmes indispensáveis.

‘O Segredo das Águas’, de Naomi Kawase (Japão, 2014)

O Segredo das ÁguasO cinema pessoal e cheio de características particulares da diretora Naomi Kawase está representado em quase todos os seus elementos centrais em ‘O Segredo das Águas’. O longa, o melhor da diretora desde ‘Floresta dos Lamentos’ (2007), trata dos temas principais de sua obra: uma busca constante pelos aspectos metafísicos da Natureza (tanto física, quanto existencial), o deslocamento constante em direção a uma ascese espiritual do mundo, a relação orgânica entre os ciclos da vida e um tratamento muito característico que a diretora dá à questão da morte e suas implicações, sempre de forma sensível, em que a passagem da morte, por mais que possa ser dolorida, assume aspectos transcendentais que vão além da finitude dos indivíduos.

No filme, que se passa em uma ilha do Japão em que os espaços da Natureza tornam-se personagens dos dramas e contrapontos do interior dos personagens, temos dois jovens protagonistas, um garoto e uma garota de 16 anos de idade. A adolescência, o descobrir dos fluxos da vida e da finitude dos seres a que os dois estão inseridos são contrapostos com o desabrochar do erotismo e a relação que eles mantêm com a natureza, principalmente o mar. Mar e sexo são elementos constitutivos do que de mais básico a vida traz, são formas de estar no centro das pulsões da existência.

A câmera de Naomi se mexe constantemente, mas sempre em busca de um enquadramento revelador, que posiciona e reposiciona seus tipos em cena e contextualiza suas presenças dentro do espaço físico das ações. A presença constante de imagens da Natureza (o mar, árvores, florestas, morros) serve para reforçar o discurso da diretora. Acrescentam e dialogam dialeticamente em imagens silenciosas (recheadas de ruídos ou suaves melodias) com o que os personagens pensam, sentem e falam, bem como suas dúvidas diante um universo que transcende a materialidade dos ambientes em que vivem. O belo trabalho de luz serve para ampliar a significância das imagens, ressaltam elementos e pontos do quadro. Não existe no cinema de Naomi Kawase a busca pelo belo vazio, seus filmes são densos em sua simplicidade, não tem nada a ver com a inércia tão comum em filmes contemplativos e rasos que a cada ano tomam o circuito com a frouxidão ancorada no esplendor de sequências publicitárias da beleza de paisagens que nada dizem.

O domínio da natureza dos espaços de Kawase não fica restrito a paisagens naturais, a sequência em que o jovem protagonista vai a Tóquio encontrar o pai mostra como a diretora tira o máximo de densidade de espaços construídos e caóticos como as ruas de uma das maiores metrópoles do mundo. ‘O Segredo das Águas’ não é a obra-prima da diretora, título que fica com o longa ‘Shara’ (2003), mas é sem dúvida um dos mais belos filmes na seleção da Mostra desse ano.

‘Com os Punhos Cerrados’, de Pedro Diogenes, Luiz e Ricardo Pretti (Brasil, 2014)

Um dos melhores filmes brasileiros do ano, em que os diretores retomam o vigor, as questões estéticas e o discurso de seus filmes anteriores, os poderosos ‘Estrada para Ythaca’ (2010) e ‘Os Monstros’ (2011). Leia crítica do Tudo Vai Bem para ‘Com os Punhos Cerrados aqui

Vencedores dos principais festivais de 2014

Do Que Vem AntesEntre os vencedores de grandes festivais internacionais desse ano que estão na programação da 38ª Mostra, o Tudo Vai Bem aposta mais em ‘Do Que Vem Antes’ (foto ao lado), novo longa do cineasta filipino Lav Diz e vencedor do Festival de Locarno 2014. Diaz é um belo cineasta, teve uma retrospectiva completa de seus filmes na Mostra do ano passado e seu novo filme chega a São Paulo após vencer filmes fortíssimos que estiveram na seleção do festival suíço desse ano. Já o ganhador do Leão de Ouro no Festival de Veneza 2014, Um Pombo Pousou Num Galho Refletindo Sobre a Existência’, do diretor sueco Roy Andersson, pode ser uma boa pedida, já que Andersson é um cineasta interessante, mas longe de ser brilhante. Em seu currículo ele tem dois filmes bons ‘Songs from the Second Floor’ (2000) e, principalmente, ‘Vocês, os Vivos’ (2007).

O vencedor da Palma de Ouro em Cannes 2014, ‘Winter Sleep’, do turco Nuri Bilge Ceylan, pode ser uma boa escolha dentro da programação da Mostra, já que as informações que nos chegam é que o longa está mais próximo do interessante trabalho anterior do diretor ‘Era Uma Vez em Anatólia’ (2011) do que de seus fraquíssimos filmes mais antigos: ‘Distante’ (2002) ‘Climas’(2006) e ‘3 Macacos’ (2008).

Longas do Festival de Brasília 2014

Cinco filmes, dos seis que competiram no Festival de Brasília desse ano, serão exibidos pela 38ª Mostra. Dois deles são muito bons, ‘Ela Volta na Quinta’, de André Novais e ‘Branco Sai. Preto Fica’, de Adirley Queirós. Os outros três ‘Brasil S/A’, de Marcelo Pedroso, ‘Pingo D’Água’, de Taciano Valério e ‘Ventos de Agosto’, de Gabriel Mascaro vão de irregulares a medianos. Leia críticas do Tudo Vai Bem para todos os filmes do Festival de Brasília 2014 aqui

Mais algumas dicas e apostas

A retrospectiva com três filmes do cineasta japonês Noboru Nakamura é bem recomendada pelo amigo, crítico e professor Sérgio Alpendre, o que já vale para conferir os filmes. Outro crítico e professor com gosto de primeira, o amigo Filipe Furtado indica o filme ‘Los Angeles Por Ela Mesma’, do diretor americano Thom Andersen, um longa que faz uma viagem pela forma como a cidade foi representada durante a história do cinema.

Entre outras apostas do Tudo Vai Bem estão ‘As Noites Brancas do Carteiro’, o novo trabalho do cineasta russo Andrei Konchalovskiy (diretor do ótimo ‘Expresso para o Inferno’ de 1985), e ‘Prometo Um Dia Deixar Essa Cidade’, o mais recente filme do diretor pernambucano Daniel Aragão, que tem a atriz Bianca Joy Porte em uma atuação poderosa.

 

Primeiras impressões sobre ‘Cavalo Dinheiro’, de Pedro Costa, e um pouco do Festival do Rio 2014

Cavalo DinheiroPor Fernando Oriente

O novo longa de Pedro Costa, ‘Cavalo Dinheiro’, chega às telas após oito anos em que o diretor trabalha no filme. É a volta de Costa ao monumento cinematográfico que iniciou em ‘No Quarto da Vanda’ (2000) e teve sequência com ‘Juventude em Marcha’ (2006). A espera e a expectativa provocadas pelos oito anos em que o cineasta trabalhou nesse ‘Cavalo Dinheiro’ se confirmam da maneira mais positiva. O filme é uma das grandes realizações da década e amplia ainda mais a obra de Pedro Costa como cineasta fundamental na cinematografia contemporânea mundial.

Tudo o que existe de bom (de ótimo) em seus filmes anteriores voltam ainda mais fortes em ‘Cavalo Dinheiro’. Uma evolução dramática mais densa, mais soturna e com uma carga nos conflitos mais intensa dos que nos filmes anteriores, o que não faz de ‘Cavalo Dinheiro’ superior a ‘No Quarto da Vanda’ ou ‘Juventude em Marcha’, apenas uma evolução natural dentro da obra de um cineasta rigoroso na forma como dá continuidade a um projeto tão ambicioso e pessoal como o formado por esses três filmes em conjunto.

Costa parte da matéria que construiu seus longas precedentes: a relação entre o meio em que seus tipos estão inseridos com o peso histórico das vivências lá estabelecidas, a questão da miséria e exclusão social dos pobres, negros e imigrantes, o sofrimento sem voz de inúmeros trabalhadores que vieram a Portugal para serem mão de obra barata e nesse processo colheram apenas dores e traumas. O quanto essa gente não teve sequer possibilidades de participarem dos processos históricos pelo qual Portugal passou desde a Revolução dos Cravos de 1974. A implicação existencial que a vida em favelas e conjuntos habitacionais tem com o cotidiano de exclusão desses tipos.

A extrema complexidade e sofisticação da mise-en-scène de Pedro Costa, sentidas na construção dos quadros, na firmeza de composição dos planos em que enquadramentos, distâncias de câmera bem como a relação entre a disposição em cena dos tipos e objetos e a forma como isso se relaciona com o trabalho assombroso da luz na fotografia e com as opções pelos fundos de quadro implicam e ampliam a força dos discursos, seja o do cineasta ou os que ele dá voz pelas falas dos personagens. Ventura, figura central de ‘Juventude em Marcha’ tem uma entrega ainda mais intensa à dramaturgia do filme, tanto física, quanto emocional e simbólica.

O filme todo é Ventura em uma espécie de purgatório, em que se relaciona com sobreposições constantes de seu passado, seja por meio de lembranças, seja por encontros físicos com os fantasmas desse seu passado calcado no sofrimento. O cinema de Pedro Costa tem terreno fértil dentro de composições políticas de leitura, que estão presentes em tudo o que vemos na tela. Cada um de seus planos é composto como pinturas em que a relação geométrica do quadro, as variações dos focos de luz, as cores e os posicionamentos em cena não são meros exercícios formais, e sim elementos propulsores da dramaturgia e estruturas muito bem pensadas para amplificar os discursos e movimentos internos do filme.

‘Cavalo Dinheiro’ é recheado de sequências impressionantes, como os encontros entre Ventura e a viúva de um antigo colega, os passeios do personagem pelas ruínas de fábricas em que trabalhou, a reconstituição alegórica de uma violenta briga que ele teve com outro imigrante cabo-verdiano nos anos 70 (e os encontros entre os dois pelos corredores e salas do hospital que representa o limbo a que foram renegados), seus deslocamentos por passagens escuras em meio a escombros de um subterrâneo fantasmagórico que posicionam Ventura nas entranhas de um mundo para o qual ele foi impelido e a monstruosa sequência do elevador (que já havia sido vista como um segmento do filme ‘Centro Histórico’ e que o diretor remontou para a parte final de ‘Cavalo Dinheiro’), além de um plano final que dificilmente será apagado da memória de qualquer espectador que tiver o prazer de assistir a essa nova obra-prima de Pedro Costa.

Essas foram apenas algumas primeiras impressões sobre ‘Cavalo Dinheiro’, um filme que pretendo voltar em uma crítica mais extensa após uma mais que necessária revisão.

Festival do Rio 2014

Algo raro em qualquer festival de grande porte, como o Fest Rio e a Mostra internacional de Cinema em São Paulo, aconteceu comigo nesses dias em que passei no Rio de Janeiro vendo filmes. Foram oito longas assistidos, sendo sete muito bons e apenas um fraco, ‘Sangue Azul’, de Lírio Ferreira. Muito disso se deve ao fato de ter selecionado, além do filme de Pedro Costa, longas das retrospectivas de Michael Cimino e do cinema mexicano (que marcou presença na edição desse ano com belos melodramas dos anos 30 e 40), além de ter assistido a ‘O Cheiro da Gente’, novo trabalho de Larry Clark (diretor que gosto bastante apesar da irregularidade de seus filmes) e da excelente surpresa que tive ao ver o ótimo ‘Carvão Negro’, do diretor chinês Diao Yinan.

Michael Cimino

O Ano do DragãoCimino é um dos grandes realizadores do cinema e pude ver cópias belíssimas dos dois filmes dele que mais gosto: ‘O Portal do Paraíso’ (1980) e ‘O Ano do Dragão’ (1985). Cimino é um diretor que constrói seus filmes a partir das entranhas de seus personagens e dos dramas que eles vivem. Toda sua encenação é de uma passionalidade impressionante e faz da exploração das muitas camadas de seus tipos e dos conflitos gerados por elas a matéria de um cinema político frontal e epidérmico.

Em ‘O Ano do Dragão’, temos um dos mais fiéis retratos da falência ética e ideológica dos anos Ronald Reagan na década de 80 nos EUA. Tanto protagonista como antagonista (o policial de Mickey Rourke e o mafioso chinês que ele persegue de maneira paranóica) são dois lados da mesma moeda. Agem por impulso, individualismo e de maneira extremista. A violência é atávica, é forma de autodeterminação. Nenhum dos dois tem o menor respeito por códigos de conduta e não demonstram a menor consideração por nada e ninguém. Seguem apenas seus objetivos, passam por cima de tudo em um filme em que a política direitista e o racismo da era Reagan estão incrustados no DNA dos personagens, da dramaturgia e da própria encenação. Tudo explode na cara do espectador, Cimino põe tudo na superfície da tela, não tem meio termo e nem travas. É uma descida ao inferno dos personagens, feita de perdas, sangue e impulsos incapazes de serem controlados. Cada fotograma do filme é cinema político, é força primal do cinema puro.

Já em ‘Portal do Paraíso’, temos os mesmos elementos constitutivos dos personagens e dos dramas, mas aqui Cimino ainda elabora um discurso sobre a formação identitária dos Estados Unidos, em que a violência de classes e a imposição do poder econômico moldam uma nação que se encontra em pleno momento de expansão para se tornar a maior potência político-econômica do mundo (o filme se passa na última década do século 19). Além disso, Michael Cimino realiza um filme com fortes elementos do cinema de Luchino Visconti, tanto na composição dos planos como na relação dos conflitos de classe e na presença de valores da formação intelectual aristocrática do protagonista, que pretende se desprender de seu meio para participar de um processo de formação de uma nação que passa a ser construída por imigrantes, pobres e uma insipiente pequena burguesia.

Carvão Negro

O filme chinês foi uma grata surpresa dentro do Festival do Rio 2014. Embora tenha ganhado o Urso de Ouro no último Festival de Berlim, o histórico recente de premiações desse festival é motivo para suspeitas. Mas o longa de Diao Yinan é de uma força inquestionável e conta como uma encenação precisa, planos muito bem compostos e sequências vigorosas, além de uma evolução dramática bem conduzida. Um dos bons filmes lançados nesse ano.

 

Indie 2014 traz retrospectiva de todos os filmes de Eugène Green, um dos maiores talentos do cinema mundial

INDIE 14_logo_01Por Fernando Oriente

Um dos mais importantes festivais de cinema do país, o Indie, chega a sua 14ª edição em 2014 e traz dentro da programação desse ano uma retrospectiva completa com todos os filmes do cineasta Eugène Green. Green, nascido em Nova York, construiu toda sua carreira na França e é, sem a menor sombra de dúvida, um dos melhores autores do cinema contemporâneo. O Indie 2014 acontece de 3 a 10 de setembro em Belho Horizonte e de 17 de setembro a 1º de outubro em São Paulo.

O cinema de Eugène de Green é composto por uma rigorosa mise-en-scène em que o diretor dá um tratamento especial a relação entre campo e contra-campo que visa destacar a importância dialética da palavra, além de imprimir um ritmo sensorial à encenação que busca os elementos do sublime e da transcendência metafísica nas relações entre personagens, espaços e a temporalidade em que estão inseridos. Um trabalho minucioso no uso da luz, no destaque às cores, referências barrocas e uma direção de atores que busca o anti-naturalismo nas interpretações também aumentam a sofisticação e a originalidade com que Green constrói seus filmes.

Serão exibidos no Indie os cinco longas e três curtas de Green. Entre eles, o mais recente longa-metragem do diretor, ‘La Sapienza’, que integrou a seleção oficial do Festival de Locarno desse ano. Todos os seus filmes são ótimos, coisa rara no cinema, com destaque para ‘Todas as Noites’ (2001), ‘A Ponte das Artes’ (2004) e ‘A Religiosa Portuguesa’ (2009).

O Indie 2014 também traz uma retrospectiva completa de outro cineasta de destaque no cenário cinematográfico internacional, o catalão Albert Serra. Cineasta premiado em diversos festivais pelo mundo, Serra é adorado por parte da crítica e dos cinéfilos, mas encontra resistência entre um grupo de críticos que torce o nariz para seus trabalhos. Eu, particularmente, gosto de seus filmes, principalmente ‘Honra dos Cavaleiros’ (2006) e ‘O Canto dos Pássaros’ (2008).

Completa a programação do Indie, uma série de filmes recentes de diversos países. Entre os principais destaques estão o novo longa do ótimo cineasta japonês Kiyoshi Kurosawa, ‘O Sétimo Código’ e o documentário ‘Nick Cave – 20.000 Dias Na Terra’, de Iain Forsyth e Jane Polland, que retrata o cotidiano de um dos mais seminais artistas das últimas décadas, o cantor, músico e escritor Nick Cave.

Apenas em Belo Horizonte, o Indie traz dentro de sua programação a Mostra Indie Brasil, que conta com filmes brasileiros recentes e clássicos do nosso cinema. O principal destaque dessa mostra é o raríssimo longa ‘Memórias de um Estrangulador de Loiras’, filme genial dirigido por Julio Bressane em 1971 durante sua passagem por Londres. O filme, que será exibido em cópia 35 mm restaurada recentemente, é um dos trabalhos mais radicais de Bressane, realizado logo após o período em que ele e Rogério Sganzerla produziram a série de filmes pela produtora Belair no Rio de Janeiro em 1970. Filmes esses que estão entre o que de melhor o cinema mundial já viu.

Mais informações sobre o Indie 2014: http://www.indiefestival.com.br/ 

Os 10 melhores filmes do primeiro semestre de 2014

stray-dogsPor Fernando Oriente

 

Aqui está a lista dos dez melhores filmes que estrearam em São Paulo no primeiro semestre de 2014. Estão incluídos apenas inéditos filmes recentes. Não considerei lançamentos de filmes em cópias restauradas, mostras, sessões especiais ou festivais.

Sim, o Tudo Vai Bem gosta de listas. Embora sejam reducionistas em questões críticas e de análises, são boas para contextualizarem filmes, gêneros, tendências e cineastas em determinados períodos ou mesmo ao longo da história.

 

Os 10 melhores filmes do primeiro semestre de 2014

 1-      ‘Cães Errantes’, de Tsai Ming-Liang. (Taiwan)

2-      ‘O Gebo e a Sombra’, de Manoel de Oliveira. (França/Portugal)

3-      ‘Avanti Popolo’, de Michael Wahrmann. (Brasil)

4-      ‘Jersey Boys – Em Busca da Música’, de Clint Eastwood. (EUA)

5-      ‘Os Dias Com Ele’, de Maria Clara Escobar. (Brasil)

6-      ‘Hotel Mekong’, de Apichatpong Weerasethakul. (Tailândia)

7-      ‘Riocorrente’, de Paulo Sacramento. (Brasil)

8-      ‘Sob a Pele’, de Jonathan Glazer. (Reino Unido)

9-      ‘A Imagem que Falta’, de Rithy Panh. (Camboja/França)

10-  ‘Uma Relação Delicada’, de Catherine Breillat. (França)

 

Copa 2014: sobre a primeira fase

Copa-do-Mundo-2014Por Fernando Oriente

A primeira fase da Copa do Mundo 2014, a fase de grupos, surpreendeu a todos que esperavam mais um mundial com equipes fechadas e jogos com poucos gols. É uma unanimidade entre os que acompanham o torneio que a qualidade dos jogos está boa. O que não implica, necessariamente, em partidas de alto nível técnico ou seleções jogando um grande futebol. O que impressiona é a opção pelo ataque, os jogos com muitos gols, confrontos emocionantes e grandes exibições de alguns jogadores.

As melhores equipes dessa primeira fase, as que jogaram o melhor futebol, foram França, Holanda, Colômbia e Chile. Embora todas essas tenham tido momentos irregulares, seja na atuação displicente em ritmo de treino que a equipe francesa fez contra o Equador, na incapacidade do Chile em ser objetivo e se defender da força holandesa ou na demora dessa mesma Holanda para encaixar seu jogo tanto no primeiro tempo contra a Espanha quanto no jogo contra a Austrália. De todos esses destaques, quem foi mais regular e manteve o alto nível nos três primeiros jogos foi a Colômbia, mesmo sem Falcão Garcia, sua principal estrela, ausente da Copa por contusão, muito disso de deve ao trabalho do técnico Jose Pekerman e ao jogo coletivo de alta performance.

A Costa Rica jogou duas ótimas partidas contra Uruguai e Itália, mostrou uma qualidade boa tática, alguns jogadores com talento e um treinador de alto nível como Jorge Luis Pinto, capaz de alterar esquemas táticos durante um mesmo jogo e ler com precisão o adversário em campo. Alemanha tem um grande time, mas só se apresentou bem contra Portugal, embora tenha feito jogos razoáveis, mas aquém do esperado, contra Gana e Estados Unidos.

Entre os melhores jogadores da fase de grupo, os destaques foram Robben pela Holanda, James Rodrigues na Colômbia, Pogba e Matuidi na equipe francesa, Messi na Argentina (pelos gols, pelos passes e tabelas, espaços criados no meio campo e no ataque, pelo poder de decisão e, logicamente, pelo talento incomparável do argentino, o melhor jogador do mundo e um dos maiores da história do futebol) e Aranguiz do Chile.

Neymar teve uma atuação ótima contra Camarões, mas não jogou bem contra o México e teve um segundo tempo fraco contra a Croácia. Pirlo teve uma exibição de gala contra a Inglaterra, mas não encaixou seu jogo contra Costa Rica e Uruguai. Luís Soares foi arrasador contra a Inglaterra, mas não apareceu contra a Itália. Van Persie jogou muito em momentos isolados, sempre que exigido, mas não participa tanto do jogo como outros jogadores da seleção holandesa. Luis Gustavo faz uma ótima Copa, apesar se suas limitações técnicas e Thiago Silva, embora venha jogando bem, não está à altura de seu melhor futebol, aquele que o faz, talvez, o melhor zagueiro do mundo na atualidade.

A Argentina é uma equipe que não rendeu o que pode nesses três primeiros jogos. Teve Messi genial, um Di Maria razoável e uma equipe ainda fora de compasso e com espaços entre os setores. Os problemas de defesa devem ser corrigidos e a movimentação e aproximação no setor ofensivo têm tudo para serem ajustados para o restante do mundial.

Já a seleção brasileira mostra sérias limitações. Não tem meio de campo, embora a entrada de Fernandinho contra Camarões tenha melhorado o setor, mostra incapacidade de ligação entre defesa, meio campo e ataque, conta com dois laterais em péssimos momentos (especialmente Daniel Alves, um dos piores jogadores desse mundial), falta de opções no ataque, com Fred e Oscar mal em campo, e, para piorar, a equipe brasileira parece não ter opções para mudanças táticas e para modificações de esquema e estilo de jogo. Com exceção de Hernanes e William, não existe no banco de reservas nenhum jogador capaz de acrescentar algo positivo ao time. Algo que lembra muito o Brasil de 2010.

É mais do que necessário destacar a excelente cobertura que os canais ESPN fazem da Copa 2014. Com uma equipe ótima de analistas e comentaristas, debates e mesas redondas de alto nível, bom humor, convidados especiais que sabem muito de futebol e uma capacidade crítica e de análise impressionantes. Além de oferecerem as melhores transmissões dos jogos, com narração segura, comentários pertinentes e sem o oba-oba ufanista e o humor forçado de outros canais.

E para fechar sobre essa primeira fase. Linda a classificação da boa e talentosa seleção da Argélia. Pena a eliminação de Gana e Costa do Marfim, equipes cheias de talentos, mas muito mal organizadas em campo.

Impossível não destacar alguns sérios fatos que acontecem fora dos campos. Prisões arbitrárias, manifestantes agredidos, vendedores impedidos de trabalhar, zonas de exceção onde o país perde autonomia para FIFA e seus patrocinadores, entre outros absurdos. E uma torcida brasileira nos estádios capaz de encher de vergonha a qualquer um com bom senso, com sua postura coxinha, seu elitismo, seu constrangedor canto “sou brasileiro com muito orgulho e muito amoooor” e a incapacidade de incentivar o time e torcer, além de um desfile cafona de Vips insignificantes e suas selfies.