cinema brasileiro

‘A Cidade dos Abismos’, de Priscyla Bettim e Renato Coelho

Por Fernando Oriente

O centro de São Paulo se tornou um mito no cinema, como também na literatura. Essa mitologia em torno de um espaço degradado surgiu a partir dos anos 1960, quando a região central da maior cidade do país iniciou seu processo de deterioração. Até a década de 1950, o centro paulistano era pujante, frequentado pelas classes médias e altas, que ao mesmo tempo continha uma população pauperizada em seus cortiços e pequenos edifícios. mas que não impediam a circulação das classes abastadas em seus bares, boites, cafés, restaurantes, doceiras, cinemas e teatros. A degradação desse espaço alimentou uma nova relação da classe artística com a região central de SP, que no caso do cinema se traduziu no cinema marginal (ou de invenção) e depois nos filmes da Boca do Lixo. A Rua do Triunfo era o local onde se encontravam as produtoras e distribuidoras de filmes. Por seus quarteirões andavam cineastas, fotógrafos, roteiristas, montadores, produtores, bem como atrizes e atores que trabalhavam diretamente tanto nos filmes de invenção quanto nos longas da Boca dos anos 1960, 1970 e 1980. Mas isso acabou. Hoje a Rua do Triunfo não tem mais nenhum vestígio desse mundo cinematográfico, mas existe na mitologia de um cinema incontornável que marcou a cinematografia paulistana e brasileira.

Em 2023 o centro de São Paulo é habitado por moradores de rua, dependentes de crack, prostitutas, travestis e pequenos traficantes, além de trabalhadores pobres, ao mesmo tempo em que abriga artistas, poetas, escritores, intelectuais e membros da classe média que se recusam abandonar a região e lá ainda moram, seja no Edifício Copam, nos prédios das Avenidas São Luís e Viera de Carvalho ou na regiões do entrono da Praça da República e do Largo do Arouche.

Essa longa introdução é necessária para nos aproximarmos desse ótimo primeiro longa de Priscyla Bettim e Renato Coelho. Em ‘A Cidade dos Abismos’ o centro de SP é tão personagem quanto os tipos que dentro dele interagem. E o vazio é a marca central, esse vazio espacial e simbólico da região que se transporta para as existências dos personagens.

No longa temos uma pequena narrativa fragmentada que se desenrola em torno de quatro personagens que habitam a região central de SP – duas travestis, uma restauradora de filmes que trabalha na Cinemateca e um imigrante africano dono de um boteco fuleiro. Uma das travestis é assassinada no bar do africano e os outros três personagens passam a investigar por conta própria os autores desse crime. A grandeza do filme está em não se ater apenas a essa evolução dramática e promover uma mescla de situações alegóricas, que vão desde a entrada em cena de personagens marginais desse tecido urbano degradado do centro paulistano – que surgem na tela como arquétipos, recitam poesias diretamente para a câmera, ou apenas se movem como presenças fantasmáticas dentro desse vazio urbano -, passando por um sonho de uma personagem que é narrado e depois encenado, pela presença fantasmagórica da travesti assassinada que surge em cena perambulando pelas ruas e praças sujas e deterioradas, por um bizarro Papai Noel que no dia de Natal, em plena Cracolândia, troca brinquedos por pedras de crack e por momentos de puro experimento com imagens – com cenas captadas em super 8 que registram as ruas, calçadas e fachadas de casas e prédios do centro e que são apresentadas em velocidade acelerada e montadas por justaposições e fusões de planos.

O primeiro longa de Bettim e Coelho é um filme híbrido, em que a pequena narrativa é constantemente intercalada por experimentos com as texturas da imagem  – o filme todo é captado em película; 16mm na maioria das cenas, super 8 nas sequências mais experimentarias e 35mm em uma única cena em que uma das protagonistas canta ao lado do personagem vivido por Arrigo Barnabé -, por planos e sequências alegóricos, por uma constante inversão entre o colorido e o preto e branco, além de textos em voz over que penetram o espaço diegético. A filiação de Bettim e Coelho é o cinema de invenção, o experimental – tendo ‘Limite’, de Mario Peixoto, como o marco zero na genealogia do cinema experimental brasileiro. O longa de 1931 de Peixoto, esse cânone do cinema mundial, é citado em imagens mais de uma vez ao longo do filme.

Mas mesmo nesse deleite de imagens e sons que ‘A Cidade dos Abismos’ oferece, a dupla de realizadores consegue promover uma perfeita junção entre o alegórico e o discurso dramático centrado na presença desses quatro personagens centrais, seu vazio existencial, as relações de pequenas afeições que surgem entre eles e a fragilidade de suas existências que os conduzem a um desfecho trágico, onde a morte violenta nada representa para a “sociedade”. São vazios existências que ao serem eliminados da forma mais brutal somem da mesma forma como viveram, num limbo sócio-existencial. É o centro de São Paulo que abriga ao mesmo tempo que engole e faz desvanecer esses seres.

‘A Cidade dos Abismos’ promove uma verdadeira imersão no tecido urbano do centro de São Paulo, tanto em sua materialidade quanto em sua simbologia – e aqui, o fato do longa ser captado em películas de diferentes formatos permite uma primorosa valorização sensória do grão da imagem impresso na tela. Entre as cenas  alegóricas e experimentais, temos belos momentos de encenação dos dramas dos quatro protagonistas, filmados em ângulos fechados e planos de situação – que oferecem uma sensação de aprisionamento espacial e existencial desses personagens -, um registro pujante dos espaços cênicos, assim como de diálogos lentos, dos silêncios e de deslocamentos por ruas e becos, bem como por uma interação entre esses personagens em que rasgos de amizade e empatia afloram em meio a conversas corriqueiras e o desejo de descobrir os assassinos da travesti. Para completar, temos participações especiais de figuras marcantes da identidade cultural e social da cidade de São Paulo como Arrigo Barnabé (que assina a trilha sonora original do filme), o poeta Claudio Willer, o ator e encenador Marcelo Drummond (principal nome do Teatro Oficina depois de Zé Celso) e do padre Julio Lancelotti.

Mas talvez o maior triunfo desse belíssimo filme seja a valorização do plano cinematográfico pelos seus diretores. O plano não apenas como significante, mas como locus da potência da imagem; de tudo que ela carrega por si só – tanto como discurso dramático, discurso simbólico-alegórico, quanto como devir da luz e do movimento; bem como espaço onde a palavra e os ruídos são impressos de forma centrífuga e centrípeta – a partir do interior do campo em expansão ao extracampo e ao ante-campo e do fora de quadro para o interior do quadro. É desse mínimo denominador comum do filme – o plano – que ‘Cidade dos Abismos’ se ergue para o encanto sensorial do espectador.

O primeiro longa de Priscyla Bettim e Renato Coelho tem os pés firmes em nosso tempo, mas constantemente se desloca genealogicamente em direção a elementos constitutivos do cinema de invenção, do experimental, do cinema da Boca e de artistas que encarnam a metrópole paulistana em suas próprias presenças. ‘A Cidade dos Abismos’ transborda em suas imagens e sons essa cidade caótica e sua região central e reforça a mitologia do centro paulistano, mas de maneira inventiva, orgânica e autêntica, onde a visão dos realizadores foge de clichês e preconceitos e retira uma beleza de onde menos se espera, sem mascarar a realidade concreta de um espaço deteriorado e abandonado, do vazio e das existências que nele sobrevivem.

Publicidade

‘Marte Um’, de Gabriel Martins

Por Fernando Oriente

Se o afeto – uma das emoções mais básicas e uma das afecções mais fortes na constituição da subjetiva humana – foi muitas vezes trabalhado pelo cinema brasileiro contemporâneo como uma muleta dramatúrgica (que servia para esconder deficiências e limitações discursivas de uma série de filmes), podemos afirmar que ele – o afeto – foi resgatado como potência, como um elemento composicional orgânico pelos jovens cineastas mineiros, que há mais de uma década realizam o que de melhor nosso cinema vem produzindo. Não querendo eliminar desse horizonte os belos filmes produzidos Brasil a fora – seja no Ceará, em Pernambuco, em São Paulo, no Rio ou em Brasília -, as obras que saem de Minas Gerais – dirigidas por nomes como André Novais, Affonso Uchoa, Juliana Antunes, Gabriel Martins, Maurílio Martins e João Borges, entre outros –   formam cada vez mais um corpo de filmes que conseguem traduzir dialeticamente tanto a realidade socioeconômica brasileira, bem como os conflitos individuais inseridos dentro da totalidade das relações sociais presentes no país.

Nestes retratos potentes da conjuntura brasileira que caracterizam os filmes mineiros contemporâneos, o afeto entra como elemento composicional mediador entre a subjetividade autoconsciente dos personagens e seus conflitos e tensões diante de uma realidade social marcada pela crescente superexploração da força de trabalho e da deterioração das condições materiais de vida da classe trabalhadora – a classe social a que pertencem os personagens desses filmes. Mas afeto aqui não é clichê piegas, nem rebaixamento das relações sociais entre os sujeitos dramáticos a um subjetivismo individualista apartado da totalidade do real concreto, onde afetividade seria apenas uma fuga desse real e uma espécie de horizonte final limitador, no qual esses tipos seriam condenados a um conformismo afetivo resignado e alienante. Afeto para os jovens realizadores mineiros é uma força propulsora, que faz seus personagens seguirem adiante, encarando e questionando criticamente o massacre a que são submetidos pelos mecanismos de exploração do capitalismo depende brasileiro, tendo em vista não apenas sua sobrevivência, mas também formas de superar seus problemas, nas quais o afeto entra um elemento de identificação de classe, seja dentro do núcleo familiar, seja no interior da comunidade em que vivem.  

Uma identificação de classe que surge mesmo em um mundo em que a consciência de classe é cada vez mais excluída do horizonte da classe trabalhadora, desarmada cada dia mais pela capitulação dos partidos tradicionais de esquerda à ordem liberal burguesa, bem como pela impotência dos sindicados – dominados pela pelagagem burocrática de seus principais dirigentes –  e dos movimentos populares diante da ofensiva brutal do capital em meio a crise estrutural em que estamos metidos.

Toda essa contextualização introdutória torna-se necessária para nos aproximarmos de ‘Marte Um’, segundo longa de Gabriel Martins – uma obra na qual tudo o que descrevemos acima faz-se presente de maneira notável. No filme temos um retrato fiel e orgânico de uma família de classe média baixa, onde Wellington (o pai) trabalha como porteiro de um prédio de luxo, enquanto Tércia (a mãe) é faxineira diarista. A filha mais velha, Eunice, estuda direito e dá aulas particulares e o caçula, Deivid, frequenta o ensino fundamental, joga futebol em um time de várzea e deseja se tornar astrofísico, nutrindo o sonho de participar de um projeto de colonização do planeta Marte.

Em meio à dureza do emprego com salário rebaixado de Wellington e na instabilidade do trabalho intermitente de Tércia, a condição financeira da família piora a cada dia. Diante desse processo de deterioração material de suas condições de existência e subsistência, a vida real segue e, por mais estremecimentos e confrontos que surjam entre os quatro membros dessa família, é o afeto como potência agenciadora e força mediadora entre eles que os mantém unidos e os fortalece.

E a vida segue. Eunice decide mudar-se para um apartamento com sua namorada (uma jovem que pertence a uma família mais rica) e deixar a casa dos pais, uma decisão que não é muito bem recebida por eles. Ao mesmo tempo, Deivid luta contra a obsessão do pai em fazê-lo seguir carreira no futebol, nutrindo o sonho de que o sucesso do filho como jogador profissional pode ajudar economicamente a família, bem como dar um sentido material concreto à paixão exacerbada de Wellington pelo futebol. Mas para o garoto, seguir no esporte significa abrir mão de seu desejo de estudar astrofísica.

A complexidade das contradições socioeconômicas dentro das quais a subjetividade dos quatro protagonistas estão inseridos é aprofundada por novos elementos dramáticos que vão se acumulando organicamente dentro do discurso narrativo. Após um trauma sofrido durante uma pegadinha televisa na qual foi vítima, Tércia passa a sofrer de crises de ansiedade que escancaram sua fragilidade, fazendo com que pense que foi amaldiçoada e que com isso passaria a trazer influências negativas para aqueles que ama. A obsessão de Wellington em fazer do filho um jogador profissional passa a ameaçar seu emprego, já que o faz deixar de se dedicar de maneira subserviente ao trabalho – no qual além de mal remunerado, é explorado pela síndica do prédio, que o faz trabalhar de graça cuidando de seu apartamento durante suas saídas. Enquanto isso tanto Eunice quanto Deivid têm de enfrentar a resistência dos pais em relação aos rumos que pretendem dar a suas vidas.

Gabriel Martins se utiliza de maneira precisa desse repertório de pequenas situações dramáticas que se entrelaçam, nas quais a realidade concreta se choca com as limitações materiais, bem como com os desejos de autodeterminação subjetiva de seus personagens, para compor um retrato complexo das dificuldades que o real concreto impõe à vida de uma família típica da classe trabalhadora brasileira contemporânea. ‘Marte Um’ parte de dramas individuais e interligados dentro da existência precária de seus protagonistas para relacioná-los à totalidade das relações sociais do país. Por meio de uma aproximação meticulosa e afetuosa à existência individual de cada personagem, o filme aprofunda uma observação crítica sobre o Brasil. O próprio sonho de Deivid em fazer parte de uma missão de colonização de Marte – que poderia ser visto como mero devaneio alienante de um adolescente – adquire uma função concreta, uma metáfora potente que carrega em seu simbolismo a vontade de um jovem pertencente as camadas subalternas de transformar e superar os limites impostos a sua classe pelo sistema de exploração do capital.

A mise-en-scène de Martins concentra-se na captura realista – não meramente naturalista – de seus personagens, tanto de suas ações quanto de seus aspirações. A câmera procura sempre o rosto destes personagens, priorizando o registro das situações dramáticas por meio de ângulos fechados, em closes que permitem que as expressões faciais dos tipos refratem seus sentimentos, dúvidas, angústias, frustrações e desejos. A encenação se detém nos significantes contidos em cada gesto, em cada olhar, bem como na franqueza das falas e na força dos diálogos. Uma mise-en-scène do essencial, onde as formas de composição são interdependentes e nada é excessivo ou destoante.

‘Marte Um’ é um filme que a encenação de Gabriel Martins condiciona a forma a partir de um conteúdo dramático-discursivo que dialeticamente engendra essa própria forma fílmica; a construção formal existe a partir e para o conteúdo do discurso. Trata-se de uma enunciação realista que sabe abrigar – dentro de sua constante reflexividade crítica sobre as relações sociais no pais e a situação de classe de seus personagens, que se dão dentro da totalidade do real concreto da conjuntura nacional – os pequenos dramas, o valor social, subjetivo e ao mesmo tempo transformador que cada personagem carrega dentro de si, mesmo que forma latente.

E ao final do longa nos vemos diante dos quatro membros da família sentados juntos no quintal da casa, quatro vidas individuais imensas em sua potencialidade humana universal, e que diante da fragilidade material e da insegurança em relação ao futuro de que são vítimas, encontram no afeto um elemento aglutinador e a partir do qual essa família não só se mantém unida como se potencializa para enfrentar as adversidades, não de forma resignada, mas como nas palavras de Wellington para seu filho; “A gente dá um jeito”. Um afeto que dá sustentação emocional e material para enfrentar a realidade e lutar para transformá-la, mesmo sem saber por onde começar.

‘A Felicidade das Coisas’, de Thais Fujinaga

Por Fernando Oriente

Em seu primeiro longa, a cineasta paulistana Thais Fujinaga consegue atingir uma contundente potência realista. A partir de situações dramáticas corriqueiras, o filme apresenta reflexos que remetem à realidade social e econômica do Brasil nos anos 2010, bem como as determinações com que essa realidade afeta a subjetividade de seus personagens. “A Felicidade das Coisas’, dentro de sua evolução narrativa e sua construção discursiva, oferece pontuais arestas para o espectador relacionar o que vê na tela com mundo concreto em que ele próprio vive. A relação, e seu conjunto de mediações, ente o particular e o universal, entre a evolução diegética do discurso fílmico e a totalidade dentro da qual estas relações se dão, compõem subsídios daquilo que Lukács considerava como elementos determinantes para a verdadeira força contida na ficção realista.

O longa acompanha Paula, uma mulher de 40 anos, grávida de sete meses e que passa uma temporada com seus dois filhos e sua mãe na modesta casa de praia da família em Caraguatatuba, litoral norte de São Paulo. O principal objetivo de Paula, durante esses dias, é instalar uma piscina no jardim da casa. Essa tarefa se torna quase uma obsessão para a protagonista, que vê nesse ato de consumo – a piscina – um escape para os problemas de sua rotina. Um dos grandes méritos de Thais Fujinaga é introduzir esses problemas de forma natural e progressiva no interior do cotidiano banal da família em férias, que surge na tela em cenas isoladas, intercaladas por pequenas elipses.

Gradualmente o espectador passa a perceber que a família passa por problemas econômicos, que a relação entre Paula e o marido (que se encontra em São Paulo e não aprece no filme) está distante e fria, que seu filho pré-adolescente sente falta do pai e deseja, cada vez mais, se descolar do núcleo familiar e experimentar a vida por conta própria, bem como a mãe de Paula se mostra ausente e alienada dos problemas da vida filha.

A piscina, e sua trajetória ao longo do filme, assume um papel dramático tanto material quanto simbólico. Ela canaliza os desejos e as contradições que Paula enfrenta em sua vida. Vai de promessa de felicidade e diversão à consumação da impossibilidade de se obter isso. As determinações concretas da situação econômica do país são muito mais determinantes e condicionantes da realidade objetiva em que Paula e sua família estão inseridas do que qualquer desejo subjetivo.

Por meio de uma construção discursiva coesa e uma mise-en-scéne que apreende nas cenas elementos das relações materiais imantes que se dão no interior da realidade concreta de seus personagens, Fujinaga consegue remeter os dramas nucleares de uma família de classe média à totalidade da conjuntura socioeconômica do país. A crise financeira da família faz com que Paula não tenha dinheiro para comprar os materiais básicos para que a piscina seja instalada e, pior ainda, não possa terminar de quitar o valor pago em prestações por essa piscina – devido ao fato que seu marido, em São Paulo, usou esse dinheiro reservado para pagar dívidas mais urgentes.

Thais Fujinaga não concentra todo o discurso fílmico nesses problemas financeiros de Paula, eles simplesmente aparecem recorrentemente na diegese como uma força exteriorizada que vai minando aos poucos a precária estabilidade emocional dessa mulher, uma típica representante da classe média remediada do Brasil, que sente cada vez mais os efeitos das crise do capital que passou a determinar a existência da imensa maioria da população brasileira a partir do inicio da década de 2010, mas que tem suas raízes bem anteriores a este período.  

As cenas diretamente ligadas aos problemas financeiros da família não estão ausentes do filme, elas apenas surgem como sequências de mesmo valor diegético que as demais, e são sempre intercaladas pelos momentos em que o dia a dia corriqueiro dos personagens ocupa a tela. Mas o peso crescente da falta de dinheiro constantemente contamina e cria novas tensões latentes que se incorporam ao cotidiano desses personagens. A construção progressiva das dificuldades econômicas que oprimem Paula surgem em cenas em que a vemos discutindo com os instaladores de piscina, tentando negociar mais barato os materiais para a fixação da piscina no jardim, pedindo mais tempo ao vendedor para quitar as parcelas que deve e conversando com o marido por celular (ou via troca de mensagens) – em que cada uma dessas conversas mostra, por um lado, a falta de dinheiro e as dívidas do casal, e, de outro, como a relação entre eles está apartada e conflituosa.

Outo ponto alto do filme é a forma como a diretora consegue, em todas as cenas do longa, por meio de sua encenação precisa, impregnar as situações dramático-narrativas de um realismo objetivo-imanente – em que percebemos a total naturalidade destas situações e a interação orgânica dos personagens com os ambientes em que estão inseridos. Por outo lado – por meio de olhares, frases esparsas, fragmentos de diálogos ouvidos no extracampo (uma recorrência constante ao longo de todo o discurso fílmico) – o filme expande a atomicidade do cotidiano da família em direção dialética aos elementos externos e totalizantes que determinam uma ameaça ao equilíbrio familiar.

As opções de mise-en-scéne de Thais Fujinaga – como a ótima escolha pela predominância de planos de conjunto e planos de situação (com a câmera afastada à distância média dos personagens e suas ações), intercalados com eventuais closes e planos gerais -, uma abordagem direta e frontal das situações dramáticas, a boa direção de atores, o domínio da evolução dramático-narrativa na construção da enunciação, o compromisso com a materialidade dos personagens e dos espaços, entre outros elementos formais-discursivos muito bem utilizados, deixam claro o talento da diretora para imprimir realismo e densidade em seu filme, bem como, a partir desse realismo, englobar camadas e mais camadas que extrapolam as questões presentes na narrativa.

E não é nenhum clichê afirmar que ‘A Felicidade das Coisas’ é um belo longa de estreia que aponta para um futuro muito promissor para a carreira da cineasta.

‘Jovens Infelizes’, de Thiago B. Mendonça

Por Fernando Oriente

‘Jovens Infelizes ou Um Homem Que Grita Não É Um Urso Que Dança’ é um filme cuja força, paradoxalmente, vem da sua incapacidade em dar conta de suas temáticas, da impotência de tonar um enunciado urgente em discurso imagético-sonoro coeso. No fato de ser refém do cinema político e marginal dos anos 60 e 70 sem conseguir emular o que esses filmes traziam de urgente para as novas demandas dos dias de hoje. É o que fica no meio do caminho entre intenção e realização que conta aqui, são o processo e o gesto que se destacam. O que retemos conosco ao final do filme é a clara sensação de que a arte não basta e talvez nunca tenha sido capaz de mudar as coisas. Em seus grandes momentos, o cinema e as outras expressões artísticas fazem pensar, apontam caminhos, são abrigos para o mal-estar do mundo. Mas para quantas pessoas? Apenas para uma elite intelectual, para os que não compactuam com o estado de coisas ou aquelas e aqueles que tem oportunidade (e sorte) de romper com o massacre do discurso oficial da indústria cultural e ver além da banalização dos produtos para consumo obediente e inofensivo do grande mercado da cultura e do entretenimento. ‘Jovens Infelizes’ não pertence a esse restrito grande momento do cinema, mas é certo que isso passava longe de ser a intenção de seus realizadores. E por isso mesmo faz pensar. Deixa claro em qual ideologia se acredita – e o que se defende e o que se combate -, incomoda com seus lugares comuns e na explicitação de sua impotência. Pelas fissuras de seus “defeitos” vemos o reflexo do caos do mundo que nos cerca, vemos a refração de nossos próprios fracassos e impossibilidades.

Jovens Infelizes

O filme tateia por clichês da ação política e do ser de esquerda, torna explícito como uma máquina capitalista sem rosto trucidou ao longo das últimas décadas os discursos revolucionários e as utopias que sonham com uma nova ordem social não capitalista. Se, como diz um dos personagens do filme, “Transformaram a utopia em uma puta velha que vende sonhos baratos” o que resta aos socialistas não é mudar o nome de sua crença, abandonar ideologias ou tentar se adaptar ao sistema com novos termos e pregar uma integração inclusiva ao neoliberalismo. O que resta fazer é abraçar essa puta velha e juntos fodermos os sonhos em um hedonismo melancólico, até nos acabarmos na “petite mort” que segue o orgasmo, no vazio destrutivo e depressivo de uma derrota já anunciada. Porque é só pensando e fazendo e, no caso de ‘Jovens Infelizes’, filmando e montando, que podemos manter a arte e a política em um constante movimento, em um vir a ser. É urgente sobreviver na impotência e no fracasso do agir, do pensar e do falar. É mais digno e menos canalha do que perecer na capitulação. Vale muito mais um filme imperfeito e démodé que abraça os lugares comuns do niilismo romantizado da negação do status quo do que uma obra moribunda que realce os valores que sobrevivem nos “corações puros”  da idealização de explorados obedientes que seguem vivendo tentando amar um amor sem tesão e espalhando afetos de propaganda de banco.

Esse primeiro longa de Thiago B. Mendonça foi realizado e se mantém preso ao calor dos protestos iniciados em 2013 pelo Movimento do Passe Livre contra o aumento das tarifas nos transportes e que foram seguidos por mais protestos, contra a repressão e a violência da polícia militar até as manifestações do “não vai ter Copa”.  O que o filme tenta trabalhar são as inquietações políticas e artísticas representadas pelos protagonistas e que antecederam e extrapolaram esse momento histórico. Esse fora de campo que hoje podemos notar (e não se inclui como extracampo imediato do longa – que foi finalizado no início de 2016) se inicia no processo de cooptação pela direita das manifestações de rua, que foram transformadas em micaretas com milhões de pessoas fantasiadas de verde amarelo, camisas da seleção da CBF, bandeiras da pátria, hino nacional e um repertório moralista anticorrupção (seletiva), contra os direitos identitários e de negação à política institucional.  Se hoje, em início de 2019 – após a eleição de uma horda de extrema direita alucinada, em meio a promessas de uma radicalização ultraliberal da economia e numa cruzada violenta contra direitos e costumes e um anti-intelectualismo demencial – ainda nos vemos sem entender de onde saiu isso tudo, é mais do que natural que ‘Jovens Infelizes’ reflita uma sensação de incapacidade em traduzir seu momento histórico, o estado de coisas a que seus personagens (e seus realizadores) estão inseridos. Por isso o filme tenta se segurar nos elementos seguros de um cinema de esquerda feito no século passado. Esse engessamento reverencial ao cinema de invenção das décadas de 1960 e 70 e o apego ao que hoje seria uma espécie de manual da vida à margem do sistema (representada pelo grupo de artistas/ativistas que conduzem o filme) impedem o filme de apontar caminhos políticos mais fortes, tanto estética quanto discursivamente, como conseguem longas recentes como ‘Sol Alegria’, de Tavinho Teixeira, ‘Era Uma Vez Brasília’, de Adirley Queirós e ‘Os Sonâmbulos’, de Tiago Mata Machado.

O filme é repleto de opções óbvias, mas não por isso menos honestas e portadoras de verdades. Personagens que são cada qual a representação de uma crença, um limite e uma ideia que formam o todo fragmentado do filme, tal qual cada fragmento/persona desse grupo de personagens é um pedaço de uma utopia incerta a que o filme se dedica com uma paixão verdadeira para em seguida se deixar morrer abraçado a esse objeto de desejo e representação. Temos a constante exaltação e múltipla representação do sexo como mecanismo de prazer subjetivante, ação de poder e contestação dogmática-moralista; performances de rua que expõe o maniqueísmo reacionário e excludente da sociedade dos “homens de bem”, o refúgio de um bar onde o samba, a bebida, as conversas e a nostalgia dos grandes revolucionários marxistas que marcaram o século 20 são constantemente enaltecidos, a participação dos personagens em manifestações e a fiel tentativa do grupo em criar arte revolucionária, seja por meio de peças de teatro, performances ou vídeos. Como tudo isso não basta e em meio a uma total falta de rumos (extremamente honesta ao momento histórico em que nos encontramos), Thiago B. Mendonça insere longos diálogos e discursos em que as personagens divagam sobre arte e ação política e termina a jornada de seus protagonistas em uma ação suicida de sequestro, encenada como uma performance político-terrorista.

'Jovens Infelizes ou Um Homem Que Grita Não É Um Urso Que Dança'

Tudo o que vemos na tela tornou-se um lugar comum em que a esquerda tenta fazer suas manifestações artístico-culturais. O excesso desse discurso claustrofóbico da falta de sentido é evidente, mas não impede que ‘Jovens Infelizes’ seja um filme necessário e tenha sua força, que apresente personagens marcantes em suas caricaturas e imperfeições e potentes cenas isoladas em meio a um desarranjo discursivo. Nem que seja para ser visto apenas como um compêndio de intenções estéticas e discursivas exauridas e da constante falta de saber o que fazer em que o país se encontra. É fácil julgar e apontar essas imperfeições, mas é notável a vontade por uma sinceridade artista e política que Mendonça e seus colaboradores (na excitação e nas limitações de um primeiro longa-metragem) têm em trabalhar esses lugares comuns, em imprimir em imagem e texto suas posições íntimas e sua visão geracional de Brasil, nem que seja para exaurir tudo e deixar claro seus esgotamentos.

Dentro dessa sinceridade almejada por Mendonça, o filme deixa explícita a distância entre a prática política de uma elite intelectual de classe média e as classes populares, a incapacidade de uma esquerda artístico-politica em dialogar com o que antes era chamado de massas e hoje adquiriu novas terminologias como multidão e precariado. Para quem que os personagens discursam? Para que público o filme é destinado? A bolha em que vivem os protagonistas é a mesma a que o filme é relegado; esse dilema, esse fardo, pesa tanto para as ações e ideias dos tipos representados na tela, quanto para o filme em si. E essa frustração transcende o que vemos em cena e nos coloca nus diante ao fato de que a arte, a política e o cinema militante fala apenas para e com uma parcela mínima da sociedade. O desafio de romper essa barreira é uma das impossibilidades mais explícitas em ‘Jovens Infelizes’.

O que o longa e seu diretor reafirmam em meio às imperfeições e fracassos dos personagens e do próprio filme é que a luta da esquerda e da arte também está no processo, no fazer, no errar e no tentar. Em ser ridicularizada, tornada fora de moda, em suma, em ir até o fim e se acabar num vazio sem esperança, mas que deixa um incômodo, uma semente, um pensamento tênue de que as ações, assim como o filme que acabamos de ver, representam algo que se aproxima do tornar em ato e fala uma ideia que não temos clareza, um sonho imperfeito de uma arte política que precisa extravasar e vir à tona, com sua impotência e seus clichês à gritar que tudo está fora do lugar.

‘Temporada’, de André Novais Oliveira

Por Fernando Oriente

Ficcionalizar o real (o contingente da vida dada) sempre foi o fio condutor do cinema de André Novais. Em seu primeiro longa, ‘Ela Volta na Quinta’ (2014) bem como em seus curtas, Novais partia de um registro orgânico de sua própria realidade – sua cidade de Contagem, sua casa, o bairro em que vive, seus pais, irmão, amigos e namorada, bem como seu trabalho como cineasta, roteirista e produtor. Era a partir desse cotidiano material e simbólico que se tensiona em direção ao registro documental que ele inseria a ficção, o artifício de situações e dramas criados para encenar um imaginário que se descolava do real vivido e se movia em direção a uma realidade quimérica, representada, criada e reinterpretada. Nesse seu segundo longa-metragem, ‘Temporada’, André Novais move-se de maneira mais intensa à ficção, abandonado as temáticas autobiográficas (a auto-ficcionalização que marca seus trabalhos anteriores), mas em momento alguma deixa de lado o registro orgânico de um mundo imanente e material em que a representação nasce e transborda a partir do que está intrínseco ao universo cotidiano. O que torna ‘Temporada’ um grande filme é a capacidade ímpar de Novais em imprimir pela encenação uma força transcendente aos dramas, aos espaços captados pela câmera, às texturas dos personagens e o que de mais imprevisível e autêntico situa-se na relação dos tipos com o meio em que estão, consigo mesmos e no contato com o outro. É o cinema pegando a vida em sua aparência e lhe enchendo de uma transcendência que transborda pelas beiradas da temporalidade e da espacialidade das imagens. A vida é isso, mas é muito mais, basta ver, basta sentir, basta experienciar – basta filmar.

temporada

A relação entre a câmera de André Novais com os personagens é toda baseada na presença física dos tipos e na relação que eles estabelecem com os ambientes em que estão inseridos –  e, principalmente, no que existe de transcendente, tudo aquilo que pode ser maior, mais complexo e inexplicável e que está por trás e para além de uma existência banal. Cada situação dramática, por mais singela que seja, é composta por uma minuciosa captação de gestos, de olhares, de falas e silêncios. O naturalismo das ações e dos espaços são potencializados pela composição serena dos quadros, em que a imagem valoriza o ser humano sem estetizar corpos ou espaços. Os enquadramentos são pensados para que o universo diegético seja apresentado de maneira frontal, sem distorções espaciais ou tensionamentos forçados do olhar. Cada personagem, cada casa, rua ou objeto são vistos num registro seco e direto do mundo aparente. E novamente os meios usados por André Novais para pôr em cena a dramaturgia conseguem imprimir em cada imagem a complexidade da existência – as asperezas, as porosidades, os fracassos, a resistência, os pequenos prazeres, o humor, a solidão e a fragilidade dos desejos.

Os tipos que vemos fazem parte de qualquer cidade do país. São pessoas comuns, com aparência comum. Sem glamour, heroísmos, existencialismos rasteiros ou maniqueísmos de bom e mal. Juliana, a protagonista (em uma interpretação iluminada de Grace Passô), é uma mulher que acaba de se mudar para Contagem para trabalhar como funcionária pública no combate a endemias, enquanto seu marido se prepara para abandonar o emprego e se juntar ela na nova cidade. Rapidamente ela se insere no grupo de trabalho. Todos os personagens que integram esse núcleo dramático do filme dividem características comuns. São solitários, insatisfeitos com o baixo salário, se divertem em conversas durante o expediente, em idas ao bar, num banho de cachoeira, em pequenas visitas que fazem entre eles ou a parentes e amigos. Não existe ninguém envolvido em um relacionamento estável. São solteiros, divorciados. Não tem filhos ou estão distantes deles. Surge entre esses personagens amizades provisórias, fugazes. O estar com o outro é sempre passageiro, incapaz de romper a solidão. ‘Temporada’ valoriza os encontros, mas não cria humanismos rasos em que o outro é capaz de aniquilar uma constante sensação do estar só. São vidas precárias, fios de esperança em meio a um existir opressivo que nada mais pode oferecer do que uma trepada esporádica, uns copos de cerveja, um jogo de videogame, ou risadas tímidas.

'temporada'

Ao mesmo tempo em que o estar junto e as pequenas solidariedades tornam menos áspera a vida, nada é garantia de uma existência plena. Constantemente os personagens são assombrados por perdas do passado, pela sensação do tempo que passa, por situações de ruptura que desestabilizam relações já condenadas, por novos acontecimentos que os forçam a se adaptar à novas necessidades O mundo contemporâneo é desencantado, a transcendência está no fluído, no passageiro, num gesto que se esboça e logo depois se esvanece nos tempos mortos. O resto é se adaptar, aceitar perdas, se abrir a novos encontros breves e tentar sobreviver – nem que seja tornando-se um empreendedor de si e abrindo uma barbearia para poder aumentar a renda e sustentar um filho recém descoberto.

A força de ‘Temporada’ está no paradoxo que escapa da simplicidade objetiva da narrativa, montada em elipses. O que temos é a contradição entre uma afirmação frágil da vida – de que é possível sobreviver com um mínimo de subjetividade em meio aos pequenos gestos, nos encontros esporádicos, nas risadas, no desejo contido e no prazer momentâneo – e a constatação irrefutável de que o viver hoje é estar em situação de insegurança, solidão, sem garantias de estabilidade emocional ou material. André Novais não cai na pieguice disfarçada de afirmar a vida de maneira acrítica, de pregar que o sujeito em si é bom e que tudo pode ser superado numa relação horizontal com o outro. Não, ‘Temporada’ deixa claro que o mundo contemporâneo oprime, destrói relações sólidas (casais separados, pai e filha incapazes de conversar, superficialidade que conduz as amizades) e que o estar sozinho pode ser suportável e bastar por si só, mas nunca é algo que preencha a totalidade do ser. A leveza das situações e dos diálogos é entremeada pela constante sensação de fragilidade e melancolia que estão impregnadas em cada personagem. Um sorriso é sempre acompanhado de olhar inseguro, cada encontro é interrompido pelo imperativo de voltar a estar só. Mas sempre em movimento e aberto ao imprevisível que se esconde em toda situação banal – o que apenas os cineastas de rara sensibilidade para “pôr em cena” são capazes de imprimir em suas imagens.

‘Câmara de Espelhos’, de Dea Ferraz

Por Fernando Oriente

Em meio a um considerável número de ficções e documentários que abordam temas urgentes em seus enunciados e discursos, o longa ‘Câmara de Espelhos’, de Dea Ferraz, é um dos mais notáveis e bem-sucedidos. Trabalho de registro documental sofisticado, o filme trabalha as possibilidades múltiplas de tencionamento do dispositivo, tanto na realização como na montagem e no processo de recepção que é oferecido aos espectadores. O machismo atávico, endêmico e estruturante da sociedade brasileira é exposto de maneira complexa, ao mesmo tempo que direta e objetivamente. Um filme político em que o campo da cultura e dos costumes formam o campo de batalha.

Grupos de homens (todos voluntários para participarem do projeto) de diferentes idades, classes sociais e raça reúnem-se num cenário construído que se configura como um dispositivo cênico – uma “caixa” em que, sentados em sofá e poltronas são cercados por sugestivos objetos de decoração, espelhos e uma televisão que projeta vídeos sobre os quais eles devem comentar. Os vídeos têm sempre a mulher e o feminino como tema; a relação do feminino com o imaginário social, seja em esquetes de humor, telenovelas, vídeos do Youtube, reportagens jornalísticas, videoclipes, trechos de shows musicais, filmes e programas evangélicos, entre outros. A violência misógina explícita de algumas das imagens se articulam com trechos de falas de mulheres de destaque na sociedade – presidentas, chefes de estado ou intelectuais como Simone de Beauvoir -, além de fragmentos de passeatas de grupos feministas como a Marcha das Vadias.

O principal mérito do filme é fazer com que, ao comentarem as imagens e temas propostos pelos vídeos que assistem, esses homens se desloquem progressivamente entre a performance calculada de si que fazem por saberem que estão sendo filmados (e as micro-ficções que procuram encenar) para um constante desligamento da presença da câmera, o que os permite falarem e darem vazão sem freios  a suas reais ideias e impressões sobre as mulheres; a espontaneidade e a banalidade com que encaram e reafirmam suas posturas passa dominar o tecido narrativo das conversas. É nesse ponto que o machismo vem à tona. Por mais que tentem se policiar, a misoginia, a posição de superioridade em relação à mulher que está presente na própria construção subjetiva de suas identidades passa a tomar conta dos discursos. Alguns pisam em ovos, desconfortáveis, outros se entregam abertamente à posição de opressor e dominador que define o homem na sociedade patriarcal que estamos mergulhados. Mas todos, sem exceção, revelam-se em seus diferentes graus de machismo.

As discussões, frases isoladas ou conversas descambam para um desnudamento que naturaliza as relações de poder estruturantes em que o homem sempre se acha superior à mulher. Moralismo, preconceito, desprezo, cinismo, violência, arrogância e intolerância são os pontos comuns da falação, bem como da performance de todos os personagens do longa. A montagem potencializa as relações de fala desses homens – ao deixar as discussões correrem soltas pela duração das cenas e pela total não interferência nos debates, ao mesmo tempo em que cortes pontuais nos levam a novas situações, discussões e temas.

Como não poderia deixar de fazer, aqui eu me coloco como homem em relação à matéria e ao discurso do filme. Por mais que tente (e tentar não é nunca o suficiente) a desconstrução de meu machismo, muito da misoginia desses homens também me acompanha e fazem parte de mim. Minhas boas intenções não são nada. O que me cabe, bem como aos homens que assistirem a ‘Câmara de Espelhos’ é nos questionarmos constantemente, nos projetando e sendo refletidos pelo que vemos na tela. Para as mulheres o longa é mais um explicitamento das relações de violência e dominação cultural, social e política que vivenciam e a que estão expostas diariamente. É esse processo, tanto de desnudamento da misoginia atávica quanto do confronto com a posição de superioridade do macho, que é o centro e a força do filme de Dea Ferraz. Um longa desconcertante, que escancara o óbvio que a grande maioria da sociedade finge não ver ou prefere jogar para baixo do tapete. ‘Câmara de Espelhos’ é um murro na hipocrisia de todos nós.

‘A Filosofia na Alcova’, de Ivam Cabral e Rodolfo García Vázquez

Por Fernando Oriente

O conceito de “libertinos libertários”, busca nos atos, na ação e no fazer eróticos um processo de enfrentamento dos limites impostos ao gozo e aos prazeres humanos, um confronto contra a moral das instituições estabelecidas como Família, Religião e Estado. Erótico como algo que abrange não só a sexualidade, mas evoca relações e modos se ser, existir e sentir. É no sexo puro, na busca pelo prazer sem limites, na violência da carne, na dominação e na entrega ao outro, no gozo ligado a dor, que existe toda uma teia de possibilidades de autoafirmação, uma existência materialista que rompe com dogmas e leis e, por fim, uma real hipótese de se atingir a liberdade de ser. São esses aspectos da libertinagem, centrais na obra de seu mais famoso representante, o Marquês de Sade, que encontramos o enunciado central do segundo longa da trupe teatral Os Satyros.

‘A Filosofia na Alcova’, co-dirigido por Ivam Cabral e Rodolfo García Vázquez, chega como um manifesto contra o moralismo, uma ode à liberdade, mas em momento algum estamos diante de um filme que não problematiza as relações de poder, a opressão e as hierarquias estruturais envolvidas e mantidas nesse processo. É nesse paradoxo, apresentado (felizmente) de maneira celebratória e sem julgamentos morais, que o filme destaca e exalta primeiro as possibilidades de libertação e negação da moral e dos poderes estabelecidos. Mas, ao mesmo tempo, estão impressos no discurso do filme as relações de poder na sociedade que, mesmo na libertinagem, são sempre mantidas. São os mais poderosos que dominam, aniquilam, convertem e subjugam os mais fracos. Por mais que mulheres poderosas e libertinas sigam seus desejos, e se autodeterminem no gozo, existe sempre um homem (um macho, um falo) acima delas, mais poderoso, que as domina direta e indiretamente. Aqueles de classes dominantes vão atuar, usar e trazer para seu lado todos aqueles que estão abaixo na relação de classes. Mesmo na liberdade proposta, as relações de poder não se alteram, e opressores e oprimidos têm sempre seus papéis dados e estruturados. Sexo é poder.

‘A Filosofia na Alcova’ dos Satyros enxuga o romance homônimo de Sade, reduz os espaços de ação e centra-se basicamente nas relações e conflitos de três personagens: Dolmancé (poderoso aristocrata libertino), Juliette (a Madame de Saint´Ange, uma libertina famosa e convicta) e Eugénie (a jovem virgem filha de um burguês libertino e de uma mãe religiosa e moralista). A encenação segue entre a frontalidade das ações, dos corpos, da carne e do sexo, a erupção do gozo e da violência e um constante tom de ritual celebratório que condiciona a mise-en-scéne (algo notável na impressionante sequência da orgia narrada por Juliette durante as “aulas” de Eugénie, que entra como um flashback que desloca a ação para um campo ainda mais ritualístico e anti-naturalista). Apesar de irregular – muitas vezes presa a uma necessidade excessiva em negar a teatralidade na composição de imagens cinematográficas – a encenação de Cabral e Vázquez atinge a intensidade necessária para consolidar as exigências da dramaturgia postas na enunciação.

O desenrolar narrativo parte da chegada de Eugénie à casa de Juliette, onde ela será “educada” por Juliette, seu irmão e com a supervisão, o comando e o controle de Dolmancé.  A educação é consiste em uma jornada de sedução e entrega da jovem ingênua (mas repleta de energia erótica reprimida) ao sexo, aos gozos da carne, à liberação de suas pulsões, à violência e a sua crescente negação de qualquer moralidade que havia sido imposta ao longo de sua criação pela mãe religiosa, bem como pela sociedade. A entrada em cena da mãe de Eugénie é o clímax narrativo e o momento em que a jornada interna da jovem se consolida. Da frágil virgem, surge uma altiva libertina que se entrega de carne e mente aos prazeres libertários, à vingança e à violência. Um amadurecimento pelo gozo.

Os ambientes das ações são reduzidos aos espaços internos da casa de Juliette, com breve inserções de cenas externas filmadas na São Paulo de hoje, no interior de limusines e de um helicóptero e ainda cenas que se passam na casa do pai de Eugénie (em que esse é sempre visto cercado por amantes em meio a orgias). As soluções cênicas são bem resolvidas por uma criativa direção de arte, que cria num galpão o cenário das ações principais, tudo em meio a ferros, correntes e entulhos, passando uma impressão de claustrofobia e enclausuramento dos tipos. A fotografia trabalha bem ao usar as modulações da luz para criar climas e envolver os espaços com um jogo de sombras e claridade difusa e artificial.

A construção dos três personagens centrais atinge diferentes dimensões dramáticas. Dolmancé aparece desde o início como uma força bruta, um predador dominador e cínico, que por trás de seu poder e cinismo não esconde certo decadentismo de sua posição aristocrática, de sua classe, numa sociedade em transformação – algo muito bem-posto na sequência em que sobrevoa a cidade de São Paulo nos dias de hoje a bordo de um helicóptero e vemos as relações e tensões entre sua figura, a identidade/personalidade que carrega com uma paisagem diametralmente oposta àquela do mundo em que foi gerado). Mas, essas camadas (uma dialética colocada no interior de seu tipo) que seu personagem carrega em momento algum interferem em suas ações. Henrique Mello impressiona em sua interpretação de Dolmancé ao conferir força, sarcasmo, fúria e poder ao personagem. Juliette é potência pura pela impressionante presença física de Stephane Sousa, a beleza agressiva de seu rosto e de seu corpo conferem à personagem um poder cênico irrestrito. E, como não podia deixar de ser, é Eugénie que tem suas camadas e texturas desenvolvidas ao longo do filme. As transformações e o processo de empoderamento e força que a jovem vai adquirindo no desenvolvimento narrativo é modulado pela própria atuação de Bel Friósi, que consegue transmitir todas as etapas emocionais e físicas pelas quais Eugénie passa. Do deslocamento inicial da jovem em cena até o término de sua iniciação/libertação, vemos Bel Friósi sair da posição de desconforto e fragilidade até passar a dominar todo o espaço; e aqui a beleza e a energia de seu rosto, de seu corpo e de seus gestos seduzem não só aos demais personagens, mas também o espectador e vêm à tona num processo contínuo de desnudamento físico e emocional. Bel Friósi faz não só com que Dolmancé e Juliette se encantem por Eugénie, como também seduz a câmera e o olhar do espectador com uma presença em cena radiante.

Os problemas e acertos de encenação são, principalmente, de ordem da imagem. É na imagem que estão, ao mesmo tempo, os melhores e o piores momentos do filme. Se Cabral e Vázquez nos trazem potência ao colocarem os corpos e a nudez em cena de maneira frontal, ao filmarem o sexo e a as ações sem pudores e com isso construírem tensões e intensidades dramáticas, por outro lado, existe um excesso de cortes, um abuso de ângulos fechados e uma câmera tremida que se perde ao não conseguir transmitir a totalidade das ações ou aquilo que determinada situação de cena pede –  a narrativa no cinema pede sempre a imagem capaz de traduzi-la visual e sensorialmente. O filme se ressente de uma maior composição de quadro, que permita com que as ações sejam representadas num contínuo espaço temporal sem a fragmentação da imagem. Em alguns momentos, quando cenas em planos de conjunto, com maior afastamento e fixação da câmera surgem na tela, temos uma força dramática muito maior e o quadro composto com diversos personagens a ocupar o centro e as bordas da imagem, sem abdicar de uma frontalidade que achata a profundidade de campo para potencializar a superfície da imagem, elevam a intensidade do discurso. Os diretores conseguem, quando abandonam os enquadramentos fechados e a fragmentação do espaço, soluções de dramaturgia muito mais fortes que são resolvidas na própria maneira como a imagem nos chega. Um bom exemplo desses momentos de força do filme são os planos mais abertos, em que no mesmo quadro vemos a fúria, o prazer e a dor de diferentes personagens ao mesmo tempo, dentro de uma continuidade espaço-temporal. Uma cena ilustra bem o acerto desse tipo de composição: Dolmancé penetra a mãe de Eugénie com o auxílio de Juliette e, no mesmo plano temos Eugénie na lateral do quadro se masturbando em êxtase. Aqui a própria imagem, sem rupturas e numa distância focal justa, oferece toda a potência dramática e as texturas e desenvolvimentos da ação, assim como a narrativa se consolida e se resolve dentro do próprio quadro.

Uma outra passagem, em que se abandona o abuso do corte e um pequeno plano-sequência é posto, mostra como Cabral e Vázquez sabem usar bem a continuidade da ação dentro do espaço: nessa cena acompanhamos Eugénie se deslocando de um primeiríssimo plano até o fundo do quadro (em que sua mãe está amarrada e entregue aos jogos dos libertinos) e depois retornando a seu ponto de origem no início do plano. Nessa cena, que se desenvolve num continuum, temos de maneira objetiva a extensão em atos da transformação interna da persona de Eugénie. Sua fúria, seu erotismo transbordante, as vibrações de seu corpo em ressonância com seus desejos que vêm à tona já desprovidos de amarras são a consolidação de seu processo de entrega ao gozo, a materialização de suas pulsões em prazer e dor (dor imposta). É carne que fala mais alto, é gozo libertário que lhe confere poder e controle sobre suas vontades e subjuga aqueles que se punham como castradores de sua liberdade, ao mesmo tempo em que liberam a violência reprimida em uma forma de orgasmo.

E assim, o gesto libertário que se oferece nos princípios de ruptura possíveis dentro dos códigos da libertinagem torna-se um devir em que a jornada de entrega ao corpo e suas possibilidades são uma acesse em direção a uma tomada de poder materialista; violência, prazer e sofrimento se fundem. É poder para quem o exerce, mas um poder que vai além do próprio gozo, transborda e sublima-se na dominação e aniquilação do outro. Como escreve Simone de Beauvoir em seu ensaio ‘Deve-se Queimar Sade?’: “…a evasão de sua consciência para sua carne, a apreensão do outro como consciência através da carne (…) é pela vertigem do outro feito carne que cada qual se enfeitiça em sua própria carne”. E Beauvoir completa “é dilacerada e sangrenta que a carne se revela como carne da maneira mais dramática”.

‘Moscou’, de Eduardo Coutinho (2009)

Por Fernando Oriente

É notável como Eduardo Coutinho busca, de maneira orgânica, a dissolução das linhas de separação entre o documentário e a ficção, como trabalha sua mise-en-scène em função da ética daquilo que procura registrar. São elementos de linguagem típicas do diretor que se tornam mais explícitos em dois de seus últimos longas: ‘Jogo de Cena’ (2007) e ‘Moscou’; este último uma bela incursão pelo registro documental do processo construtivo da encenação ficcional, do quão potente é o homem e sua relação com a palavra, com o dizer, com o interpretar e pensar o mundo pelo texto e suas muitas arestas. Coutinho acompanha o grupo Galpão durante os ensaios e a montagem de “Três Irmãs”, de Anton Tchekhov, e com sua habilidade para captar as múltiplas camadas de tudo aquilo que filma, enfoca a densa relação entre o ser humano e o poder da palavra; a força que se pode extrair de um texto pela construção dramática calcada na faculdade da palavra (essa tensão é mesma do processo de encenação usado por Coutinho em ‘Moscou’, uma encenação que busca o incerto, o tornar-se, que se abre a tudo que se oferece diante de sua câmera) . É o registro sensível desse texto, da construção e reconfiguração desse texto que vem à tona em meio ao gesto e aos corpos daqueles que o articulam. Coutinho busca registrar o processo, esse caminho que leva da ideia, do texto impresso a uma propulsão de energia, a criação de algo indefinido, mas que toma forma no fazer, no fazer do grupo Galpão, no fazer do filme e na mediação proposta entre filme, texto, atores, espaços, tempo e o espectador.

Em ‘Moscou’, Coutinho usa uma montagem teatral (e as potências da linguagem da teatralidade reconfiguradas para a encenação cinematográfica) que nunca irá ser encenada, e com apenas as três semanas dadas ao grupo de Belo Horizonte para trabalhar o texto, retira desse processo criativo fragmentado elementos da obra de Tchekhov em que as sensações de angústia do homem comum e o peso do tempo de espera chegam de forma plena ao espectador. São da ordem moral que esse processo constitutivo evoca que vem a força e a autenticidade das imagens de Coutinho. As angústias do texto se fundem as pulsões tensas de um processo criativo em que atrizes e atores buscam dar forma ao texto, ao universo complexo de uma das mais fundamentais peças do autor russo. Da sofisticação dramática de Tchekhov, o cineasta extrai o vazio intransponível que condena os personagens da peça. É um diálogo constante entre as limitações e possibilidades de homens e mulheres e as representações ficcionais dessas condições humanas tratadas no texto original e como isso se relaciona com as capacidades e entraves do cinema em registrar algo fugidio, incerto. ‘Moscou’ é um estudo do processo criativo e construtivo por meio de seus movimentos internos.

Coutinho alterna planos do ensaio com workshops e cenas de bastidores do Galpão. Ele trabalha dentro de condições de precariedade que estão no próprio enunciado de seu filme. Do precário se constrói a autenticidade do cinema, um cinema ético, que sabe de seus limites e dele traz o que de maravilhoso reside nas limitações impostas.  Novamente o cineasta adentra a construção fílmica do conflito entre realidade e ficção e, ao pôr os fragmentos do drama ficcional em primeiro plano pela intensidade da palavra, correlaciona no real as conseqüências e a penetração da ficção. Antes de tudo, ‘Moscou’ é um tributo ao ato da criação, ao poder da palavra e do texto de Tchekhov e como esse texto é universal ao representar a fragilidade do ser humano. Ao mesmo tempo, o longa é a tentativa de traduzir a força material daquele que fala, do emissário de um texto, de uma ficção, de uma realidade em processo de recriação. A opção em abordar “Três Irmãs” por meio da construção da encenação amplia ainda mais o aspecto sensorial, e ao mesmo tempo físico, da obra. Ao depurar e enxugar os elementos dramáticos e os recursos de encenação e deixar o texto apenas no discurso dos atores, na presença material destes, a força desse texto é sentida de maneira mais crua e objetiva. Os atores são identificados logo como portares, transmissores da palavra e, como a força da palavra vem de seus discursos, a identificação do público com o drama se torna mais complexa e difusa, abrindo possibilidades de interpretação e leituras sempre em construção e num jogo posto entre imagem, texto e a mediação do dispositivo que se constitui pela encenação de Coutinho.

As opções formais de Coutinho são destaque a parte. Planos médios intercalados a ângulos fechados nos atores, com seus rostos em primeiro plano, aumentam as texturas da relação do humano com a palavra (o devir dessa palavra num constante vir a ser da ficção) e com a significação das emoções contidas nos nuances do texto original. A câmera do diretor busca o ser-humano em estado natural, sua inserção nos espaços e as relações espaciais e temporais que surgem desse processo. É notável a preocupação do cineasta em buscar o gesto natural, a expressividade autêntica, as incertezas e a espontaneidade dos tipos que filma. O trabalho de luz, usando a iluminação artificial do teatro, forma uma moldura discreta para o registro das ações e dos discursos. A simplicidade desses recursos esconde um conceito estético radical que caracteriza a obra do diretor. A câmera não se preocupa apenas com a captação dos atores e atrizes e seus movimentos. O cenário, o ambiente onde o processo de construção de “Três Irmãs” está em andamento, também é destaque e a relação entre espaço físico e atuação ganha tratamento primoroso pelos posicionamentos de câmera.

Outra característica presente em ‘Moscou’, e que também pode ser comprovada por meio dos últimos trabalhos de Eduardo Coutinho, é a preocupação do diretor com a memória. Uma memória que surge da palavra, das imagens e sensações que são resgatadas e materializadas por essas palavras, pelo ato de falar, por tudo que evocam. Um exercício de afirmação da memória em um mundo que força o homem a um eterno presente impessoal e congelado, em que a memória e as imagens não têm mais espaço e se perdem (em valor, em afeto e em subjetividades esmagas) em meio a aceleração brusca de uma sociedade imediatista que destrói o Eu em detrimento da alienação do consumo e da promessa de satisfação imediata dos desejos mais rasos. Esse enfoque é nítido dentro da obra de Coutinho, bem como nos textos de Anton Tchekhov e a releitura extremamente atual desse conceito elaborada por Coutinho eleva seu filme a um patamar ainda mais complexo. É na abordagem feita na convergência de múltiplos elementos que o cineasta ergue as estruturas de seu cinema ímpar.

‘O Anjo Nasceu’, de Julio Bressane (1969)

Por Fernando Oriente

Em “O Anjo Nasceu’ estamos diante de uma grande desconstrução. Tanto do cinema – de seus códigos formais e narrativos – bem como de noções e conceitos acerca da sociedade brasileira, seus ideários, sua moral e suas representações. Bressane realiza, nesse que é o seu terceiro longa-metragem, um dos mais bem sucedidos discursos sobre o que pode ser o cinema moderno e de como ele pode traduzir sensorialmente por meio da forma toda uma visão/reflexão da realidade daquilo em que o país está mergulhado. Aqui temos um realizador que acredita e constrói sua obra dentro de um conceito básico de vem desde o Modernismo (Semana de 22, Oswald de Andrade), passando por Brecht, Maiakovski, Artaud e Godard até ideias centrais e fundadoras do concretismo paulistano dos irmãos Campos e Décio Pignatari: é na forma, na descontração e reinvenção (realocação) da forma que se consolida a força de um novo discurso, de uma arte que visa novas fronteiras; a força que nasce da ruptura e da desconstrução para se pensar e interpretar a realidade a partir da potencia da criação; uma criação sem amarras, sem limites.

‘O Anjo Nasceu’ é filme atualíssimo e urgente, não só em 1969 quando foi realizado, mas também (e muito) nos dias de hoje. Ao acompanhar fragmentos de um curto período na vida de dois marginais em fuga, Urtiga (Milton Gonçalves) e Santa Maria (Hugo Carvana), Bressane constrói um painel do desespero, da angústia, da ausência de valores, da anulação subjetiva dos tipos e da violência como fatores endêmicos à sociedade – bem como o único caminho possível a ser percorrido. Marginais aqui não é um simples termo, um mero adjetivo classificatório que ajuda a separar pessoas entre bons e maus. Marginais no filme, e no cinema de Bressane, seguem a classificação antropológica de seres que vivem à margem da sociedade. Forçados ou não, eles foram moldados pelo meio para seguirem em caminhos sem esperanças concretas, de negação, de confronto e de ruptura com a normais tidas como aceitáveis.

Não existe em ‘O Anjo Nasceu’ a preocupação com a reconciliação, seja com os personagens, com o espectador ou com o país. Diferente do Cinema Novo, Bressane não trabalha com as possíveis possibilidades redentoras de uma luta de classes, nem com a perspectiva de ações revolucionárias, muito menos com lampejos de transformação. O diretor registra de maneira distanciada (ao mesmo tempo em que direta e passional) uma realidade já contaminada pelos efeitos dessa luta de classe, recheada de tipos que carregam em si, de maneira atávica, a violência, a crueldade, a rejeição e a disposição para o conflito. Não vemos uma glorificação revolucionária na violência dos tipos marginalizados, nem uma negação consciente do sistema. Eles agem por impulsos predeterminados, seguem num estado de eterna tensão, sempre à espera do confronto e diante de uma ameaça onipresente da morte.

Não temos em ‘O Anjo Nasceu’ a utopia presente nos filmes cinemanovistas; é a descrença, a condenação e a impossibilidade de mudança do status quo que marcam o filme. Não existe espaço para mártires, heróis do povo, intelectuais que abraçam causas revolucionárias. É o cinema do fim das utopias, como escreveu Ismail Xavier em suas análises sobre os primeiros filmes de Bressane e Rogério Sganzerla. É uma atualização e uma negação evolutiva do Cinema Novo (com quem o filme mantém um diálogo tenso) que marca a forma e o tecido dramático de ‘O Anjo Nasceu’. Não há no filme nenhum discurso sociologizante, nenhum maniqueísmo, o filme é político ao extremo por meio daquilo que expõe de forma seca e pela maneira como é construído em seu todo. Uma forma tão bem elaborada e funcional que é a partir dela que esse discurso político-social é condicionado e potencializado.

Bressane registra tudo de maneira analítica, com a câmera quase sempre distante, em planos abertos e estáticos em que personagens e cenários são vistos por completo no interior da cena e onde suas ações se desenrolam dentro de uma noção espaço-tempo determinada, que definem o todo do quadro. Sua câmera evita se tornar personagem ou adotar pontos de vista subjetivos. Interessam a ação, os gestos, as falas, os tipos e suas relações entre si e com os ambientes. O não-pertencimento que Urtiga e Santa Maria sentem se manifesta em todos os seus gestos, nas grandes e pequenas ações. O filme traz para o centro da sua construção dramático-narrativa e imagética a presença significante do corpo. A corporalidade como fator determinante das possibilidades do indivíduo. É na presença do corpo na superfície da encenação que se determina as potências dos personagens. Corpos que carregam o ser, o tornar-se e o existir desses personagens.

Os momentos de espera, de descanso, quando os personagens almoçam, deitam ou assistem televisão na casa que invadem (ao lado de suas reféns: a patroa e a empregada) são situações exploradas com densidade calculada por Bressane para retratar o mal estar da presença de seus marginais não só naquela ambiente em que se encontram, bem como na vida que levam. A banalidade de suas ações está em todos os atos que cometem, desde sentar à mesa e comer, dançar, conversar e cantar até quando agridem ou matam as vítimas que passam pelo seu caminho. Não existem remorsos ou culpa. Essa banalidade, essa naturalização da crueldade é reflexo de um mundo, de um país, de uma realidade que Bressane recria de forma primorosa, pela forma depurada, distante, complexa e desconcertante com que constrói as cenas e as projeta nas sequências seguintes com vigor e força por meio da montagem, calcada nos cortes secos e nas elipses.

‘O Anjo Nasceu’ é composto de momentos isolados de um recorte do cotidiano de Urtiga e Santa Maria. Esses momentos são amarrados por pequenos saltos narrativos em que ações independentes dialogam entre si, no conjunto; já que tudo é parte do mesmo caminho sem volta que os personagens percorrem. Desde as primeiras cenas (em que se encontram na favela, escondidos e com receio de descer por medo da perseguição da polícia), passando pela sequência em que os vemos após um conflito em que Santa Maria sai machucado com um tiro na perna, até as passagens seguintes, quando descobrem uma casa isolada, à beira do mar (que invadem e fazem das moradoras suas reféns e as usam para servi-los enquanto relaxam e se escondem em meio à tensão da perseguição de que são vítimas), chegando às passagens finais, em que dentro de um carro vagam sem rumo por ruas e estradas, tudo são fragmentos da realidade dos protagonistas que Bressane enfatiza, sempre de maneira analítica e visceral, conduzindo seus tipos para um destino incerto, mas trágico. Cada cena é carregada de sentidos, são significantes isolados dentro do todo narrativo – uma das características mais marcantes do cinema moderno surgido no final da década de 1950, em filmes que passam a se comunicar de maneira mais intensa por meio de suas sequências e planos do que pelo conjunto da narrativa.

Embora Urtiga e Santa Maria ajam dentro dos impulsos em que as situações e suas realidades de vida os reduzem e conduzem, sem tempo para reflexões profundas ou grandes planejamentos, ambos não deixam de ter suas crenças e suas ideias do que poderiam fazer para viver uma realidade distinta, com remotas possibilidades de sossego e tranquilidade. Após abandonarem a casa que invadiram, tendo assassinado as moradoras, a dupla assalta e mata um grupo de pessoas dentro de um carro estacionado num acostamento. Ao contarem o dinheiro ganho no assalto, pensam em comprar um sítio para descansarem e viverem em paz, como diz Santa Maria. Esse diálogo é logo interrompido por Urtiga, que diz que não sabe se teria condições de viver uma vida no campo, ‘Sou um homem da cidade’, afirma ele em meio uma risada debochada. O filme é repleto de ironia e de um humor amargo, o que torna as situações mais tensas. Em meio à desordem em que vivem, ambos têm suas próprias manifestações de fé e espiritualidade, que são tratadas por Bressane da mesma maneira distante e que foge de um tratamento metafísico direto ou tradicional. Urtiga afirma que vai para céu, fala em Deus. Santa Maria insiste sempre que vê um anjo e em momentos de desespero fala sobre o anjo e grita a respeito da presença desse anjo que o acompanha. Esse detalhe traz uma dose de humanidade aos tipos duros, além de revelar a carência existencial de personagens tão secos e descrentes.

Bressane opta quase sempre pelos já citados planos abertos e estáticos, mas os intercala com pequenos closes – como no sangue que escorre da perna de Santa Maria manchando o chão após esse ter sido baleado -, breves panorâmicas ou quando a câmera segue o mesmo Santa Maria em um belíssimo travelling lateral enquanto ele manca e se arrasta em dor encostado ao longo de um muro até Urtiga entrar no quadro e abraçar o amigo. Também são notáveis as cenas em que os protagonistas são filmados de costas dentro do carro em movimento, momentos em que sentimos o deslocamento sem destino e veloz. Essa variação entre distâncias focais e movimentos de câmera ajudam a desconstrução formal do filme e a consolidação urgente da dramaturgia, aumentando a sensação de tensão e a composição caótica de espaço e tempo, uma desorientação das possibilidades da própria imagem. Outro fator fundamental e desestabilizador em ‘O Anjo Nasceu’ é o uso da banda sonora. Constantemente as cenas são invadidas por canções, trechos de música e ruídos que irrompem alto em meio às ações e falas na tela.

A força do discurso que Bressane constrói em ‘O Anjo Nasceu’ é potencializada ao extremo pelo desfecho do filme. Santa Maria grita de dor e desespero no banco do passageiro de um carro enquanto Urtiga dirige em alta velocidade por uma estradinha no interior do Rio de Janeiro. Temos um corte e vemos o carro se deslocar em linha reta seguindo o trajeto. Bressane fixa a câmera e o espectador acompanha o carro sumir no horizonte, saindo do quadro enquanto as imagens registram a estrada vazia, com a câmera estática. Ao não acompanhar o veículo e os personagens naquilo que os aguarda pelo caminho, Bressane nega um possível road movie que o filme poderia se tornar, tira os personagens de cena e interrompe a narrativa. A cena, com a estrada vazia preenchida apenas por um ou dois carros que seguem caminho contrário aquele em que estavam Urtiga e Santa Maria surgem e desaparecem do plano para manter o quadro estático. Fora isso só vê a estrada e a luz do sol refletida no asfalto. Um filme interrompido que aponta as incertezas e sugere a condenação dos protagonistas. Condenação e incertezas essas que Bressane projeta no espectador e no Brasil. Um filme seminal, um verdadeiro monumento do cinema mundial, realizado por esse que é um dos maiores cineastas que já existiu.

 

Crítica ampliada e revisada. O texto original foi escrito para o livro ‘Os 100 Melhores Filmes Brasileiros’ da Abraccine.

‘Beduíno’, de Julio Bressane

Por Fernando Oriente

“O mundo filmado terá sido uma utopia mais forte que o mundo sonhado pelas utopias políticas”, essa frase de Jean-Louis Comolli tem uma relação muito intensa com o cinema de Julio Bressane, principalmente nos filmes que o diretor realiza desde os anos 1990. Em ‘Beduíno’, seu último longa, essa afirmação de Comolli dialoga de maneira crucial com o núcleo do qual Bressane constrói o filme. ‘Beduíno’ é a encenação de um processo de reinvenção do mundo pela criação constante de novas ficções e narrativas no interior da banalidade da rotina imposta, o esforço de ficcionalizar, de transformar e materializar o sonho (a utopia) a partir da essência onírica da vida. Um filme que procura traduzir estados de espírito, inquietações e desejos em imagens; um longa que busca o cinema em sua potência máxima, em sua essência fundadora e naquilo que ele, o cinema e sua gramática, podem nos dar de novo: um mundo filmado em que as utopias serão sempre mais fortes pois sua matéria é a criação, a renovação, o movimento interno do quadro, a encenação. Um universo discursivo e sensorial redefinido na potência das imagens e em seu constante poder de transformação, de deslocamento e desprendimento do que é imposto e limitado pela ditadura do real.

Em ‘Beduíno’ temos um casal (Alessandra Negrini e Fernando Eiras) que passam seus dias e noites recriando e reinterpretando suas existências, seus papéis no mundo, sua relação; que se descolam do mundo para viver uma realidade inventada, uma libertação, um sonho, sonho este onde a vida existe, ou pelo menos outra vida, muito mais rica e complexa. O filme penetra a intimidade desse casal, o interior de uma relação de intimidade em que eles assumem, a cada cena, novas personas, dialogam sobre os mais distintos assuntos, contam seus sonhos e fantasias, fazem jogos e criam parábolas por meio de brincadeiras, de farsas. Usam o artifício, o simulacro para exprimirem desejos, reflexões, dúvidas, para se aproximarem e se redefinirem enquanto mulher e homem, enquanto casal, enquanto parceiros e amantes. Entre todo esse processo de negação da realidade e de ressignificação identitária, de escape do mundano, eles se dedicam a constantes narrações, contam histórias, exprimem pensamentos e saberes. Tudo no filme é encenação dentro da encenação. A grande maioria das cenas se passa no interior de uma casa, que pela construção e pelo uso impressionante dos ambientes, sempre nos aparece de maneira distinta. São diversos cenários que se apresentam dentro dos mesmos cômodos; cada nova reconfiguração do décor está implicada às diferentes narrativas e ficções que irão tomar conta do quadro.

Toda a mise-en-scéne de Bressane em ‘Beduíno’ busca uma total negação do naturalismo, um rompimento radical com o mimetismo do mundo real. As imagens são pensadas em seu caráter simbólico, plástico, na força estética de uma beleza desconcertante, uma estética que propõe um mundo reconfigurado pelo belo em que aquilo que é dado no interior dos planos eleva as ações, os gestos, as falas, bem como os corpos, os objetos e o décor a uma significação sensorial, a constantes reflexões e analogias pela força das imagens mediadas constantemente pela palavra, pelas pequenas ações, pelo movimento cadenciado. A câmera de Bressane busca registrar o tempo próprio (suspenso) das ações dentro de um ócio que nega a racionalização imposta pela sociedade contemporânea, uma intelectualização do estar no mundo, do vir a ser dentro do simples existir; um existir que se expande pela ficção, pela força da linguagem cinematográfica.

Cada plano é construído em função exata das modulações dramáticas encenadas, das construções em simulacro, em um artificialismo significante; a imagem sempre compreende em si aquilo que o discurso propõe, mas que só torna-se matéria ao expandir-se a partir e além dos limites da simples representação pictórica, ao extrapolar os espaços, os movimentos internos, os gestos, falas e expressões e elevar cada plano a um componente significante autônomo, que usando todos esses elementos, faz da mise-en-scéne o núcleo de um cinema que busca não só o discurso, mas o próprio processo de construção da imagem como seu sentido maior de existir.

‘Beduíno’ trabalha – dentro do jogo de ficcionalização do casal e do filme em si – com o valor dialético da memória e da imaginação, seja nos fatos vividos, inventados ou sonhados, nos desejos transpostos em gestos ou discursos, na lembrança reinterpretativa de mitos, de histórias fundadoras da civilização; na subjetivação do pensar, refletir, agir e do viver. Mas tudo composto dentro de uma concepção diegética em que essas camadas de memórias, pulsões e fantasias se sobrepõem com histórias corriqueiras, lendas, lembranças, anseios e ressignificação de fatos e ações; não do que foi propriamente vivido, mas de como isso é imaginado, traduzido e reinterpretado. Tanto o que é sonhado, desejado quanto o que é vivido ganham o mesmo peso dramático, compõem o mesmo tecido, num constante deslocamento do óbvio, do banal, da vida como repetição. Temos aqui uma aproximação ao conceito do ‘Eterno Retorno’, de Nietzsche, em que tudo regressa, sobrevive nos intervalos entre os retornos e volta com a possibilidade (ou não) de novos significados e significações.

O filme é uma ode à ficção, à tradução do mundo por imagens, pela imaginação, por falas, movimentos, olhares e gestos. Bressane faz de cada imagem, de cada plano um deslumbre. São enquadramentos primorosos que conduzem a constantes variações entre closes, primeiros planos e planos médios; nem um posicionamento de câmera é banal, cada fotograma é pensado como agente transformador do quadro, como uma abertura a uma forma de ver que vai além, que desloca percepção e reafirma a complexidade do discurso. Existe o uso notável do foco – em que constantemente fragmentos do quadro são desfocados para enaltecer a nitidez de um rosto, de um objeto, de uma parte do corpo, de um foco de luz, para dirigir o olhar do espectador, bem como para criar um efeito de esfumaçamento, uma atmosfera onírica toma conta da tela. ‘Beduíno’, dentro de sua complexidade estética e formal, apresenta um trabalho excepcional de modulação da luz. A luz atinge o status de condicionante central do quadro, das alterações, das transformações e significações dos planos. A luz forma um tecido visual de textura própria, que conduz não só o que é encenado, mas o que é sugerido, sentido. A luz em ‘Beduíno’ é personagem, tem vida própria, pulsa e condiciona a própria existência da mise-en-scéne.

‘Beduíno’ é um filme que exala erotismo. Um erotismo que vem da forma como Bressane conduz a encenação, pela maneira como filma os corpos, como evidencia a materialidade da carne na superfície da tela – seja nos closes, nas expressões dos rostos, nas inquietações de gestos reprimidos e cadenciados – bem como na maneira como as falas são ditas. Existe uma força erótica imensa nos discursos de Alessandra Negrini, na maneira como ela pronuncia cada palavra. Entre os jogos, narrativas e ficções criadas pelo casal, o desejo sexual é uma constante, mesmo quando sublimado, ele se faz presente, latente, intenso. E é a força, a presença erótica que a figura de Alessandra Negrini tem em cena que faz esse aspecto ainda mais determinante. Ela se revela para a câmera da mesma forma com que a câmera retira dela uma pulsão incontornável. Sua figura, seu corpo, sua voz, seu rosto; tudo é energia, é desejo. Muitas vezes Bressane associa esse erotismo à morte, uma pulsão de morte que levaria a um prazer intenso, uma negação da vida para a afirmação do gozo na finitude de uma existência reprimida.

É inevitável notarmos a teatralidade com que Bressane também constrói a mise-en-scéne, mas uma teatralidade que não tem absolutamente nada de teatro filmado e sim um recurso de encenação que visa à valorização física da presença dos personagens e objetos no quadro, dos gestos, da composição do plano, do uso do cenário. E um destaque central conferido à maneira como o texto é falado, como as palavras são pronunciadas e se fazem impor em consonância às imagens, dialogando com elas, criando brechas, processos dialéticos. E as falas, o discurso, a palavra são elementos constitutivos essenciais na composição de ‘Beduíno’. Bressane usa a língua para criar imagens próprias, imagens que se traduzem no uso de um português inatural, totalmente distante da linguagem coloquial ou dos diálogos naturalistas.

Em mais um filme captado em digital, Bressane volta a levantar questões sobre a textura e a materialidade da imagem. Em meio à grande maioria das cenas, filmadas em digital, Bressane insere enxertos de dois de seus filmes realizados nos anos 70. Esses enxertos, que provocam um choque entre as distintas texturas e os diferentes mecanismos de captação e apreensão da imagem, têm aqui uma função de ruptura discursiva e narrativa e operam dentro de um processo que permite se pensar os caminhos que o cinema segue. No sonho recorrente que a personagem de Alessandra Negrini tem – e que ela traduz em narrativa ao contar para o parceiro – vemos imagens de Rosa Dias em ‘A Fada do Oriente’, filmado por Bressane em 16 mm e preto e branco durante seu exílio no início dos anos 70 (filme considerado perdido). Já a última das histórias que a personagem de Negrini conta ‘Beduíno’ é composta exatamente pelos acontecimentos presentes no mítico ‘Memórias de Um Estrangulador de Loiras’, realizado por Bressane também em 16 mm (só que em cores) em 1971, em Londres. Bressane monta a narração da personagem intercalada por sequências do filme, em que vemos aquilo que ela descreve por palavras materializando-se em imagens. A função da inserção desses trechos de filmes não serve apenas como elementos dramático-narrativos, mas trabalham diferentes dispositivos: o digital é o hoje, enquanto a película é o sonho, o onírico, a história do passado que é recontada, revivida em palavras e imagens no presente. A película se projeta e rompe em meio ao digital para imprimir texturas, criar uma dialética na superfície e na matéria da imagem.

Bressane filma de maneira exuberante em digital, produz imagens estonteantes, mas ao mesmo tempo nos lembra da força perdida que há na percepção do grão na película, das texturas impressas que só podem existir num meio físico de captação. A memória do cinema também passa pelo aspecto material dos suportes. Essa discussão, que tanto persegue o cinema atual de Julio Bressane – o papel da imagem e de como ela é apreendida – é mais um elemento propulsor do discurso de ‘Beduíno’. Um filme que se debruça sobre a recriação do mundo pela ficção, a interpretação subjetiva da realidade, a fabulação, a construção de narrativas, a valorização da palavra; todo um universo construído e tornado possível pela potência da imagem; do cinema em sua essência.

‘Guerra do Paraguay’, de Luiz Rosemberg Filho

Por Fernando Oriente

Um potente som de tambores, algo que nos remete a sensações de agitação, evoca um sentimento de ancestralidade pelo ritmo, sugere a imanência de conflitos vividos e ainda por vir e instaura o desconforto e a tensão. É pela força da banda sonora que Luiz Rosemberg Filho abre ‘Guerra do Paraguay’, com a tela ainda preta enquanto passam os créditos, já colocando o espectador diante do que irá desenvolver ao longo do filme. Em seu longa mais recente, Rosemberg constrói de maneira notável uma obra essencialmente cinematográfica usando todos os elementos e dispositivos do cinema para valorizar e impulsionar o peso e a significância da palavra, do texto, de ideias, questões e reflexões complexas e dialéticas sobre o Brasil, a América Latina e o mundo de hoje – um mundo cujo presente é a confirmação e o devir do caos, do desencanto, da miséria e do sofrimento humano que já se esboçavam há séculos e que tornaram-se mais fortes e incontroláveis devido a aceleração do progresso capitalista e de uma sociedade calcada no lucro, na violência, no individualismo, na desigualdade e na alienação.

A visão de mundo de Rosemberg – a matéria central de ‘Guerra do Paraguay’ – uma visão arguta daquilo em que estamos inseridos, é cética, crítica, não conformista. Mas a grandeza de um realizador, de um artista ímpar como Luiz Rosemberg Filho vai muito além de bravatas simplistas; não existe no filme – bem como em toda a obra do diretor – reducionismos, lugares comuns, ou pensamentos e formas rasas. Não temos aquela revolta estéril e impotente dos discursos inflamados e panfletários dos inconformistas de botequim ou de rede sociais. Tudo em ‘Guerra do Paraguay’ é complexo, muitas texturas são oferecidas para diversas abordagens e leituras. A crítica e as reflexões são construídas por um discurso sólido, interseccional, que aponta diversos caminhos, faz constatações, afirma ao mesmo tempo em que questiona; não oferece respostas ou soluções. Rosemberg constata, põe no texto, pela palavra, um caleidoscópio de pensamentos que tanto isolados como em conjunto expandem a percepção, exigem a reflexão e estabelece relações entre eles; dialogam constantemente, por meio de imagens, sons, movimento e falas, com o espectador. Trata-se de um inventário de ideias, de citações, de conceitos. Em ‘Guerra do Paraguay’ o centro de tudo é o pensamento sem amarras, que rompe com tudo o que já vem mastigado e explicado.

Um filme político, filosófico, sociológico, existencialista, recheado de reflexões históricas, elementos de antropologia e psicanálise. Tudo isso aliado a pertinentes comentários sobre o estado das coisas – mas um filme que tem sua força nas imagens e no texto, uma obra que só existe como e pelo cinema, só dentro da gramática cinematográfica que todas essas relações podem vir a ser, existir e ter a força imensa que ‘Guerra do Paraguay’ carrega e deixa se perceber a cada plano, a cada fotograma.

‘Guerra do Paraguay’ é um dos filmes mais complexos – isso dentro de uma definição profunda que esse processo possa ter – dos últimos anos. Por meio da história de um soldado raso (vivido por Alexandre Dacosta) que volta ao Brasil após combater na Guerra do Paraguai (que aconteceu no século 19, ainda durante o império e o governo de Dom Pedro II, mas que também marca um dos alicerces do que viria a ser o Brasil como nação num futuro próximo, com o advento da República e tudo o que se seguiu) e se encontra, dentro de uma diluição de temporalidade, nos dias de hoje onde acaba por encontrar duas irmãs, as últimas remanescentes de uma trupe de teatro destruída pelos “novos meios de comunicação que não valorizam a cultura, o alimento da alma” (como diz a irmã mais velha). As irmãs estão na miséria, vivem na fome e acabaram de perder a mãe, vítima dessa mesma fome. A mais velha (vivida por Patrícia Niedermeir em uma atuação soberba) é uma mulher forte, inteligente, culta, cheia de vida e energia, consciente e segura de sua condição como mulher (“eu sou uma mulher”, frase que ela repete várias vezes ao longo filme), que busca a liberdade, a beleza e o gozo em meio a seus sonhos destroçados, sonhos esses em que ela insiste em valorizar, em resistir neles e por eles. Uma mulher com lúcidas visões de mundo, com conhecimentos precisos sobre a alienação e a destruição do indivíduo numa sociedade em que a estupidez do consumo, da guerra permanente, o conflito de classes e o poder do dinheiro ditam as regras. Um mundo que aniquila a imensa maioria das pessoas, que despreza toda a beleza, o sonho, o gozo e a autodeterminação dos sujeitos, fazendo com que aqueles que não se enquadram dentro das submissões ao poder – dos políticos, das elites, daquela minoria que acumula as riquezas e fatura cada vez mais na destruição das subjetividades, na miséria econômica e existencial, na alienação e no desprezo pelo ser humano comum como agente da história.

Os personagens do filme, tanto a irmã mais velha, quanto o soldado e também a irmã mais nova (Ana Abbott, também ótima) são muito mais do que arquétipos, a composição de suas texturas vai além do óbvio. O soldado, um ignorante, um fantoche do sistema, vassalo ingênuo, que valoriza de maneira cega valores como pátria, ordem, obediência, religião, moral e submissão, que não enxerga que seu trabalho como soldado não o faz nada além de mais um miserável; um infeliz incapaz de perceber-se como aquilo que é: uma marionete do poder real, um alienado por noções falsas de grandeza que a vida militar alimenta, satisfeito por ter matado muitos inimigos em combate e orgulhoso das medalhas que recebeu pelas mortes que provou. Ele é a personificação daqueles que se deixam levar por migalhas, que finge não perceber que sua precariedade existencial, social e econômica é igual a das irmãs atrizes, igual à de todos os pobres e excluídos do sistema. Já a irmã mais nova sofre de problemas mentais, não fala, vive presa dentro de suas limitações cognitivas. Mas é essa jovem que proporciona algumas das mais belas cenas do filme, que em meio a suas limitações transparece uma ternura profunda, uma ligação orgânica com a natureza e os espaços que a cercam. São belos os planos em que a vemos deitar sobre a grama, rolar pelos campos, se encantar em assoprar as finas pétalas de um flor. Uma pureza e uma serenidade que só é possível em meio ao caos em que está inserida devido a sua inocência, a sua incapacidade de absorver os males do mundo.

O filme se desenvolve basicamente por meio dos diálogos/conflitos entre a irmã mais velha e o soldado, um embate verbal entre a estupidez do soldado alienado e cooptado pelo sistema com uma mulher altiva, cheia de texturas, referências e uma profunda visão crítica e existencialista da realidade. E é aqui, nesses diálogos, bem como nos monólogos da personagem de Patrícia Niedermeir (“pensamentos e não discursos” como ela mesma diz) e que surgem incompreensíveis para o soldado em meio a sua ignorância, que Rosemberg coloca o texto na superfície da tela. São por meio dos diálogos, das falas da irmã mais velha, seus fluxos de pensamentos digressivos, cheios de reflexões, citações e questionamentos que Rosemberg introduz seu discurso, suas ideias e conceitos. Seria impossível nos debruçarmos, em apenas uma crítica nãos inúmeros temas abordados pelo rico texto que compõe o discurso integral do filme. Cabe ao espectador se deixar levar e refletir sobre o que ouve e vê.

‘Guerra do Paraguay’ é um filme construído na teatralidade da encenação, mas uma forma que nada tem de simples teatro filmado e sim totalmente calcada na teatralidade como um dispositivo 100% cinematográfico; o que vemos na tela é cinema puro. Uma forma que determina as composições de quadro, as orientações dos planos, a direção de atores, os movimentos internos do quadro, o ritmo das cenas e transições entre elas, as soluções de dramaturgia, bem como a maneira compassada com que as falas são pronunciadas pelos atores – não no sentido que vemos a fala em filmes de Straub e Huillet ou mesmo de Eugene Green, mas em que o se dizer um texto assume uma cadência desvinculada de representações realistas. Um recurso que valoriza a palavra dita pelos personagens, que nega o naturalismo, estende o tempo das ações e faz do texto o condicionante central dessa dramaturgia específica. Esse mesmo recurso de teatralidade como dispositivo cinematográfico foi utilizado por Rosemberg em seu filme anterior, o ótimo ‘Dois Casamentos’ (2014). Mas lá, o diretor trabalha dentro de um cenário reduzido, sem a profundidade de campo e com o achatamento da imagem que faz prevalecer os primeiros planos – algo imperativo para a construção formal daquele filme. Já em ‘Guerra do Paraguay’, Rosemberg trabalha esse mesmo dispositivo de uma maneira muito mais complexa. Sem abdicar da estética teatral-cinematográfica, o diretor faz uso nada menos que brilhante de diversos recursos de mise-en-scéne. Encenação em profundidade de campo, planos-sequência quase onipresentes, movimentos de câmera dos mais variados – travellings (frontais, de ré, laterais), panorâmicas, recuos e aproximações, reorganização e reenquadramento de ações e personagens -, diferentes distâncias focais, enquadramentos que variam constantemente entre planos frontais, contra-plongês, closes e planos abertos. Rosemberg abre a mão do campo e contra-campo – resolve tudo dentro do quadro, sem cortes.

É evidente, para quem acompanha de perto os trabalhos de Luiz Rosemberg, como ele utiliza ‘Guerra do Paraguay’ para inserir diversas questões que vem trabalhando há anos em seus filmes ensaio, pequenos curtas em que discute diversos dos assuntos que aborda em seu novo longa. O grande mérito do diretor é introduzir essas discussões, ideias e questionamentos de uma forma totalmente orgânica dentro da construção formal, diegética e discursiva do filme. Aqui temos uma forte similaridade entre ‘Guerra do Paraguay’ e os filmes de Godard – principalmente os filmes de JLG a partir do final dos anos 1980. Mas enquanto Godard utiliza uma multiplicidade de estruturas, formas e estéticas, valorizando variadas experimentações de composição, montagem, colagens, uso do som e da banda sonora, bem como de mise-en-scéne, em que a força do texto surge das mais distintas maneiras de apresentação, Rosemberg opta por uma estrutura mais direta, em que mesmo mantendo a autonomia isolada e significante de planos independentes, se preocupa também com certa continuidade dramático-narrativa e uma maior unidade entre as sequências.

‘Guerra do Paraguay’ também se destaca pela beleza e força funcional de diversas cenas, planos e sequências – que nada tem de artificialismo ou pirotecnias e servem exclusivamente para potencializar o discurso -, além de um primoroso uso da banda sonora, em que sons e ruídos extra-diegéticos – como o barulho constante de um helicóptero, explosões, trovoadas fazem-se ouvir ao longo de quase todo o filme e ampliam as sensações vividas pelos protagonistas e a sensação de deslocamento do espectador. Em relação ao poder das imagens, são inúmeros segmentos primorosos e que são fruto do trabalho perfeito de encenação e composição de Rosemberg e da fotografia em preto e branco que ressalta os contrastes nas variações de luminosidade, bem como a relação entre claridade, nitidez, desfocamentos e sombras. Sem contar a expressividade presente nos rostos, olhares e gestos dos atores.

São inúmeras essas sequências marcantes, desde o plano sequência que abre o filme – quando vemos, em profundidade de campo, as duas irmãs e a mãe empurrando com grande dificuldade uma carroça – o que restou da trupe teatral – por uma estrada de terra, tudo filmado em um plano longo, vertical em que a câmera, de início fixa aguardando a chegada das personagens e da carroça no primeiro plano, passa a segui-las em recuos, travellings laterais e frontais –, passando pela cena em que o soldadinho brasileiro encontra o espectro de um militar paraguaio que ele matou em combate (Chico Diaz em uma poderosa participação especial) e é confrontado por este (que por meio de um discurso cheio de referências históricas, crenças libertárias no poder de autodeterminação do povo latino-americano, conceitos metafísicos, filosóficos, existenciais e libertários expõe toda a ignorância e a pequenez do pensamento raso e militarizado do brasileiro) e segue-se nas sequências em que se sobressai a duração das ações, permeadas constantemente pelo texto falado e a movimentação constante da câmera e dos personagens no interior do quadro e intercaladas a planos estáticos (sempre valorizando a encenação em profundidade de campo) até os planos finais, em que a violência que se mantém latente durante todo o filme até aqui se manifesta, vem à tona, explode e toma conta da superfície da tela de maneira crua, bruta e abjeta.

O corte final de ‘Guerra do Paraguay’, aquele que encerra a narrativa dos protagonistas, nos desloca e conduz direto à imagem de uma explosão, que será sucedida por uma série de imagens de arquivo, de diversos cantos do mundo, em que vemos guerras, combates, explosões de bombas, mísseis sendo lançados, soldados e civis atirando, cidades destruídas e arrasadas, violência crua, desespero, vítimas feridas e mortas por esses conflitos. Mas esse primeiro corte seco, essa transição inicial nos leva dos personagens do filme direto para a imagem de uma explosão em slow motion. Esse recurso remete diretamente ao final de ‘Zabriskie Point’ (obra-prima dirigida por Michelangelo Antonioni em 1970). Mas onde em Antonioni a explosão que fecha o filme remete a uma ideia de libertação utópica revolucionária em que o personagem visualiza a explosão de uma mansão burguesa, e com ela toda a implosão de um modo de vida burguês decadente que seria seguido por uma possível tomada do poder por novos agentes políticos, em Rosemberg o que existe é uma inversão de significado. A explosão em ‘Guerra do Paraguay’ não contém esperança de mudança, muito menos uma possibilidade revolucionária de modificação do status quo político-social. A explosão que inicia a sequência final de ‘Guerra do Paraguay’ revela toda a dor, a melancolia, a impotência de mulheres e homens comuns e a abjeção do mundo hoje, desencantado e sem esperança. É uma explosão que a reafirma a vitória da guerra, dos seus senhores, dos que detém o poder e daqueles que com a guerra, a violência, o caos e a repressão aniquilam e continuarão a aniquilar qualquer, utopia e todos os sonhos libertários.

‘A Cidade Onde Envelheço’, de Marília Rocha

Por Fernando Oriente

a-cidade-onde-envelheco‘A Cidade Onde Envelheço’, um grande filme, inaugura, nessa quinta-feira, dia 9 de fevereiro, a Sessão Vitrine Petrobras; projeto excelente que vai trazer filmes independentes – que fogem do lugar comum e procuram novas formas e discursos – para os cinemas, ficando em cartaz por duas semanas cada um em mais de 20 cidades do país. Longas brasileiros e alguns estrangeiros, produzidos fora do grande sistema de produção, dirigidos por jovens cineastas, de diversos gêneros e estilos terão, por meio da Sessão Vitrine Petrobras, a oportunidade garantida de exibição em diversas regiões do país, rompendo com a dificuldade que esse tipo de cinema sempre teve de encontrar espaços de exibição acessíveis a um público maior e que poderão ser assistidos por muito mais espectadores não dependendo apenas de festivais e mostras.

Na programação da Sessão Vitrine, como não poderia deixar de ser, teremos sempre filmes alternativos em cartaz, alguns bons, outros médios e até mesmo filmes fracos, mas que precisam ser vistos para se saber o que de novo e original se produz no cinema brasileiro, quais os caminhos que estão sendo seguidos, com seus acertos e erros, soluções poderosas e vícios engessantes. ‘A Cidade Onde Envelheço’, quarto longa da cineasta Marília Rocha – o primeiro de ficção após três belos documentários realizados pela diretora dentro do Coletivo Teia de Minas Gerais –  é um ótimo título para abrir o projeto, já que se trata de filme  muito bom, que com certeza faz parte do que de melhor o cinema contemporâneo brasileiro produziu nos últimos anos. Abaixo a crítica do filme, escrita na época em que o longa foi exibido no Festival de Brasília de 2016.

‘A Cidade Onde Envelheço’, de Marília Rocha

a-cidade-onde-envelhecoO novo longa de Marília Rocha parte de um recorte de observação da vida cotidiana e se consolida como um belo filme sobre o deslocamento, o não-pertencimento, o desterro e a solidão. O lugar e o não-lugar e os percursos interiores e exteriores cheios de incertezas que a vida oferece ou induz ao indivíduo. O longa acompanha duas imigrantes portuguesas em Belo Horizonte: Francisca, que já mora na cidade há mais de um ano e trabalha em um restaurante, e Teresa, uma antiga amiga de Francisca recém-chegada à BH e que se hospeda na casa da amiga. Enquanto Francisca vive uma vida pacata e entediante, entre um relacionamento que não considera “um namoro” e os poucos amigos e conhecidos do trabalho, Teresa chega ao Brasil cheia de energia, expectativas e encantamento, pronta para se entregar e descobrir um lugar diferente e seus movimentos, espaços e sua gente. A diferença de postura, as histórias vividas e o momento em que se acham fazem da relação das duas um encontro frio, em que uma tensão se instala e a comunicação entre elas é truncada. A proximidade que dividiram no passado se esgotou com o tempo e as duas se relacionam de maneira um tanto apática, com a presença constante de distanciamentos, silêncios desconfortáveis, falta de intimidade e não empatia.

Marília Rocha constrói um filme cheio de texturas pela competência de suas soluções de mise-en-scéne; é o trabalho preciso da diretora no uso das possibilidades específicas da linguagem do cinema que confere as muitas qualidades e a força do que vemos na tela. ‘A Cidade Onde Envelheço’ parte do registro de situações aparentemente simples e desse enunciado tira uma carga significante intensa e um discurso cheio de possibilidades, dando a mesma força dramática tanto para aquilo que mostra quanto para o que omite e apenas sugere. As cenas são filmadas com uma câmera participativa e observadora, com enquadramentos, distâncias focais e movimentos sempre funcionais e reveladores (que constantemente procuram as personagens e estabelece relações de uma com a outra, com os demais tipos que surgem na narrativa e com os ambientes). Trata-se de uma câmera que se atém aos pormenores significativos. Sejam as falas, os silêncios, os detalhes nos rostos e suas expressões, os gestos e a relação entre os corpos, o movimento e os espaços. Um filme em que o tempo – seu decorrer, o que nele se inscreve, se faz perceber ou supor – é sentido pelo espectador, mesmo quando essa experiência de temporalidade surge a partir de fragmentos. É notável a força sensória, sensual e significativa dos planos. A decupagem é precisa e confere uma dimensão ampla e sensorial aos dramas encenados pela composição espacial e continuidade temporal presentes tanto nos movimentos de câmera quanto nas variações de enquadramento e distâncias focais, o que valoriza as sensações, os conflitos, aquilo que é dito, o que é recalcado bem como o que se sugere. As transições em elipses destacam e ampliam as sequências isoladas ao mesmo tempo em que as relacionam com o todo. Os cortes vêm sempre no momento exato para fortalecer o que acabamos de ver e nos preparar para o que virá na sequência, numa elaboração de continuidade totalmente controlada. A diretora enxuga seu filme de todos os excessos, de tudo o que é desnecessário ou óbvio, trabalha nas ambivalências das imagens e no que a elas transcende. Marília utiliza notavelmente os primeiros planos, os closes e a relação desses com o fora de quadro e as profundidades de campo. As bordas laterais são utilizadas como espaço cênico, um espaço que leva ao que está além da tela, sugerindo uma continuidade espacial e temporal que não se prende apenas às imagens fixadas no quadro. Os diálogos são encenados praticamente sem o uso do campo e contracampo, tudo se resolve dentro do plano, nas construções do quadro. As poucas vezes em que campo e contracampo surgem são para potencializar reações e sentimentos das personagens expressos em seus rostos e, nesses momentos específicos, as falas e ruídos diegéticos vindo do fora de quadro são fundamentais.

a-cidade-onde-envelhecoO trabalho da montagem é essencial para a dramaturgia ao intercalar com concisão cenas em que as amigas aparecem sozinhas em suas ações e sequências em que estão juntas e interagem entre si. Também é considerável a maneira como são desenvolvidas as relações de Francisca e Teresa com os outros personagens. Um filme que trabalha de maneira exemplar tanto o estar só quanto os encontros, o estar com o outro, o descobrir o próximo e, ao mesmo tempo, a sensação de vazio que esse outro, seja quem for, é incapaz de preencher. Os registros da cidade, de seus fragmentos, seu movimento e espaços abertos, bem como bares, praças, ruas e casas de show, são contrapostos de maneira tanto dialética quanto complementar com as cenas em ambientes fechados, os instantes de maior intimidade e desnudamento emocional das personagens. É na grandeza e amplitude dos espaços abertos e dos locais de convívio coletivo que se encontram, se diluem e se projetam as existências isoladas que são esmiuçadas nas cenas de interior, nas sequências passadas na casa que Francisca e Teresa dividem. O filme explora com riqueza toda uma gama de sentimentos vividos pelas protagonistas. De maneira sóbria, eficaz, sugestiva e mantendo sempre um distanciamento muito bem calculado, Marília Rocha desnuda as alegrias, as frustrações, as expectativas e os temores que nelas surgem e se fundem. As oscilações das camadas interiores das personagens são traduzidas e sugeridas pelas imagens, pelo que é falado e pelo que não é dito, pela relação entre seus corpos, seus gestos e suas expressões. ‘A Cidade Onde Envelheço’ se debruça na percepção dos rostos como paisagem, os expondo, revelando e trazendo à tona suas sensações e movimentos interiores, tendo duas ótimas atrizes para tornar esse processo ainda mais intenso. Tudo isso é só é possível pelo trabalho de câmera, pela composição de quadro, pelos fluxos dramáticos impressos aos planos, pela construção espacial, ou seja, pela ótima encenação da diretora.

O discurso de ‘A Cidade Onde Envelheço’ é sobreposto por diversas questões existenciais e sociais, mas composto de maneira complexa, aberta e sugestiva. Nada no filme é óbvio, Marília convida o espectador a refletir, se projetar e criar relações pela maneira como constrói a encenação de cada plano, cada sequência e na relação que cria entre elas. O longa tem uma leitura mais epidérmica que pode ser vista na relação de projeção entre as protagonistas. Teresa e seus entusiasmos remetem à Francisca quando essa chegou ao Brasil. A melancolia, o deslocamento e o não-pertencimento de Francisca, bem como a saudades de seu lugar de origem, indicam o caminho pelo qual Teresa irá seguir e como sua personalidade pode vir a transformar-se, seguindo um trajeto similar ao que foi vivido pela amiga durante esse período no exterior – tanto que o final do filme pode ser visto como o encaminhamento para a completude de um arco narrativo em que a fusão simbólica das personagens, da experiência de vida das duas em seus exílio, é preconizada. Mas os sentimentos que ambas dividem e mesmo aqueles que não compactuam se prolongam muito além de suas personas e do simples fato de serem imigrantes. Esse não-pertencimento, essa sensação de deslocamento existencial e espacial e principalmente a incompletude, o desconforto e a solidão são reflexões acerca do ser humano contemporâneo, de seus vínculos afetivos efêmeros, suas incertezas. Por meio das duas protagonistas, Marília Rocha está falando sobre todos nós, bem como sobre nossa realidade frágil e fragmentada no mundo de hoje.

‘Histórias que Nosso Cinema (não) Contava’, de Fernanda Pessoa

Por Fernando Oriente

‘Histórias que Nosso Cinema (não) Contava’, de Fernanda Pessoa

historias-que-nosso-cinema-nao-contavaÉ algo desconcertante o que a visão de ‘Histórias Que Nosso Cinema (não) Contava’ provoca no espectador: trata-se um filme excepcional, simples assim. Um filme de montagem, que utiliza apenas imagens de longas feitos no Brasil na década de 1970 por diversos cineastas e que, de uma maneira ou de outra, acabaram sendo classificados como “pornochanchadas”, obras que não pertenciam aos grandes cânones da filmografia brasileira reconhecida como “de qualidade”. Filmes que se utilizavam da nudez das atrizes e do sexo para conseguir financiamento e obter êxito comercial nas salas populares dos centros das grandes cidades, mas que em muitos casos são, na realidade, belos melodramas, filmes policiais, comédias ou filmes de horror. Entre os títulos escolhidos pela diretora Fernanda Pessoa (num precioso trabalho de pesquisa), temos obras de grandes cineasta como Antonio Calmon, Jean Garret, Braz Chediak, Alfredo Sternheim e Cláudio Cunha, passando por diretores talentosos que nunca tiveram o devido reconhecimento como Ody Fraga e Carlo Mossy, até longas mais obscuros. Todos esses filmes, retrabalhados, fragmentados, contrapostos e justapostos – num processo de montagem brilhante – formam um discurso fortíssimo e extremamente dialético que procura  retratar e pensar o Brasil dos anos 70 e da ditadura civil-militar, ao mesmo tempo em que se dedica a interpretar, refletir, levantar questões e propor opções de leitura sobre um país, seu povo e as imensas complexidades que formavam o tecido político, social, cultural, existencial e de costumes do Brasil no período.

Esse texto teria que gastar inúmeros parágrafos para tentar mencionar todos os temas, situações e questões que fazem parte do discurso de ‘Histórias Que Nosso Cinema (não) Contava’. E ainda assim muitos acabariam ficando de fora. É um longa que pede muitas revisões e, a cada uma dela, novas e interpretações e leituras naturalmente surgirão. Cabe a cada espectador se entregar ao fluxo de imagens e sons que o filme de Fernanda oferece e dessa experiência retirar sua próprias interpretações.

O mais significativo e impressionante é que, por meio de um filme de montagem, pela escolha precisa de trechos e fragmentos, cenas e planos, diálogos e sons de diversos filmes, Fernanda Pessoa constrói um longa totalmente original, com um discurso e uma dramaturgia próprios. Pela montagem de matérias já existentes, Fernanda cria uma obra totalmente singular, ressignificando toda imagem e todo som preexistente para tecer uma narrativa pessoal e inédita, de força arrebatadora. Cada corte liga um plano de um filme a um plano de outro longa. A precisão no processo, no corte, na transição entre esses planos criam um diálogo entre obras totalmente distintas, que dialogam entre si, se completando ou comentando umas as outras. Imagens nunca antes relacionadas formam uma narrativa que surge de maneira orgânica dentro da fluidez do discurso desenvolvido por Fernanda. O mesmo processo está presente na banda sonora, com as inter-relações entre diálogos, músicas e ruídos. Nada do vemos na tela é supérfluo, cada fotograma tem sua função. A mudança entre os temas e questões abordados em ‘Histórias Que Nosso Cinema (não) Contava’ é notável, sem a necessidade de explicações excessivas e a redefinição dos rumos narrativos se dá na própria sucessão de imagens, na superfície do filme.

‘Histórias Que Nosso Cinema (não) Contava’ é ancorado numa dialética profunda e sofisticada, ao mesmo tempo em que objetiva. Cheio de texturas, infinitas possibilidades de leitura e com estrutura e ritmo envolventes, o filme retrata um país e um período histórico de maneira complexa e com camadas e mais camadas que vão se revelando ao longo de todo o decorrer da projeção. Os diversos temas centrais como as consequências do golpe de 1964 e a ditadura nos anos 70 e a forma como isso afetou o país em diversos campos, da economia à política, da violência e o terrorismo de Estado ao culto incessante pelo dinheiro, da modernização forçada do país ao êxodo rural que produzia milhões de imigrantes que abandonaram a região Nordeste e o interior do Brasil e acabaram superpovoando metrópoles como São Paulo e Rio de Janeiro, da entrega de nossas riquezas e de nosso projeto industrial ao capital estrangeiro a crescente alienação imposta à população pela TV e a publicidade; todos esses temas são retratados em detalhes. Mas o grande mérito de Fernanda é nunca abandonar o indivíduo, a cidadã e o cidadão brasileiro em meio a todo esse turbilhão de acontecimentos.

historias-que-nosso-cinema-nao-contava-de-fernanda-pessoaO corpo é também tema central, talvez o que mais é trabalhado pelo filme. Corpos que são mercantilizados, que sofrem violência constante, tanto física quanto psicológica, mas que também anseiam por prazer e liberdade. Principalmente o corpo da mulher, coisificada, tornado mercadoria para exploração e para o consumo, com destaque a hiper-sexualização da mulher negra. O machismo e a misoginia que subjugavam e anulavam as mulheres, tanto nos seus corpos como em suas mentes. O mesmo pode ser visto nos corpos masculinos, superexplorados por trabalhos que pagam mal ou pelo desemprego e a violência, que faz desses corpos párias vagando pelas cidades à procura de oportunidades de trabalho, além de vítimas do preconceito de classe e do racismo. Esses corpos aparecem de diferentes formas como epicentro das imagens: corpos nus, corpos sendo torturados por agentes da ditadura (em cenas fortíssimas de tortura raramente vistas no cinema brasileiro), corpos fazendo sexo – consentido ou não -, corpos à deriva pelos centros urbanos, corpos que dançam e se exprimem numa tentativa de felicidade desesperada, corpos presos, corpos sendo negociados como objetos de consumo num verdadeiro mercado de carne, corpos que buscam a liberdade, corpos em celebração, corpos anulados e aniquilados.

Por meio do consumo dos corpos, Fernanda faz uma ponte para abordar a febre do consumismo que começou a tomar conta da classe média nos anos 70 devido à falácia do “milagre econômico” vendida pela elite e pelos milicos. Tudo parecia estar à disposição para ser consumido de forma brutal e alienante: carros, eletrodomésticos, televisões, imóveis, roupas, mulheres, homens, sexo, diversão. Esse consumismo todo era fortemente ancorado pela fabricação de imagens vazias para serem utilizadas pelo capital, seja na publicidade, seja na televisão. Mas o filme de Fernanda não se atém a discursos fechados, um tema sempre leva a outro. Dentro de transições precisas entre as sequências, passamos dos corpos ao consumismo, da repressão e da violência do Estado para as formas de resistência, seja a luta armada, as greves ou a introdução de questões sociais e teorias marxistas no cotidiano das pessoas. A luta de classes tem papel de destaque dentro da narrativa, assim como as ideias de libertação individual por meio da revolução dos costumes, da liberdade sexual por parte das mulheres, dos questionamentos à moral patriarcal, a luta por direitos civis, bem como a questões de gênero e orientação sexual. Impressiona como num longa de pouco mais de uma hora e quinze, Fernanda aborde tantos temas sem nunca tratá-los de forma superficial ou caricata.

historias-que-nosso-cinema-nao-contavaA questão da imagem, da responsabilidade com a imagem é outro ponto alto de ‘Histórias Que Nosso Cinema (não) Contava’. Ao mesmo tempo em que expõe como imagens podem ser produzidas e veiculadas de maneira delirante e vazia para impulsionar o consumo e a alienação; o uso mais canalha e irresponsável que podemos ter com o valor representacional e significante da imagem, o filme de Fernanda trata a imagem de outra maneira, radicalmente oposta. As imagens resgatadas pela diretora, remontadas e rearranjadas para a criação do seu discurso narrativo são exemplo claro de como se pode ser crítico, responsável e tratar cada imagem com o máximo de dignidade, fazendo delas não espetáculo vazio, mas significantes de interpretação do mundo, signos de um discurso e de uma narrativa, códigos visuais que conferem a possibilidade da escritura de narrações sólidas, partindo de um lugar de fala determinado e autoconsciente. E a diretora dá esse tratamento complexo e digno a imagens que não foram produzidas por ela, seu trabalho é encarar imagens já existentes com respeito e senso crítico e delas retirar o que elas nos podem dizer. O filme não procura apagar os problemas presentes em muitos filmes do período, como o machismo, a homofobia, o racismo e ou caricatura do desejo e do sexo. Mas Fernanda procura, por meio de uma análise profunda, retirar os fragmentos significantes desses filmes, os subtextos, o que eles têm de melhor e que muitas vezes se escondem dentro de uma visão apressada ou politicamente correta dessas obras. Claro que muitos dos longas utilizados são belíssimos filmes, estão entre o que de melhor o cinema brasileiro já fez, mas no caso dessas obras, nunca tiveram o devido reconhecimento por parte do grande público ou da crítica establishment. Mas a diretora também retira sequências de filmes ruins, que ao serem fragmentadas e rearranjadas dentro do discurso de ‘Histórias Que Nosso Cinema (não) Contava’ ganham novas potências.

Para finalizar, ‘Histórias Que Nosso Cinema (não) Contava’ ainda pode ser visto como um processo de análise fílmica minuciosa, que no caso serve de base para toda a existência do longa de Fernanda. Um filme que constrói tudo o que foi discutido nesse texto, cria um discurso e uma narrativa próprios e originais apenas com imagens já existentes, sem a necessidade de nenhuma narração em off ou inserção de novo material filmado. Um resgate de algumas obras belíssimas e deixadas no esquecimento pela história oficial da nossa cinematografia, um tributo ao cinema e ao poder dos filmes, de planos poderosos, da textura e da sujeira tão orgânicas à matéria da película usada nos anos 70. A comprovação de que todo filme é político. Fernanda Pessoa leva o dito filme de montagem a um patamar bem mais alto.

‘António Um Dois Três’, de Leonardo Moramateus

Por Fernando Oriente

Uma crítica sobre um belo filme brasileiro selecionado para o Festival de Roterdã 2017. Além de ‘António Um Dois Três’, o Brasil conta com mais um ótimo filme na seleção do festival holandês desse ano: ‘Arábia’, de Affonso Uchoa e João Dumans, filme que confirma o talento de Uchoa após o excelente ‘A Vizinhança do Tigre’ e que ao mesmo tempo mostra o diretor, dessa vez ao lado de Dumans, expandindo seu repertório fílmico – sem abandonar suas melhores características – e se dando muito bem. Em função de duas fraturas no ombro, duas cirurgias e a consequente imobilização de um dos braços desse crítico que aqui escreve, a análise de ‘Arábia’ será escrita e publicada em breve.

‘António Um Dois Três’, de Leonardo Moramateus

antonio-um-dois-tresEm seu primeiro longa – o primeiro trabalho realizado pelo diretor fora do Brasil, filmado inteiramente em Lisboa, Leonardo Moramateus parece ter se apegado às diversas qualidades de seus muitos (e bons) curtas e as ter condensado de uma maneira funcional e potente para fazer de ‘António Um Dois Três’ um filme extremamente interessante. Trabalhando em cima das possibilidades de múltiplas representações de seu protagonista, da realidade e de seu entorno. Moramateus divide o longa em três partes e nelas vemos diferentes Antónios: O António um, o António dois e o António três. Mas não são apenas as alterações de personalidade (mas que em momento algum anulam a essência do personagem) e de situações dramáticas que mudam a cada acentuada elipse que une de maneira sólida as três partes do filme. Tudo se altera, desde o papel dos personagens que cercam o protagonista, a realidade de seu cotidiano, as tarefas em que se envolve, as ações de cada um que cruzam seu caminho, os locais aonde mora e a maneira como, a cada nova sequência, sua personalidade vai se consolidando e tornando-se mais segura. Um filme que atinge o vigor como um todo pela força com que cada uma das partes se relaciona entre si, potencializando não só o conjunto, bem como cada sequência e cada plano isoladamente.

‘António Um Dois Três’ é um filme narrativo, mas que subverte a narração e cria zonas de deslocamento, se afastando das facilidades e clichês do cinema narrativo devido ao controle, a inventividade, os riscos que o diretor assume (e dos quais se sai muito bem), a precisão nas modulações dramáticas, a ótima montagem e a segura encenação de Moramateus. Não existe excesso de explicações para tornar as tramas mais palatáveis ou fáceis de entender, o diretor trabalha para evitar a preguiça do espectador, forçando o público a pensar, deduzir, associar e interpretar de maneira subjetiva. Diversas situações, ações, fatos, desfechos e conclusões narrativas são deixadas de fora – ou no extracampo ou simplesmente em aberto. Tudo isso condensa e dá o ritmo certo ao filme, carregando a narrativa de porosidades e possibilidades. Não se busca o óbvio, a câmera de Moramateus observa em fragmentos de espaço e de tempo. Um filme cujo discurso só existe e que se dá ao espectador pela mise-en-scéne, pelas imagens, planos, cenas e tensões, nunca por meio de truques de roteiro ou por sequências fora de tom. Um longa que existe pela e por meio da gramática cinematográfica. Tudo flui dentro de uma naturalidade notável. Cada nova realidade, cada novo António e cada novo rearranjo narrativo nos aparecem de maneira sutil, cadenciada e com múltiplas possibilidades de significação.

Basicamente temos um fio condutor – que também será subvertido ao longo do filme: António foge da casa do pai e se joga sozinho numa nova vida pelas ruas Lisboa onde irá encontrar a ex-namorada, uma turista brasileira, antigos e novos amigos e acabará se envolvendo na produção e encenação de uma peça de teatro. Uma jornada de auto-descoberta, de amadurecimento e de definição de sua identidade, bem como um percurso de procura e conhecimento de si próprio e uma maior valorização de seus desejos e de confrontamento com suas dúvidas e receios. O controle da dramaturgia e um domínio pleno da mise-en-scéne fazem com que os diversos rearranjos narrativos, os novos papéis assumidos pelos mesmos personagens após cada elipse e as diferentes realidades que se apresentam a António e aos demais tipos se materializem na tela de maneira harmoniosa, instigando o espectador a absorver esses diferentes momentos e automaticamente associa-los a constantes novas interpretações e possibilidades de leitura.

antonio-um-dois-tre%cc%82sO longa de Moramateus explora com intensidade questões existenciais, mas sem psicologismos ou arroubos dramáticos. Tudo flui com honestidade e veracidade fílmicas impressionantes. A leveza e a naturalidade com que as sequências são construídas só reforçam a força e a complexidade da dramaturgia. Desde a variação entre planos fixos e movimentos de câmera, as construções de quadro, a decupagem ágil e um preciso trabalho de posicionamento de câmera, além de uma fotografia que abusa das variações de luminosidade para potencializar os dramas, tudo funciona da maneira exata para fortalecer o filme, para consolidar uma estética complexa que se faz perceber por trás da total ausência de exibicionismos formais e da sinceridade com que o diretor trabalha a forma dentro de seu discurso. Um diretor seguro diante de seu material, personagens bem compostos e fundamentais para o discurso do filme, que não perdem nada de suas múltiplas texturas a cada nova realidade narrativa que se apresenta, o mesmo que pode ser dito sobre cada nova variante de modulação dramática.

‘António Um Dois Três’ é um dos melhores retratos da velocidade e da instabilidade do mundo, da fragilidade das relações, dos jovens adultos nos dias de hoje – com suas contradições, inseguranças e precariedades – mas ao mesmo tempo, uma afirmação da possibilidade da vida, de existir e de sempre (r)encontrar caminhos para seguir em frente. Um filme que aponta que podemos ser diferentes a cada momento, nos adaptarmos a cada nova situação, ou mesmo lidar de diferentes maneiras com as mesmas situações que a vida nos impõe. Um longa em que não existem vitimismos e que vai à contracorrente do cinema que tende a pesar a mão para retratar o mal estar de viver, ‘António Um Dois Três’ nos oferece ao longo de toda sua duração, sem em momento algum perder o fôlego, imagens pulsantes de energia, cenas preciosas, diálogos inteligentes e cheios de significantes, tempos de observação e momentos de ação, além personagens sólidos mesmo em suas fraquezas e um constante prazer em se fazer cinema que Leonardo Moramateus imprime em cada fotograma desse belo filme.

‘O Último Trago’, de Luiz Pretti, Pedro Diogenes e Ricardo Pretti

Por Fernando Oriente

o-ultimo-tragoUm filme de fantasmas, de espectros, de vivos adormecidos e mortos que lutam. Um resgate da ancestralidade como ressignificação, do conflito do ser humano dentro do caos, da perda de identidade no cotidiano material que só pode ser retomada naquilo que o tempo deixou em aberto, nas chagas mal curadas do passado, nas lutas apagadas e interrompidas pela história, mas vivas na transcendência dos valores. Corpos que carregam feridas, espíritos que carregam feridas. Os tempos que se estendem e se fundem. O deslocamento dos vivos é permeado pela consciência dos fantasmas, que chamam à luta, que reorganizam e abrem caminho para multiplicidade espaço temporal que evita o apagamento e exige a ampliação dos sentidos e da percepção. Uma consciência do peso material transcendente de existências que se prolongam no continuum temporal. Ambientes carregados de uma paralisia que só será capaz de ser rompida com a volta ao tempo que homem enterrou. ‘O Último Trago’ é filme de gesto, não o gesto diegético, mas o gesto de seus realizadores em se atirarem em uma construção fílmica baseada no valor simbólico e metafísico da imagem. A autonomia da imagem e dos planos como o próprio discurso.

O longa, assinado por Pedro Diogenes e pelos irmãos Luiz e Ricardo Pretti, trabalha em três movimento básicos, que se prolongam em novos movimentos internos que se abrem dentro de cada um deles. A primeira e a última passagens do filme são construídas dentro da simbologia, da autonomia significante dos planos, dentro de um conceito de obra em aberto. Entre essas passagens temos o meio do filme, em que a narrativa torna-se mais linear (sem nunca abandonar seu potencial simbólico) e a encenação é composta por um contato mais naturalista presente no registro das cenas e na transição entre planos e sequências. Um bom recurso aqui é a variação no uso da janela. No início e no fim do filme temos um quadro mais estreito, que reduz as bordas laterais e potencializa a alta carga simbólica e alegórica das sequências no interior central dos planos. O meio do filme é captado em scope, o que prolonga o campo diegético e aumenta a sensação de amplitude dos espaços. ‘O Último Trago’ é construído pela variação entre planos-sequência – altamente funcionais na revelação sensorial, dramática e espacial das ações, personagens e ambientes – e planos curtos, geralmente em ângulos mais fechados que concentram a dramaturgia na superfície do plano ou que servem para ampliar os sentidos de determinadas ações e gestos por meio da montagem e da sucessão entre os takes. Um filme em que a estrutura e a forma são fundamentais e conseguem promover resoluções de dramaturgia pelo uso preciso da linguagem própria e única da manipulação eficiente da gramática cinematográfica.

Os três movimentos do filme se projetam um no outro. Personagens/arquétipos assumem diferentes papéis ou reafirmam sua significação simbólica cada vez que retornam ou reaparecem em cena. ‘O Último Trago’ é um filme de resistência, que chama pela ação diante do caos, que busca redimensionar e resgatar o valor do ser humano em meio a um mundo desencantado. Seu discurso é político e atualíssimo, mas é construído de maneira sensorial, simbólica e metafórica. Os diretores não fazem uma radiografia do momento histórico em que vivemos por meio de representações realistas, mas pelas constantes inter-relações entre o que é sugerido pela simbologia e o que é mostrado em fragmentos, recortes da realidade direta das ações. As sequências que se passam em um bar isolado no interior do Ceara e que são o miolo do filme são registradas de forma mais realista, personagens são trabalhados e desenvolvidos dentro de suas características identitárias e existenciais. As relações entre eles são exploradas de maneira mais direta. Mas tudo o que se passa nesse longo trecho do filme é carregado pela que vimos antes e irá se prolongar e se abrir em múltiplas camadas de leitura e significação no trecho final.

o-ultimo-tragoO que temos nas sequências no bar são personagens apáticos, angustiados, paralisados e anestesiados dentro de um tempo morto que se arrasta. São tipos que vivem de rompantes: explosões de violência, canções interpretadas pela personagem Marlene, um personagem que toca seu violão sem parar, reflexões poéticas ou diálogos curtos e secos e uma tensão onipresente que toma conta de tudo e de todos. Esses personagens são os espectros vivos, os seres apáticos que são chamados à reação, à luta pelos fantasmas e suas representações. ‘O Último Trago’ inverte relações, o poder de ação, a potência de luta e resistência vem dos mortos, daqueles apagados pelo passado e que ressurgem para concluir seus percursos e chamar os vivos à retomada da consciência. O aparente naturalismo dessas passagens no bar é constantemente questionado e ressiginificado pela força metafísica e transcendente das sequências que abrem e fecham o filme; elas ganham uma dimensão que vai muito além do que está na tela, na simplicidade das ações e se prolongam dentro de uma relação que é estabelecida pela superposição de tempos, pela invasão simbólica de mitos e pelos fatos do passado que voltam à tona por meio dos personagens fantasmas – que sempre surgem como personagens/personas femininas, dando ao feminino um poder maior dessa representatividade ancestral, o que podemos ver como uma analogia à maternidade e ao papel central da mulher como fonte principal da vida, vida essa que se desloca no tempo e volta à tona para se reafirmar e guiar o destino presente e aberto. A consciência, o poder, a ação e reação vêm do passado, vêm desses fantasmas (dessas mulheres), vêm da ancestralidade e de tudo que foi soterrado e calado pelo tempo linear que apaga valores, ideologias, lutas e identidades. O tempo multifacetado – sobreposto e em constante desdobramento – é o centro de ‘O Último Trago’, é ele que sugere e cria a possibilidade de percepção e existência aos personagens e aos espaços por onde se deslocam. Mas em nenhum momento os diretores apontam um caminho óbvio para redenções, o filme é calcado num registro de não-conciliação.

O filme acerta e se torna mais forte pela entrega dos realizadores a um universo multidimensional, pela recusa à linearidade diegética, pela entrega aos simbolismos e metáforas, pela desconstrução dramático-narrativa, pela constante inserção de planos e sequências que surgem como elementos desestabilizadores, pelo fato de sempre tirarem o espectador de seu lugar de conforto, pelo constante prolongamento do que vemos na tela numa relação espacial que vai além do campo e do extra-campo e penetram o espaço das representações e leituras múltiplas. Um filme de forma, de entrega total à potência da imagem, que ganha demais pela fotografia primorosa e seu uso marcante da luz, das intensidades e variações dessa luminosidade e pela inserção de filtros. Sem contar a precisa encenação, a manipulação de climas e tensões e a construção altamente significativa dos quadros. ‘O Último Trago’ é mais um filme que vem para consolidar ainda mais Pedro Diogenes, Luis e Ricardo Pretti e o cinema de invenção e altamente original do coletivo Alumbramento entre o que temos de melhor no contemporâneo cinema independente brasileiro.

‘O Touro’, de Larissa Figueiredo

Por Fernando Oriente

o-touroUm lugar, seus significantes, sua mitologia, sua gente e seus espaços. A observação do real e do que está implícito dentro dessa realidade potencializada e ampliada pela ficção, pela representação desse real e pela gramática do cinema. ‘O Touro’, longa de Larissa Figueiredo, consegue alcançar momentos de grande intensidade não só pela feliz escolha de fundir ficção e não-ficção no mesmo tecido dramático e narrativo (o que o filme consegue realizar de maneira positiva), mas principalmente pela belíssima construção de planos e pelo trabalho minucioso de câmera. Por meio de planos sequências potentes, que estabelecem uma complexa junção entre o ser humano e os ambientes por onde eles circulam e se inscrevem fisicamente, uma variação criativa e funcional do posicionamento de câmera e das distancias focais, bem como pela maneira como planos saem de tomadas abertas, fecham em planos médios ou closes, circulam por meio dos tipos e do espaço e constantemente reorganizam o quadro dentro do mesmo plano ou por uma decupagem baseada em transições por cortes secos e pequenas elipses, toda a forma, a estrutura de ‘O Touro’ servem muito bem a intenção de Larissa tanto em “documentar” a Ilha de Lençóis, no Maranhão, e sua gente, quanto na trabalhar no campo da ficção e da mitologia.

É o trabalho formal, estrutural e gramatical de Larissa que tornam ‘O Touro’ um belo filme. O filme usa uma personagem fictícia, Joana (vivida pela atriz portuguesa Joana de Verona) que visita a Ilha de Lençóis para investigar a lenda de que Dom Sebastião, mítico rei português, não teria morrido e sim fugido para o litoral maranhense e na ilha fundado uma pequena comunidade da qual era o rei e, desde então, todos os que lá nasceram e nascem são seus descendentes. A personagem Joana é híbrida, ela vive sua persona ficcional ao mesmo tempo em que aparece como ela mesma, dentro de um registro documental, como uma estrangeira que investiga o lugar e sua gente e procura descobrir como vivem, o que fazem e pensam, ao mesmo tempo em que tenta conhecer sobre a história do lugar, seus mitos, suas crenças e lendas. Essa fusão, tão comum no cinema contemporâneo entre a ficção e não-ficção, tem resultados muitos bons dentro da solução da dramaturgia do filme. Embora, as vezes, ‘O Touro’ perca um pouco sua intensidade, essa é rapidamente recuperada e desemboca em sequências finais realmente poderosas e complexas, sequências essas em que a ficção e o lado mágico tomam conta totalmente do filme.

o-touroNesse constante intercâmbio entre o registro documental e a ficcionalização, Larissa estabelece um forte jogo entre a relação campo e extra-campo. Nas sequências em que o filme se atém a registrar documentalmente as pessoas e os espaços, a importância, a força dramática e a narrativa fixam-se no que está dentro do quadro, dando pouca ênfase ao espaço fora de quadro. Quando ‘O Touro’ muda seu registro e se concentra na parte ficcional, esse dispositivo potencializa demais o fora de campo e o que vemos na tela se relaciona de maneira intensa com o extra-campo, que surge carregado de possibilidades, mistérios e de uma sensorialidade metafísica, mágica e simbólica. Um filme em que a beleza surge de maneira intensa, mas nunca porque é procurada pela câmera. A beleza e o esplendor são fruto das ações e contemplações objetivas da encenação, da matéria do filme. O belo está por trás das pessoas, dos objetos, dos lugares, das ações; ele rompe as construções de cena e torna-se parte das sequências. Os personagens, principalmente Joana, fazem parte ou são integrados pela própria existência dos ambientes onde se encontram e que a câmera de Larissa perscrutina com movimentos cadenciados, ângulos múltiplos e diferentes distâncias focais. É constante a entrada e saída de personagens do quadro e  é notável a maneira como esses personagens são reincorporados à cena pela composição dos planos. A relação personagens, espaço e deslocamentos temporais é muito bem trabalhada pela diretora e são funcionais ao extremo na recepção e construção do discurso.

Ao investigar uma lenda portuguesa a personagem Joana, bem como a atriz Joana de Verona acabam por revelar (e viver) a mitologia, as tradições, as crenças e peso histórico complexo que existem na ilha. Com isso, o que ‘O Touro’ realmente nos revela é a força do lugar, de sua gente, de seus espaços e todo o poder simbólico típicos daquelas pessoas e do ambiente em que vivem. A lenda de Dom Sebastião é absorvida pela simbologia e pelos significantes culturais, históricos e metafísicos característicos da comunidade maranhense. Uma relação complexa se estabelece a partir da encenação e da montagem, relação essa entre o tempo presente e o tempo vivido, entre a materialidade e o lado físico do real apreendido ou representado pelas cenas e toda uma espiritualidade cheia de crenças, mitos, fé e lendas que se fundem no imaginário, nos modos de viver e pensar o mundo e a presença nesse mundo complexo.  Discurso e dramaturgia que têm sua força na imagem e no discurso intenso que essas imagens carregam e reproduzem, na construção dos planos e sequências, na movimentação da câmera entre pessoas e lugares, na elaboração dos quadros e no poder simbólico e representacional que esses recursos formais da gramática cinematográfica fazem surgir na tela. ‘O Touro’ é cinema, um cinema potente.

‘Aquarius’, de Kleber Mendonça Filho

Por Fernando Oriente

7 cred Victor Juca_Sonia BragaLugar de fala, de presença no mundo e protagonismo de sua própria narrativa. São desses pontos e focos multifacetados e abertos que Kleber Mendonça Filho parte para construir a força de seu segundo longa-metragem de ficção. Poucas vezes o cinema viu um chamado filme de personagem ser tão fiel a esse predicado que se costuma usar para definir obras que giram em torno de seu protagonista. Em ‘Aquarius’, tudo emana e se constitui pela presença de Clara – a protagonista vivida por Sonia Braga. É dela, por meio dela e a partir dela que um discurso cheio de camadas e reflexões torna-se matéria, ação, drama, possibilidade, narrativa, comentário e ponderações. O devir do filme é a existência de Clara e sua relação com os outros, com os espaços em que está inserida, com seu passado e seu presente. ‘Aquarius’ é uma obra que discute inúmeros assuntos, temas e faz uma radiografia precisa do Brasil dos dias de hoje e toda a relação que esse momento tem com a história e as conjunturas que formaram o país, suas estruturas, sociedade e mecanismos de funcionamento. Mas essa operação é constituída por Kleber Mendonça Filho de maneira sofisticada, sem obviedades, sem ser explícito e muito menos panfletário, usando a abusando de uma gramática cinematográfica que o diretor domina por completo. Cinema maduro, que tem seu núcleo na relação notável entre as modulações da dramaturgia e a evolução narrativa que se constroem a partir dessas.

A principal força e a maior qualidade de ‘Aquarius’ são as ações, os dramas, os questionamentos e os conflitos pessoais de Clara, bem como o que a partir e por meio deles também se tornam elementos dramáticos e reflexivos. Um filme que mergulha no interior e nos entornos de sua protagonista e faz cada situação por ela vivida, desdobrar-se e tornar-se intensa e com potência dramático-narrativa. O cotidiano da protagonista, seu lugar no mundo, suas relações tanto com o que vive diariamente quanto com o peso que carrega daquilo que já viveu são matéria para uma sucessão de grandes cenas, que isoladamente já se destacam ao mesmo tempo em que vão se somando e dando um peso cada vez maior à trajetória discursiva do filme, a uma evolução narrativa que vai se costurando num crescente de tensões acumulativas. Kleber Mendonça Filho se utiliza das sequências do filme para separadamente discutir e comentar, sempre a partir das ações e ambiguidades que envolvem sua personagem, a realidade em que ela está inserida. É por meio da presença enorme de Clara e de sua dignidade e firmeza de caráter que o diretor pensa o mundo, o Brasil em que ela e nós vivemos. Tudo que cerca a personagem tem peso significativo. Toda ação ou conflito que ela vive, bem como suas relações com os outros personagens, se projetam para além dos dramas encenados no interior da cena e se deslocam para o extra-campo, para um fora de quadro cheio de camadas discursivas. ‘Aquarius’ se faz de dois focos narrativos complementares e dialéticos: o dia a dia de Clara e aquilo que existe além e a partir de sua presença e suas ações.

3 cred Victor Juca_Sonia BragaHá um conflito central no filme, o fato que Clara ser a última moradora de um pequeno e velho edifício na praia de Boa Viagem no Recife e não querer vender seu imóvel para uma mega-construtora demolir o predinho e lá construir um imenso edifício (“empreendimento”) de alto padrão – esses prédios enormes que poluem a orla das grandes cidades com apartamentos caríssimos, frios e cafonas para a alta sociedade. A resistência de Clara, sua postura ética e moral e sua determinação ferrenha em não aceitar a proposta milionária e continuar vivendo sozinha em um edifício em que todos os outros apartamentos estão vazios e já não existem mais funcionários é uma forte metáfora para os dias de hoje – uma sociedade em que o poder absurdo das grandes corporações controla o destino do mundo. O seu apartamento é o lugar onde ela casou, teve seus três filhos e os criou, superou um câncer, acompanhou a morte prematura do marido ainda jovem, amadureceu, desenvolveu sua carreira de escritora e jornalista. Mais do que um imóvel, é um lugar de memória, um espaço onde ela construiu seu modo de vida, um local impregnado pela sua existência, suas recordações, um abrigo, um lar. Um ambiente de materialidade carregado de afeto; afeto vivido e compartilhado. Essa relação com os espaços e seu peso simbólico-existencial tende a se perder numa sociedade em que tudo é passageiro, em que os valores mudam aos ventos das imposições de consumo do mercado, de uma contemporaneidade capitalista que tende a desvalorizar o simbólico em detrimento ao novo; leia-se o novo como um produto para consumo. Manter-se em seu apartamento é manter-se íntegra em sua própria essência, é resistir. Sua casa é a extensão e o complemento de seu ser, de seu estar. São traço e afirmação de identidade.

Como em seu longa anterior, ‘O Som ao Redor’ e também em alguns de seus curtas e trabalhos em vídeo, Kleber Mendonça Filho constrói uma dramaturgia em que elementos de tensão e desorientação vão surgindo e desestabilizando os personagens e a narrativa. A negação de Clara em se desfazer do apartamento faz a construtora iniciar uma série de ações canalhas para forçá-la a vender. A cada provocação, invasão e ameaça criada pela empresa Clara mantém-se mais resoluta e altiva em sua decisão de não sair. Ela tem uma força imensa, reconhece e valoriza seu lugar no mundo, sua história, sua importância e domina seu lugar de fala, de ação. Segue seus desejos e sua consciência. A construção da personagem é notável por parte de Sonia Braga, em sua melhor atuação na carreira. Ela se doa ao filme na mesma proporção em que Kleber usa sua personagem como força motora do longa. A relação e a sintonia entre cineasta e atriz são perfeitas.

credVictorJuca Sonia_rede2Clara é mulher bem resolvida, já na faixa dos sessenta anos de idade, é uma intelectual de classe-média, bem economicamente e que viveu de maneira intensa as transformações comportamentais, políticas e sociais que o país passou nos anos 70 e 80. Madura, com uma personalidade determinada, moldada por uma sólida relação elaborada entre tudo o que passou e absorveu e seu atual papel no mundo. Embora seja uma personagem de extrema força interior, consciente de suas capacidades, perseverante e resoluta, Kleber Mendonça não faz de sua protagonista uma caricatura de uma mulher sobre-humana, um simulacro de virtudes ou uma heroína inabalável clássica. Clara é forte porque sabe das dores que viveu e ainda vive, assimilou seus traumas e suas perdas, carrega cicatrizes (emocionais e físicas) com as quais tem que lidar constantemente. Tem dúvidas e medos e muito do seu vigor vem da maneira como encara e tenta superar tudo isso. Algumas passagens ilustram bem a complexidade e a maneira como ela lida com suas limitações, inseguranças e frustrações, seja na sequência em que visita o túmulo do marido – num misto de desconforto e tristeza recalcada -, na discussão que tem com seus filhos e como reage às acusações e insinuações que eles fazem ou mesmo quando é assolada por pesadelos que expõe a fragilidade da solidão em que vive.

A construção de sua sexualidade é um dos pontos fortes do filme. Clara sai para dançar, se interessa por um homem e vai parar no carro do desconhecido onde trocam beijos e só não vão mais além pelo preconceito que homem demonstra ao descobrir que ela teve que retirar um seio durante seu tratamento contra o câncer de mama. Mesmo diante do desconforto da reação do sujeito, Clara mostra altivez, recusa a carona oferecida por ele e volta para casa de táxi. Toda essa sequência é encenada por Kleber com uma proximidade desconcertante, em que ele retira o máximo de densidade da situação. Mais forte ainda é a cena em que ela resolve chamar um garoto de programa para sua casa. Num misto de vergonha, tensão e desejo, ela se entrega ao jovem e deixa sua pulsão sexual fluir sem freios. Mais uma vez a mise-en-scéne proporciona uma cena poderosíssima que ainda irá se repercutir quando Clara contar para uma amiga que chamou o rapaz em seu apartamento. Na sequência em que conta para a amiga sobre sua noite com o garoto de programa, Kleber intercala a cena da conversa entre as duas com rápidos flashbacks do sexo entre Clara e o jovem. Com isso, cria-se um conflito entre o que ela diz para amiga de maneira vaga e ambígua sobre o quanto gostou do sexo e os momentos de êxtase sexual que viveu com rapaz, que surgem em imagens frontais e vertiginosas na tela por meio da inserção dos rápidos e diretos planos da trepada, tornados ainda mais fortes pela movimentação intensa no interior do quadro e ritmados pelo vigor dos cortes secos.

cred Victor Juca _ Maeve JinkingsEssa personalidade complexa e profunda de Clara é o contraponto de sua filha, Ana Paula (vivida por Maeve Jinkings, em mais uma atuação excelente em que prova ser uma atriz de imenso repertório capaz de interpretar perfeitamente qualquer papel). Enquanto a filha é uma jovem adulta típica dos dias de hoje, pragmática, insegura e que vive entregue ao ritmo mecânico alucinante da vida moderna, se desdobrando entre trabalho, criar o filho bebê após uma recente separação e transparecendo um desconforto e uma sensação de deslocamento diante da vida, sua mãe tem a energia, a determinação e a segurança de uma pessoa que mistura serenidade, poder de superação, capacidade de auto-análise e força de luta por aquilo que deseja e acredita, bem como competência para se autodeterminar como sujeito ativo de sua própria história. Esse choque geracional e de personalidades distintas também compõe de maneira nítida o discurso multi-textual de ‘Aquarius’ e está presente não só na relação da mãe com a filha, mas como Clara se relaciona com o sobrinho, o irmão, os seus outros dois filhos, suas amigas e com os demais personagens que fazem parte de seu cotidiano, como sua relação com a empregada e com o salva-vidas da praia que frequenta (vivido por Irandhir Santos), um jovem que sente admiração, sentido de proteção e ternura por ela. Com cada uma dessas pessoas que Clara se relaciona e interage ela demonstra uma profunda empatia, respeito, distância ou proximidade – e as construções cênicas ampliam isso a todo instante por meio da modulação precisa de intensidade que confere a cada encontro, a cada diálogo ou interação entre os tipos. As relações de Clara com o outro e o que delas surgem e se sugere é uma maneira preciosa de Kleber Mendonça Filho conferir ainda mais complexidade e camadas na composição de sua protagonista.

Todos os personagens do filme são bem construídos e exercem papéis fundamentais, por mais breve que sejam suas aparições no longa. Bem compostos, representam os contrapontos, conflitos, afetos e possibilidades para que, a partir de seus encontros e relações com Clara, Kleber aumente as camadas discursivas, os comentários e os questionamentos presentes na narrativa. Mas outro grande mérito do filme é a força simbólica e tudo o que a presença isolada de Sonia Braga representa. Nas inúmeras sequências onde se encontra sozinha em cena, seus gestos, expressões, ações, tudo tem uma força cênica aguda que se tornam epidérmicas, como nos planos em que Clara se desloca pelo seu apartamento e vemos o cenário se revelar em função dos movimentos da personagem, a construção dos espaços sempre ligada à relação temporal da presença da protagonista e o quanto de significados essa relação espaço-tempo carrega. O mesmo ocorre nas cenas fora do apartamento, em que acompanhamos Clara pelas escadas e entradas do prédio, na garagem, ou mesmo em suas caminhadas pela rua e suas idas à praia. As falas, os embates e as interações com o outro são tão poderosas quanto seus pequenos gestos e olhares; o descansar de seu corpo na rede, o dançar sozinha em sua sala ou uma entra no mar.

6 cred Victor Juca_Sonia BragaA encenação de Kleber Mendonça Filho segue, com um domínio de mise-en-scéne impressionante, uma oscilação de intensidade determinada diretamente pela carga dramática de cada passagem. A decupagem segue o ritmo dramático-narrativo de cada sequência. Kleber Mendonça Filho oscila entre planos longos e curtos, movimentos suaves em travellings e panorâmicas que reorganizam o quadro e takes colados à personagem com imagens trêmulas, closes e destaque total aos primeiríssimos planos. O diretor varia enquadramentos clássicos com posicionamentos de câmera que desorientam a harmonia da cena e provocam tensão no espectador, além de usar com precisão das transições por elipses. Kleber mostra mais uma vez um total domínio da linguagem e da escritura cinematográfica calcada numa encenação sempre funcional e precisa. Esse domínio confere vigor às cenas isoladas, potência a cada plano e servem para dar uma unidade intensa a narrativa em construção ao longo de todo o filme. Embora o diretor dê destaque significativo e simbólico às cenas isoladas, ele não deixa de trabalhar uma crescente potencialização na tensão narrativa do filme como um todo, o que irá desembocar em um forte clímax, numa poderosa cena final onde a não-conciliação e um forte empoderamento dão o tom do desfecho de ‘Aquarius’.

Assim como em ‘O Som ao Redor’, Kleber Mendonça Filho faz de ‘Aquarius’ um filme em que a questão do choque de classes está sempre presente, de maneira mais sutil em determinados momentos ou de forma mais explícita em outros. Nos dois filmes a narrativa gira em torno de personagens de classe média e classe média alta, embora em ‘O Som ao Redor’ a presença mais constante do personagem de Irandhir Santos, seu irmão e os demais seguranças da rua dêem mais destaque aos representantes da camada sócio-econômica mais baixa da nossa sociedade. O diretor traz esse conflito sem cair em maniqueísmos, nem em didatismo e muito menos de maneira tosca e panfletária. A tensão de classes é algo que faz parte da constituição do país, está no centro do que é e sempre foi o Brasil. E Kleber faz essa tensão ser sentida pelo espectador não só pelas sequências e construções narrativas, mas pelo tom que confere à sua encenação, pela constante sensação de desconforto presente nas relações interpessoais. Seja na maneira como se relacionam patrões e empregados, sejam nos personagens coadjuvantes que habitam os espaços dos mais ricos, seja em como os tipos vêem uns aos outros. Em ‘Aquarius’ temos isso na visita que Clara faz a casa de sua empregada, na relação dela com o salva-vidas, na maneira como sua filha Ana Paula comenta sobre como demitiu sua babá, na cena em que personagens olham álbuns de fotos e recordam de uma antiga empregada que trabalhou para eles e que não lembram o nome e chega a ser mais explícita num diálogo. Após Clara dizer que a antiga emprega foi demitida porque roubou jóias, sua cunhada comenta: “É sempre assim, nós sempre exploramos eles e daí, às vezes, eles nos roubam”. O comentário é simples, orgânico dentro do diálogo e perfeitamente acoplado ao movimento diegético da cena. Todo o discurso de Kleber é construído dessa forma: sólido, funcional, objetivo, complexo em suas muitas possibilidades de leitura e questionamentos e sempre em função do que a pede a cena, a dramaturgia e o instante narrativo.

Outros diversos assuntos que recortam e pensam a realidade do país são abordados em ‘Aquarius’, mas sempre ligados dialeticamente aos dramas e sem nunca tirar o protagonismo de Clara e suas ações. A questão da imprensa que desemboca numa discussão sobre o poder estar sempre nas mãos da mesma elite, das mesmas famílias e grupos é tratada de maneira primorosa na cena em Clara encontra um antigo colega de imprensa e atual diretor de um grande jornal do Recife para almoçar. Num diálogo em que vários assuntos são abordados, principalmente a disputa entre a Clara e a construtora, temos profundos comentários sobre a constituição hierárquica da sociedade do Recife e do Brasil. Essa sequência, encenada de maneira fluída na variação dos planos, cortes e distâncias focais, termina de maneira genial em planos fechados em fotos emolduradas que decoram as paredes do restaurante sofisticado e em que vemos, nas imagens estáticas de fotografias em preto e branco, representantes da elite da cidade, imortalizados para serem vistos como significantes de poder. Sutileza, sarcasmo, dialética, potência cênica, encenação rica em leituras do quadro, ritmo sempre tensionado aos limites sensoriais e objetividade; discurso e narrativa construídos em múltiplas camadas, esse é o ótimo cinema de Kleber Mendonça Filho. Assim como em ‘O Som ao Redor’, o diretor nos oferece em “Aquarius’ mais um grande filme.

‘Brasil S/A’, de Marcelo Pedroso

Por Fernando Oriente

'Brasil SA'O novo longa do diretor Marcelo Pedroso tem mais do que apenas ligação com seu filme anterior, o curta ‘Em Trânsito’ (2013). ‘Brasil S/A’ é um desdobramento da obra anterior de Pedroso, mais ainda, chega a ser uma expansão em 62 minutos do conteúdo, das simbologias e alegorias bem como das ideias e mecanismos de encenação de ‘Em Trânsito’. Mas o filme vai bem além do curta, amplia questões discursivas, introduz novos temas e desenvolve com mais profundidade as questões levantadas no trabalho anterior do diretor. O cinema de Pedroso é um dos mais intrigantes para se pensar o Brasil dos anos Lula, do desenvolvimentismo Lulista, do pacto social (hoje já totalmente esgotado) que aliou uma significativa distribuição de renda, políticas sociais que melhoraram muito a vida de uma enorme parcela de brasileiros menos favorecidos e sempre deixados de lado pela política tradicional do país, com um esforço enorme em desenvolver economicamente o país, em um processo que enriqueceu demais o setor de construção, o mercado imobiliário, indústrias automotivas e de bens de consumo, o agronegócio, mineradoras e bancos.

‘Brasil S/A’ é uma fantasia crítica, um filme em esquetes cheio de sarcasmo e cinismo que explora a obsessão atual do Brasil, o desenvolvimentismo e o crescimento econômico. No longa, Pedroso cria situações fantásticas isoladas entre si, com elementos de surrealismo e falsificação do real em que alguns personagens e circunstâncias surgem e retornam em cena em esquetes sem nenhum diálogo ou uma fala sequer. Um filme que resolve seu discurso nos significantes presentes nas imagens. Um filme que trabalha nas ambiguidades, na força das alegorias, nas arestas deixadas por cada sequência.

É um terreno perigoso que o diretor adentra e que se funcionou bem no curta ‘Em Trânsito’, não alcança o mesmo impacto nesse novo longa. O filme resulta um pouco irregular, com várias boas sacadas, mas que certo esquematismo excessivo e os maneirismos da encenação atravancam a fruição e deixam o resultado final um tanto aquém do enunciado proposto. Mas isso não impede ‘Brasil S/A’ de nos brindar com sequências de grande impacto como a transformação da extração de cana em um processo automatizado, cheio de máquinas de última geração e que Pedroso apresenta como um balé que traduz o embate entre o arcaico e o moderno, a representação sarcástica de uma elite refém de automóveis, que habita condomínios murados de mau gosto e cafonas e uma enorme bandeira do Brasil que cobre todo o cenário, uma bandeira em que o centro é vazado – no lugar da esfera azul, com suas estrelas e as palavras “ordem e progresso”, temos um buraco circular que faz com que a luz atravesse o tecido e projete uma claridade que altera os focos de luminosidade que incidem sobre os quadros – é como se esse novo Brasil incógnita alterasse a realidade por meio das variações entre sombras e claridade que dessa enorme bandeira se projetam sobre a nação. Essa bandeira inacabada é um símbolo de um novo país em construção, que aguarda se autodeterminar dentro de uma nova lógica e cujo vazio está para ser preenchido.

Brasil SAPedroso tem ideias interessantes que explora com inteligência, como mostrar a transformação de elementos típicos de Pernambuco como os cortadores de cana e os catadores de caranguejo dos mangues sendo interrompidos em sua força de trabalho pelo avanço do progresso automatizado que chega por meio de máquinas colhedeiras, tratores de última geração, navios cargueiros que transportam essas máquinas e obras de infraestrutura que surgem brutas em meio à natureza pacata de seus antigos locais de trabalho e convivência.

A recentereconfiguração urbana do Recife, com seus novos prédios altos que formam uma linha de torres verticais que agridem o horizonte da cidade, o excesso de carros novos que invadem as ruas, a classe média e as novas e velhas elites que habitam esses paraísos artificiais frutos da especulação imobiliária, da gentrificação e da agressão ao patrimônio histórico e urbanístico da cidade também são satirizados pelo filme. O bom humor de ‘Brasil S/A’ não dilui seu caráter crítico e os risos surgem no espectador na mesma proporção em que sugerem o desconforto e possibilidade de reflexões desanimadoras sobre os rumos do desenvolvimentismo e da higienização cafona que estão em progresso a todo vapor no país.

Apesar dessas qualidades, o filme de Marcelo Pedroso sofre exatamente por sua ligação umbilical com o curta que o precede. Algumas cenas, como o balé de carros e máquinas, encenados como uma dança ritualística do progresso ao som de música instrumental em alto volume são idênticas nos dois filmes, mas funcionavam melhor em ‘Em Trânsito’, tanto pela condensação dramática potencializadora do formato curta-metragem como pelo ineditismo desses procedimentos estéticos. O uso de uma câmera funcional, que trabalha no papel de maximizar o sentido direto do sarcasmo dos planos em meio às cores fortes que caracterizam o imaginário do visual publicitário ultra colorido de progresso do “Brasil potência” também são repetições literais de ‘Em Trânsito’. Mas que cabem bem em ‘Brasil S/A’ pela força simbólica que cada sequência carrega.

‘Brasil S/A’ tem seus altos e baixos, seus excessos brigam com seus acertos, mas ao mesmo tempo fazem do filme um bom exemplo de um cinema de risco, um cinema que busca repaginar conceitos e se atira sem medo em sua expressão, em sua necessidade de existir e se fazer ver, de se pensar o país na sintaxe do cinema. Tudo isso para o bem e para o mal. A repetição gera um impasse na obra do talentoso Marcelo Pedroso e nos faz pensar para onde ele pretende levar sua obra a partir de agora. Mas essa expectativa é muito otimista, já que estamos diante de um diretor original, talentoso e cuja inquietude promete.

O cinema de Carlos Reichenbach nos Anos 80*

Por Fernando Oriente

Carlos Reichenbach é um dos mais emblemáticos cineastas-cinéfilos que já existiram. Sua paixão pelo cinema foi elemento fundador da sua obra. Carlão amava os filmes, todos os filmes. Não tinha preconceitos nem pré-julgava nenhum gênero, adorava o cinema em sua totalidade. Apreciava desde as obras mais sofisticadas intelectualmente, mais radicais e rigorosas em questões de forma e conteúdo até os longas mais obscuros, os deliciosos filmes vagabundos, esses que são cheios de explosões de criatividade, talento, capacidade de superação e improviso por parte de cineastas que contavam com orçamentos baixíssimos e tinham que trabalhar dentro dos códigos do cinema de horror barato, dos excessos de sangue, sexo, nudez e violência. Foi essa visão aberta do cinema, aliada a um talento nato, que fez de Reichenbach um dos mais viscerais e talentosos artistas e pensadores que o cinema já teve. Carlão via os filmes, a arte e o mundo ao seu redor com os “olhos livres”, expressão que adorava usar com frequência.

Carlos ReichenbachComo diretor, fotógrafo, roteirista, músico, escritor, professor ou crítico, é a partir dos anos 80 que ele passa a viver do cinema e da arte e construir uma carreira ímpar. Momento no qual passa a realizar grandes filmes, sempre com sua marca característica de encenador primoroso e visceral, que fundia gêneros, trabalhava sob condições precárias e delas tirava a capacidade para, dentro das limitações impostas, compor obras de uma complexidade extrema, que traduziam o mundo a sua volta, com suas questões existenciais, políticas e estéticas. Realizava tudo isso de maneira direta, orgânica, com sinceridade e paixão únicas. Subvertia convenções e fazia obras que dialogavam diretamente com o público, compostas com uma mise-en-scène primorosa que mantinha os dramas e os discursos na epiderme de seus filmes, na cara do espectador, dentro de um frontalidade desconcertante que continha, ao mesmo tempo, uma complexa rede camadas, texturas e subtextos que permitiam leituras das mais variadas.

Nos anos 80, Carlos Reichenbach dirigiu três obras-primas: ‘O Império do Desejo’ (1980), ‘Amor, Palavra Prostituta’ (1981) e ‘Filme Demência’ (1985), além do poderoso ‘Extremos do Prazer’ (1983) e do belíssimo ‘Anjos do Arrabalde’ (1987). E é partir de seus filmes nos anos 80 (mais especificamente desde seu primeiro grande trabalho, ‘Lilian M – Relatório Confidencial’, feito em 1975) que Reichenbach passa a consolidar e aprimorar seu estilo. Um diretor que, devido ao imenso repertório intelectual, a sua formação literária e seu amor aos livros e ao profundo conhecimento cinéfilo que possuía, utilizou de maneira criativa e particular uma infinidade de referências e de influências para construir um cinema particularíssimo, repleto de marcas pessoais, mas que não se mantinha preso a um ou outro estilo. Fez de melodramas a ensaios existencialistas, de dramas políticos a crônicas do cotidiano, da vida urbana, do universo proletário. Carlão fundia em um mesmo filme o sexo, o humor corrosivo, elementos fantásticos, as dores da existência, as crises pós-existencialistas de intelectuais confrontados com o fracasso ideológico, o dia a dia banal de trabalhadores, de tipos que viviam à margem da sociedade, de poetas melancólicos sem espaço para se expressarem e de jovens rebeldes sem rumo que vagavam pelas bordas de um país subdesenvolvido que vivia os últimos anos de uma ditadura e ainda tateava num processo capenga de construção identitária e na tentativa de consolidação de uma democracia.

Reichenbach construía seus filmes com uma notável habilidade na composição dos quadros, em que cada sequência era pensada e decupada de maneira funcional e que permitia que a narrativa e os dramas fossem consolidados dentro de cada cena. A evolução narrativa era amplificada pelo vigor com que Carlão compunha seus planos isoladamente, na capacidade de imprimir significados e abrir arestas evolutivas dentro de cada composição de quadro. Ele colocava personagens e dramas dispostos em cena para que a intensidade dramática e as modulações de seu discurso ficassem sempre em destaque. Reichenbach tinha uma noção das potências da imagem que poucos diretores alcançaram. Tinha um domínio completo de seus personagens, de como criava as interrelações entre seus tipos e de como desenvolvia as tensões e modulações dramáticas dentro da construção narrativa.

A câmera do diretor trabalhava em função constante das sensações que ele queria provocar com cada take e conduziam o olhar do espectador exatamente para onde desejava. Desde os posicionamentos e enquadramentos até os movimentos de câmera e dos personagens dentro do quadro, bem como toda a relação com o fora de campo, e os cortes eram compostos com o esmero de um artesão. Porque sim, Carlão era um artesão da imagem, bem como um encenador que dominava por completo toda a matéria cinematográfica, toda a gramática do cinema. Por mais sofisticado que fosse o trabalho de Reichenbach como diretor, ele nunca deixou que o preciosismo exibicionista ou o virtuosismo oco interferissem na construção de seus filmes, sempre repletos de uma auto-ironia que ampliava a força do seu cinema. Seus longas dialogavam diretamente com o público, todo e qualquer recurso que ele usava era para potencializar o poder dos dramas que encenava e dos discursos que compunha por meio das múltiplas camadas de suas obras.

O cinema de Reichenbach era composto por uma relação passional com seus personagens, por mais variados que fossem seus tipos, eles eram tratados pelo diretor com uma proximidade carinhosa, ele compreendia seus personagens, partilhava de seus dramas e, em momento algum, desprezava suas ações, por mais que essas fossem condenáveis. O amor que Carlão tinha por seus personagens faziam deles tipos bem mais interessantes, complexos dentro de seus potenciais e limitações demasiadamente humanas. Carlos Reichenbach era um cineasta dos valores humanos, das dores e alegrias, um apaixonado pela mulher e pelo homem em suas qualidades e defeitos.

Os longas de Carlos Reichenbach nos anos 80

A década de 80 pode ser considerada a mais fértil na carreira de Carlos Reichenbach, o período em que ele realizou suas melhores obras e desenvolveu um projeto de cinema pessoal a partir da relação dos filmes entre si e em analogia ao momento sócio-político e cultural em que o Brasil estava mergulhado. Não que os longas realizados antes dessa época, como ‘Lilian M’, e obras que Carlão produziu depois como a obra-prima ‘Alma Corsária’ (1992) e sue último filme, ‘Falsa Loura’ (2007), entre outros, não estejam à altura da grandeza da sua produção na década de 80.

O cinema de Carlão, por mais sofisticada que sejam as possibilidades de leituras, por mais complexas que sejam os conteúdos de suas obras e por mais rigorosa e perfeccionista que seja sua encenação, sempre foi um cinema de alcance popular e recheado por um discurso humano e universal.

Império do Desejo

‘Império do Desejo’

Reichenbach começa os anos 80 com a realização de ‘Império do Desejo’, um de seus filmes mais sofisticados e complexos. Em meio a muito sexo, nudez e sequências cômicas, Carlão insere um discurso existencial e político que fazem desse seu filme mais godardiano, com direito a sequências que remetem diretamente aos filmes mais políticos e provocativos de Godard. Aqui estamos em meio à alegoria e aos simbolismos. Carlão reúne uma série de personagens inusitados em uma casa de praia isolada e a partir de encontros e desencontros cria situações em que discute ideologia, existencialismo, novamente a política e chega a propor uma utopia como forma de vida capaz de legitimar os personagens como indivíduos autônomos e livres. Utopia que sempre foi uma forças motoras de sua arte e de sua personalidade.

‘Império do Desejo’ é um filme-manifesto, em que Carlão usa de uma liberdade de encenação desconcertante, que beira a anarquia, para amarrar tudo em um discurso dialético no qual questões filosóficas se confrontam com tópicos como o feminismo, a poesia, as doutrinas de esquerda, a especulação imobiliária, a sordidez do capitalismo e a negação do estilo de vida ordinário que a sociedade tanto valoriza. O filme usa personagens criados em cima de clichês para desconstruí-los por meio da evolução narrativa e da encenação visceral com que o diretor reorganiza e subverte os dramas.

O filme pode ser lido como a possibilidadedo escape por meio da utopia, da fuga física e emocional do mundo que aprisionava os personagens. Não existe ingenuidade nesse mundo idílico que Carlão constrói no filme, o que temos é a presença das liberdades de mise-en-scène como probabilidade de reinvenção e negação do mundo. São as possibilidades infinitas do cinema, que nas mãos de um cineasta com o talento de Carlão, são capazes de reinventar a realidade ao mesmo tempo em que critica de forma assertiva tudo aquilo que o diretor despreza na vida real.

Na sequência, Carlão realiza um filme seminal: ‘Amor, Palavra Prostituta’. Esse longa, feito graças ao fato do diretor ter ganhado negativos em 35 mm que estavam vencidos e com baixíssimo orçamento, talvez seja a mais pura expressão do conceito do cinema de Reichenbach, da sua capacidade de tirar de condições extremamente precárias o material para criar obras poderosas e realizar filmes excelentes. A precariedade como elemento e fator criativo.

‘Amor, Palavra Prostituta’ conta com quatro personagens centrais e bruscas reviravoltas narrativas e dramáticas, aborda temas caros ao diretor como as complexas e paradoxais relações entre homem e mulher, a misoginia, o desejo reprimido, o sexo como autoafirmação identitária, a carência emocional, a frustração existencial provocada pelas derrotas ideológicas que tanto motivaram um grande número de brasileiros ao longo dos anos 60 e 70 (na resistência ao regime militar e nos sonhos de um país livre e progressista a ser construído), os efeitos nefastos da ditadura e do capitalismo capenga de uma nação submetida há anos a um regime militar de direita voltado exclusivamente aos interesses das elites e do capital estrangeiro, a questão da anulação e do massacre da mulher – sempre relegada a segundo plano, objetificada e explorada dentro de um machismo patológico que Carlão via como um dos fundamentos da sociedade brasileira – e na constante incerteza em relação ao futuro que guiava a vida de todos no Brasil.

Amor, Palavra Prostituta

‘Amor, Palavra Prostituta

Tudo isso aliado a um tecido político onipresente, como se Reichenbach fizesse de cada sequência, dos dramas e de suas consequências, um estudo sobre o papel político do homem comum no Brasil na entrada da década. A política para Carlão está nas ações e nas inações, na incapacidade de ser de seus tipos, na vida alienada de uns e na dor resignada de outros, na exploração diária que os personagens sofrem bem como nos momentos de ternura que servem como abrigo a um meio opressivo em que o sujeito político não tem voz nem chances de se autodeterminar. Carlão sabe que os reflexos da política na vida dos cidadãos estão presentes em suas impossibilidades, na alienação de projetos de sucesso banais, na maneira como as pessoas usam, manipulam e descartam os outros. Ela está presente nos gestos, no sexo desesperado, no desejo incapaz de ser contido, na frustração e na aceitação resignada da derrota, na banalidade da ganância imediatista e na mediocridade de um cotidiano de tédio, bem como nas breves alegrias que não passam de instantes fugazes de escape.

Em ‘Amor, Palavra Prostituta’, Carlão faz um cinema típico da Boca do Lixo, mas com alto teor de complexidade e uma gama de camadas de leitura e interpretação. Trabalha dentro das limitações características da Boca, insere alta carga erótica à trama e abusa, com muito talento e em comunhão perfeita com o discurso que constrói ao longo do filme, da nudez dos corpos e da visceralidade das cenas de sexo. Usa a cidade de São Paulo de maneira orgânica, abusa da arquitetura caótica, da sujeira e do movimento ininterrupto e alucinado de uma cidade que foge de qualquer tentativa de controle e explicação por parte de seus habitantes. São Paulo é o reflexo do caos interno e das incertezas dos personagens.

Carlão dizia que teve que fazer de ‘Amor, Palavra Prostituta’ um melodrama por causa dos negativos vencidos, que puxavam a paleta de cores para o verde, elemento que exigia que as imagens seguissem o tom melodramático das tonalidades da película. Mas o melodrama é terreno fértil para Reichenbach, é um gênero em que ele pode potencializar as cargas dramáticas de seu discurso existencial e de seus comentários políticos céticos, bem como a força e a veemência de sua encenação. Além de usar referências de um de seus cineastas favoritos, o italiano Valerio Zurlini.

Em ‘Amor, Palavra Prostituta’, Carlão explora a intensidade das emoções dos personagens, encena de maneira direta as explosões de dor, desejo e carência dos dramas. É um dos filmes em que Reichenbach mais se aproxima da frontalidade da mise-en-scène de Samuel Fuller. Como na crueza presente na sequência dos efeitos traumáticos de um aborto mal feito ou na maneira como um casal em crise se agride com uma crueldade extrema, além da forma como filma os corpos nus e as cenas de sexo sem nenhum pudor e da forma mais direta e crua possível (aliás, tratar o sexo como elemento vital da vida e força motora dos indivíduos é uma das mais marcantes características do cinema de Reichenbach, que filmava o sexo da maneira mais objetiva e explícita possível). Como dizia Fuller, o cinema é um campo de batalha e é exatamente isso que Carlos Reichenbach faz dessa obra-prima que é ‘Amor, Palavra Prostituta’. Cinema visceral, pulsante e de uma brutalidade dramática desconcertante. Ao contrário de ‘Império do Desejo’, onde havia a chance do escape por meio da utopia tornada real pelas possibilidades ilimitadas do cinema, aqui os personagens não têm saída, são massacrados pela sociedade que os aprisiona e anula suas individualidades.

Extremos do PrazerSeu trabalho seguinte, ‘Extremos do Prazer’, novamente se utiliza das exigências de produção do cinema da Boca (o sexo e a nudez) e, mais uma vez, Carlão parte desses elementos para continuar a desenvolver seu discurso cinematográfico, sua encenação visceral e abordar os temas que o inquietavam e estimulavam e faz mais um filme extremamente pessoal em que discute e explora tudo o que deseja, mesmo respeitando os códigos impostos à produção do filme. Temos novamente personagens isolados em uma casa de campo. Tipos traumatizados ou alienados, de diferentes posições ideológicas que entram em conflito para que Reichenbach possa tecer seus comentários político-existenciais e por meio do choque emocional e físico dos personagens, desconstruir seus tipos e expor de maneira direta as contradições humanas, as incertezas de um país incapaz de encontrar um rumo e o vazio existencial do homem contemporâneo.

‘Extremos do Prazer’ segue a linha da fuga da cidade grande como Carlão tinha feito em ‘Império do Desejo’, mas aqui a utopia e as possibilidades de escape e autodeterminação são, como em ‘Amor, Palavra Prostituta’, massacradas pela realidade crua de um mundo que não dá chance para o ser humano se livrar de sua pequenez diante a máquina trituradora da sociedade. Novamente temos elementos de melodrama que surgem em primeiro plano e o ceticismo ácido de Reichenbach volta a ser posto no centro dos dramas e nas conclusões narrativas. Uma obra extremamente competente dentro daquilo que o diretor deseja construir. É um filme que dialoga com aquilo que Carlão havia feito antes, de maneira mais seca, mas nunca desinteressante ou sem o vigor típico da obra do cineasta.

Em ‘Extremos do Prazer’ temos uma das mais extraordinárias e poderosas digressões já realizadas por Reichenbach. Uma sequência em que a câmera, em constantes travellings, acompanha os personagens sendo dublados pelo próprio Carlão, que assume o ligar de fala pela boca dos personagens e com sua própria voz discute e problematiza não só o filme como o cinema.

Em seu longa seguinte, em 1985, Reichenbach se liberta de certas exigências que os mecanismos de produção da Boca do Lixo impunham e faz talvez aquele que seja seu filme mais pessoal e existencialista até o momento: ‘Filme Demência’, mais uma obra-prima dentro de sua carreira.O longa é uma releitura do mito de Fausto, do escritor alemão Johann Goethe. Além de ser uma oportunidade para Carlão inserir sua paixão literária dentro de seu cinema, o filme é uma perfeita alegoria para os tormentos do homem dos anos 80, bem como de qualquer época. Reichenbachfaz de seu Fausto, um empresário falido recém-saído de um casamento fracassado, o arquétipo do homem contemporâneo que desmorona quando as falácias do capitalismo desabam e a precariedade da existência e a pequenez humana ficam expostas como cicatrizes existenciais abertas.

O Fausto de Carlão perambula sem rumo pela noite paulistana, entre ruas desertas do centro da cidade, botecos sujos, casas de strip-tease e cinemas fuleiros. Em meio a sua jornada por um tecido urbano decadente Fausto encontra Mefisto, que vem cobrar suas dívidas, e confirmar ao personagem o inevitável fato de sua queda, de sua condenação e da impossibilidade de redenção. Novamente Reichenbach faz um uso primoroso da cidade de São Paulo como personagem do filme. Carlão registra as ruas com toda sua sujeira, suas luzes difusas, sua desordem orgânica.

Filme Dêmencia

Filme Demência

A jornada de Fausto continua ao longo de ‘Filme Demência’. Ele encontra personagens do passado e por meio de diálogos, Reichenbach vai introduzindo o discurso existencial, político e social que a cada filme marcam mais seu trabalho. ‘Filme Demência’ mantém o mesmo vigor de encenação dos trabalhos anteriores do diretor, só que aqui ele se permite flertar com gêneros como o fantástico, o terror psicológico e a fábula metafórica. Cheio de simbolismos, composto de planos com maior independência narrativa em relação ao todo do filme, as sequências de ‘Filme Demência’ são significantes isolados que vão enriquecendo o discurso do filme em direção a uma série de significados possíveis e interpretações que Reichenbach faz questão de deixar em aberto.

‘Filme Demência’ é um longa sombrio, repleto de nuances e com uma maior contenção na explosão de sentimentos e sensações que vinham compondo o cinema do diretor até então. É o filme em que Carlão usa menos a frontalidade na mise-en-scène; aqui ele prefere a construção de climas e sugerir mais do que mostrar. É uma variação de estilo em sua obra, que por mais que se distancie esteticamente de seus trabalhos anteriores, serve como uma evolução natural dentro do desenrolar coerente e natural de seu cinema como uma obra em constante diálogo consigo mesma.

Em 1987, Reichenbach realiza ‘Anjos do Arrabalde’, um filme em que a periferia de São Paulo é o centro da dramaturgia. Carlão conta a história de um grupo de professoras de uma escola pública. Diferentes entre si, todas carregam traumas e esperanças, distintas histórias de vida que são retratadas por Carlão com um humanismo tocante. Suas vidas pessoais, fora do ambiente de trabalho, fazem surgir diferentes tipos em cena para contracenarem com as protagonistas.

Carlão faz um recorte de diversos tipos humanos, de diferentes classes sociais e níveis intelectuais. O choque de classes, o preconceito e as impossibilidades de concretização dos relacionamentos, bem como os conflitos e a precariedade do trabalho em um país subdesenvolvido, movem a evolução dramática do filme e novamente Carlão usa pessoas comuns, vidas ordinárias para fazer um microcosmo das relações sociais e da construção político-social da sociedade brasileira. Esse talvez seja seu filme de maior apelo popular até a época. Mas um cinema popular que recusa soluções fáceis, respeita a inteligência do espectador e se mantém fiel as estruturas e a coerência interna da obra de Reichenbach.

Anjos do Arrabalde

Anjos do Arrabalde

Em ‘Anjos do Arrabalde’, Reichenbach volta a flertar de maneira mais explícita com elementos do melodrama, mas mostra uma grande capacidade para organicamente oscilar entre gêneros, indo do drama à comédia de costumes, da denúncia social às particularidades existenciais do universo feminino em seu íntimo. Mais uma vez Carlão se desloca em direção a outros setores e estilos do cinema para ampliar ainda mais a abrangência de sua obra, sem abandonar os elementos característicos de seu discurso. A encenação continua frontal, os dramas são expostos diretamente para o espectador e acomposição de quadros primorosa, com uma perfeita decupagem.

A obra de Carlão ultrapassou os anos 80 e entrou nas décadas seguintes mantendo sempre a mesma força. Carlos Reichenbach é um homem de cinema, um artista completo e dotado de uma sensibilidade raras vezes encontrada em qualquer canto do planeta. E os anos 80 podem ser vistos como o apogeu e a solidificação de sua carreira, de seu cinema único e de uma obra enorme e atemporal.

 

* Texto escrito originalmente para o catálogo da mostra Carlos Reichenbach – O Cinema de Autor Brasileiro, realizada na Caixa Cultural do Rio de Janeiro em 2015.

Editado e atualizado para essa publicação no Tudo Vai Bem.

‘Sinfonia da Necrópole’, de Juliana Rojas

Por Fernando Oriente

'Sinfonia da Necrópole'Em seu primeiro longa solo, Juliana Rojas mantém várias características que marcaram sua carreira como curta-metragista e que também estavam presentes em ‘Trabalhar Cansa’, o belo longa-metragem que ela assina em parceria como Marco Dutra. Mas em ‘Sinfonia da Necrópole’ vemos Juliana caminhar por novos caminhos e introduzir outros elementos em seu cinema. Embora o filme não tenha a força e a qualidade de alguns de seus curtas – principalmente o excelente ‘O Duplo’, de 2012 (um dos melhores curtas dos últimos tempos) e também fique aquém de ‘Trabalhar Cansa’, ‘Sinfonia da Necrópole’ é um bom filme, em que vemos uma autora jovem mostra talento, tentar ampliar os horizontes de seu discurso e introduzir novas concepções formais a sua obra.

Juliana sempre trabalhou dentro do registro dos gêneros cinematográficos, mais notadamente o horror e o terror psicológico. Nesse seu novo filme, o que mais chama atenção é a facilidade como a diretora encena com competência um filme de forte apelo popular, mas que não abre mão do rigor da construção e as texturas analíticas presentes na mise-en-scéne. ‘Sinfonia da Necrópole’ traz elementos carregados de comédia, conta com vários números musicais e ainda mantém o clima de suspense e terror psicológico, matéria que a cineasta domina melhor. Não que Juliana seja perfeita em toda a unidade do longa, existem momentos em que certas situações de humor não funcionam ou alguns números musicais que fazem a força da dramaturgia ser diluída.

A eficácia dessa abordagem popular escolhida por Juliana é sustenta principalmente na construção do protagonista, o aprendiz de coveiro Deodato, um típico personagem do cinema clássico: jovem, simplório, recém-chegado a uma cidade grande vindo do interior, tímido e sensível. Deodato terá, ao longo do filme, a tarefa simbólica de completar sua jornada de iniciação na vida de uma grande metrópole como São Paulo. Ele irá aprender a viver em meio ao caos urbano e sua amplidão desordenada e desumanizadora, a solidão em meio à multidão, sentirá as dificuldades de adaptação ao processo de trabalho e ao ritmo de vida e ainda experimentará o amor, ao se apaixonar por uma colega de trabalho. Um amor (praticamente) não correspondido e constituído dentro dos preceitos clássicos do romantismo, como a admiração crescente e tímida do objeto de desejo e a idealização da mulher amada.

Juliana Rojas transforma o cemitério em que Deodato trabalha e onde se passam quase todas as cenas do filme em um reflexo estetizado de São Paulo. É a metrópole que se reflete na necrópole. Esse recurso permite que várias questões urbanas urgentes sejam inseridas simbolicamente por Juliana em meio aos dramas de Deodato, como e especulação imobiliária criminosa que tomou conta de todo o país nas últimas décadas.

A cidade representada, esse simulacro da metrópole que é o cemitério, enfrenta problemas como a desocupação forçada de imóveis (túmulos), a remoção compulsória de pessoas (cadáveres) e a reorganização espacial urbana presente na verticalização dos espaços com a construção de novos túmulos dentro de pequenos prédios que substituirão os antigos jazigos.

Toda essa alegoria é tratada com muita naturalidade e leveza dentro da encenação de Juliana. A mise-en-scéne é pensada em função dos movimentos evolutivos dos tecidos dramáticos (e cômicos) do filme. Situações de humor ingênuo (muitas vezes perspicazes) são intercaladas por diversos números musicais de estilo clássico (em que os personagens dizem suas falas cantando e dançando). Breves momentos fantásticos em clima de cinema de horror, momentos românticos de sedução e devaneios de amor platônico também fazem parte do leque de gêneros que Julian costura com competência e ainda encontra espaços para tecer comentários sobre a finitude da vida e o conflito eterno entre a atração e o medo presentes na ideia da morte.

Sinfonia da Necrópole‘Sinfonia da Necrópole’ é um filme de encenação mais leve a ágil, algo que a proposta desse longa de Juliana exige. Não vemos a rigidez detalhista de encenação e decupagem presentes no trabalho anterior da diretora, ‘O Duplo’, mas Juliana Rojas é uma encenadora de mão cheia e, em meio à leveza melancólica de seu novo filme, mostra sempre ótima composição de quadro, belos enquadramentos e elegantes movimentos de câmera. No caso de ‘Sinfonia da Necrópole’, muito devido à oscilação entre os momentos fortes – as boas sequências, o uso preciso do sarcasmo, os simbolismos, as situações em que forma e discurso se potencializam – e os momentos em que o filme cai num certo descompasso em que o vigor narrativo perde força e se enfraquece, temos um filme que vale muito ser visto e apreciado, mas devido a essa irregularidade não chega a se completar num todo deixa uma sensação de que poderia ir mais longe, ousar mais e ceder menos a fusão de gêneros e evitar certas concessões de apelo simplista, bem como deixa a impressão que certos conflitos propostos na diegese poderiam ser intensificados.

Mas seu novo trabalho é apenas a mais recente confirmação do talento de Juliana Rojas. A facilidade como ela circula por gêneros diversos (e o apelo universal que esses gêneros carregam dentro de seus códigos internos), tanto em curta quanto em longa duração, fazem da diretora um nome certo para se esperar com ansiedade por seus novos projetos. Em meio a um momento de impasse da maioria do cinema contemporâneo praticado no país, Juliana é uma que não tem medo de arriscar, uma cineasta que busca soluções criativas, complexas. Em um exercício empreendido como ‘Sinfonia da Necrópole’, com seu sincero e natural apelo popular, Juliana chama atenção pelo respeito ao espectador trabalho dentro desse apelo mais comercial, mas sem nunca cair em formatos engessados ou vulgaridades.

‘Para Minha Amada Morta’, de Aly Muritiba

Por Fernando Oriente

'Para Minha Amada Morta'Tudo nesse primeiro longa de ficção de Aly Muritiba gira em torno da obsessão. Um filme narrativo, que trabalha a evolução dos acontecimentos com competência e dentro do que a evolução dessa narrativa proporciona em questões de tensão, incertezas e suspense para o espectador. Nunca sabemos quais serão as ações que veremos, Muritiba sempre estende o desconforto por criar constantemente possibilidades dramáticas prontas para se eclodirem na tela, mas que na maioria das vezes são adiadas, fazendo o enredo continuar cada vez mais carregado pelas não-ações. A história toma rumos inesperados, em que a promessa de explosões de violência é sempre adiada, mas intensificadas a cada instante no decorrer do filme. Um filme que trabalha dentro de códigos do cinema de gênero, calcado numa encenação prodigiosa. A composição dos planos é sempre funcional e poderosa, a evolução lenta da angústia é trabalhada detalhadamente por meio da construção dos planos longos, dos ótimos enquadramentos, da decupagem e da montagem final. Um filme de espera, que se adensa no aspecto psicológico das tensões e mantém um constante clima dedesconforto e expectativa.

O filme é construído todo a partir do protagonista Fernando e são suas obsessões, sensações e ações que irão conduzir tanto a narrativa quanto as modulações dramáticas. No início do filme o vemos em melancólica situação de luto pela recente morte de sua mulher, cuidando de seu filho único e trabalhando como fotógrafo da polícia. Fernando é obcecado pela mulher morta, faz rituais em sua homenagem e que tentam reaproxima-lo dela mesmo após a morte. Dorme ao lado de suas roupas, as pendura cuidadosamente em cabides quando levanta da cama, coloca seus sapatos em diferentes cômodos da casa como se para materializar sua presença por meio de objetos, preencher o vazio por meio desses pequenos e repetitivos gestos. Ele passa a ferro os vestidos da mulher, guarda cuidadosamente suas roupas no armário, mantém inúmeras fotos dela pela casa. Ela é uma ausência que se torna, por meio da obsessão de Fernando numa presença quase material dentro do filme. Certo dia ele encontra uma caixa com fitas VHS no escritório da mulher morta. Passa a ver os vídeos sem parar. Assisti-a dançando numa apresentação de escola quando era criança e em diversas outras situações e momentos de sua vida que foram registrados em vídeos caseiros. No meio das fitas, Fernando encontra um vídeo em que sua falecida mulher aparece fazendo sexo com um amante, passeando com ele, mostrando os dois na rua e nos lugares em que visitam. O melancólico homem em luto entra em surto, desespera-se, mas Muritiba consegue construir essa passagem dramática com muita competência, evitando arroubos sentimentalistas e explosões de dramaticidade cênicas. O personagem de Fernando é, e continua a ser durante todo o longa, fechado, preso dentro de um turbilhão de sentimentos intensos que interioriza de maneira quase patológica, esconde ao máximo suas emoções e seus sentimentos.

As imagens em VHS, com sua captação ruim e texturas típicas do vídeo são usadas para dar materialidade à memória e ao passado dentro do filme. Após o golpe da descoberta da traição Fernando será movido por outra obsessão: achar o amante de sua mulher e vingar-se dele. Outro grande ponto alto em ‘Minha Amada Morta’ surge do fato de não só ele encontrar o amante, mas se aproximar dele ao ponto de alugar a casa dos fundos onde o homem mora com sua mulher e duas filhas e passar a conviver com eles. Muritiba cria uma relação de extrema tensão entre os dois personagens, Fernando e Salvador (o amante da mulher morta), bem como dele com todos os membros a família. Cada nova situação, cada cena que se segue vemos Fernando agindo friamente em seu plano de vingança, que em momento algum sabemos qual será e como se realizará. Surgem vários momentos em que a tensão criada na cena sugere que o marido traído pode matar Salvador, tudo em cena vira uma arma em potencial, cada vez que vemos os dois sozinhos nos parece um momento perfeito para a consumação violenta da vingança, mas ela nunca chega e Fernando segue obsessivamente em suas ações. Aproxima-se da filha adolescente de Salvador, tenta seduzi-la e tornar-se seu confidente, passa a frequentar a igreja evangélica da família e vai ao ponto de mostrar à esposa de Salvador o vídeo em que ele a mulher de Fernando fazem sexo, além de também tentar seduzi-la. Tudo isso funciona como elementos potencializadores das tensões e como picos dramáticos e impulsionam na construção de um suspense psicológico muito bem conduzido e orquestrado pela encenação de Muritiba.

A relação de Fernando e Salvador é sempre movida pela ameaça, pelo desconforto e pela maneira agressiva e misteriosa com que Fernando se posiciona e interage com Salvador. A relação do protagonista com a esposa e a filha adolescente do amante de sua mulher é de notável carga erótica. Aly Muritiba carrega na força e na significação dos gestos, dos olhares, dos diálogos (muitas vezes interrompidos bruscamente por Fernando), no tom de voz com que os personagens falam. A composição dos quadros, o uso dos primeiros planos e das relações que se estabelecem com os planos de fundo (sempre seguindo funcionalmente para compor em imagens as sensações do protagonista), a construção dos espaços, tudo ajuda a fazer de ‘Minha Amada Morta’ um belo filme de climas, onde a tensão e as incertezas contaminam cada sequência e criam fortes expectativas ao que está por vir.

Para Minha Amada Morta‘Minha Amada Morta’, construído em cima da meticulosidade com que Fernando conduz suas obsessões caminha como um filme próximo ao cinema de crueldade, aquele que não busca nenhuma forma de conciliação. Embora Muritiba não faça de seu filme um claro exercício do cinema da crueldade – preenchendo a narrativa com arestas que indicam outras possibilidades além de uma vingança clássica -, o desfecho, com a presença de um leve e distante processo reconciliatório pode desagradar aqueles que esperavam a materialização do conflito, a consumação da violência que esta embutida em todo o longa. Essa sutil conciliação sugerida no desfecho não necessariamente significa que para Fernando ele não tenha completado seu processo de vingança (não existe a certeza, mas o gesto final de Fernando em relação a Salvador pode muito bem ser visto como a conclusão ou interrupção de seu projeto de retaliação e uma forma de suspender sua obsessiva busca por reparação). Nunca nenhumas de suas intenções ficam claras, o personagem é sempre composto de texturas existenciais que fogem do lugar comum e jamais somos capazes de saber aquilo que ele realmente deseja. Esse desfecho, com a não eclosão do conflito direto está longe de ser um problema, tem sua intensidade dramática e significativa de acordo com as expectativas e processos de recepção de cada espectador.

O que é claro no filme – e também um de seus pontos altos – é como Fernando tenta reconstituir sua vida antes da morte da mulher, num desejo obsessivo primeiro em mantê-la presente com seus rituais com as roupas, sapatos e fotos da morta, depois quando o processo da obsessão se torna a aproximação e a provável vingança do amante. Todas as suas ações, seus estados emocionais são dedicados a por em prática atos, processos meticulosamente realizados dentro de uma lógica quase paranoica para trazer de volta não só sua mulher morta, mas como construir uma realidade diferente, criar novos motivos para viver e ter em o que acreditar. São por meios de suas obsessões que ele procura preencher um vazio e uma angústia intransponíveis. Aly Muritiba realiza um filme direto, composto com sofisticação e densidade dramáticas, estruturais e narrativas, trabalha dentro dos elementos do thriller psicológico, do filme de vingança, ou seja, dentro do cinema de gênero, mas faz isso com honestidade e coerência e realiza um filme raro no Brasil, por estar inserido dentro desses elementos e trabalhá-los de maneira criativa, priorizando aquilo que deseja tanto na forma quanto no discurso. Evita choques e surpresas fáceis para manipular o espectador e dá a quem assisti ao longa todas as liberdades de como absorver, interpretar e assimilar seu material dramático e narrativo. Um filme poderoso, em que suas qualidades superam eventuais fraquezas.

‘Ela Volta na Quinta’, de André Novais

Por Fernando Oriente

'Ela Volta na Quinta'Primeiro longa-metragem de André Novais, ‘Ela Volta na Quinta’ é um filme calcado no cotidiano e do que de mais complexo pode existir no interior de sua aparente simplicidade rotineira. Um longa concebido a partir do registro naturalista do dia a dia de uma família e suas ações dentro do que de mais simples, corriqueiro e banal suas rotinas carregam. É a vida que toma conta de cada fotograma do filme, dessa vida nasce a força dos personagens, as suas essências, dúvidas, imperfeições, defeitos, desejos, frustrações e qualidades. Tudo vem à tona, penetram nas camadas dramáticas do filme e brotam da maneira mais singela possível por meio daquilo que fazem sem se dar conta, essas ações mecânicas, esses gestos infinitos que cada pessoa repete incontáveis vezes ao longo de suas vidas e não dá a menor importância significativa a eles. O trabalho, o cuidar da casa, o andar pelas ruas, as conversas, as refeições, o ir dormir, o jogar bola com amigos, ver televisão ou simplesmente não fazer nada. Impressiona como André Novais constrói um filme tão rico, tão cheio de texturas a partir de um registro direto da trivialidade de existir, da repetição dos gestos, do estar e se deslocar do mundo de pessoas comuns. É como se ele extraísse o que de mais autêntico e paradoxal existe em cada personagem pelo simples fato de registrá-los, de filmá-los e de se aproximar e prestar atenção naquilo que de único e identitário cada um possui; algo que só é possível se esse registro for o mais sincero possível, se o cineasta se permitir abrir-se ao outro, se comprometer e acreditar naquilo que filma. Sem arroubos dramáticos, sem conflitos forçados, ‘Ela Volta Na Quinta’ é um tocante retrato de uma família e seu cotidiano, suas dores e alegrias, suas frustrações e esperanças. É um filme sobre a riqueza e a complexidade do estar no mundo, sobre os paradoxos dessa existência e de como a relação com o outro, com aqueles mais próximos de nós, no caso a família, é algo que passa longe da razão. Relações surgem e são moldadas nas marcas do tempo, são construídas e consolidadas, solidificadas e enfraquecidas pela passagem do tempo e dentro das rotinas de cada um, dentro do constante e inexorável correr do tempo.

‘Ela Volta na Quinta’ usa esse registro direto do cotidiano e vai se deslocando em direção a como o tempo presente descortina os desgastes do passado, a erosão do que foi vivido, ao mesmo tempo em que projeta medos e incertezas sobre o futuro. Desenvolvido com uma encenação precisa em cada detalhe e trabalhada dentro de uma construção que busca reforçar a força significante da naturalidade com que as ações no interior das cenas são compostas, o longa caminha para um discurso sobre a perda, os desgastes das relações, os processos que levam às essas perdas, e chega a um desfecho em que os personagens se encontram diante da vida que resta a cada um, ao mesmo tempo em que são postos frente aos dilemas de como levar essa vida em meio às dores e as cicatrizes das perdas e desilusões. Essa complexa estrutura é solidificada na construção dramática de André Novais, que tem na sensibilidade e na frontalidade seus fios condutores.

No filme, Novais cria uma ficção sobre um casal que enfrenta uma crise no relacionamento, desgastado após 38 anos de vida em comum e com a doença da mãe e uma relação extraconjugal do pai como elementos agravantes. Isso se reflete na forma com a situação afeta toda a família, os dois filhos do casal e suas namoradas. Novais utiliza membros de sua própria família (seu pai, sua mãe, irmão, cunhada e namorada, além dele mesmo) como atores de uma história inventada, o que cria um dispositivo que permite uma maior integração entre o elenco e seu envolvimento com os dramas encenados. Não é mero capricho de Novais, e sim uma escolha que regula o trabalho no set e aprofunda a potência da encenação exatamente por utilizar pessoas que já carregam uma história de vida e intensas relações em comum. Isso faz com que diretor e elenco projetem na ficção um alto teor de intertextualidade, veracidade e intimidade que já trazem incrustadas em suas personalidades, e assim legitimam a ternura, os conflitos e os afetos encenados por meio da própria afetuosidade que já existe entre eles mesmos. E é bom frisar que todo o elenco está ótimo dentro de seus papéis.

O filme é tão em tico em possibilidades de interpretação, na quantidade de situações e em como cada personagem é construído com complexidade, que é impossível escrever nesse texto sobre tudo o que ‘Ela Volta na Quinta’ traz. Poderíamos escrever um texto só sobre os filhos, André e seu irmão, suas vidas, suas relações, as tensões, esperanças e dificuldades em que se encontram. Mas essa crítica segue uma das muitas leituras possíveis do filme e tenta dialogar com ele, analisá-lo e interpretá-lo sob alguns poucos de seus muitos vieses.

‘Ela Volta na Quinta’ é construído em planos longos – que potencializam ao máximo aquilo que é registrado, cada ação, gesto ou expressão que vemos na tela -, a câmera quase sempre estática, algumas poucas panorâmicas, closes e enquadramentos que respeitam o tempo das ações e das modulações dramáticas dentro do quadro. Um quadro que é trabalhado para valorizar a presença dos tipos em cena. Novais evita posicionar seus personagens apenas no centro dos planos (embora use muito bem esse recurso durante todo o filme), os coloca nas laterais e bordas do quadro, em plano de fundo, os filma de lado ou de costas ou mesmo enfatiza suas presenças e falas no fora de campo, os faz entrar e sair de cena e valoriza muito os diálogos e a força do que dito por raramente usar uma montagem em campo e contra-campo ou filmar as conversas de frente (recurso que força o espectador a escutar com mais atenção o que é dito). Sua câmera é como um personagem, que registra de diferentes ângulos aquilo que vê, capta a naturalidade das presenças, dos espaços, dos deslocamentos.

Ela Volta na QuintaAndré Novais compõe uma mise-en-scène que prioriza a densidade por meio de uma aproximação total entre o diretor, seus personagens e o meio em que estão inseridos. As relações entre eles, com todo o peso que o passado e a vida em comum lhes deixaram, é matéria viva da evolução narrativa, conduzida sempre para retirar o máximo de significação dos diálogos, gestos e muitos silêncios que existem entre os personagens. A ternura, o mal estar, o amor ou a reprovação que os personagens sentem um pelo outro surgem desse registro próximo, sincero e terno que o diretor extrai das situações por meio dos dispositivos de encenação e decupagem. Todo um universo de sentimentos, expectativas, frustrações e tensões nas inter-relações vêm à tona, tomam conta da superfície dramática por meio do desse registro minucioso do cotidiano. A força disso fica clara em cenas primorosas como na conversa do personagem de André com sua mãe – ele confere sua pressão, ela se deita na cama o ouvindo contar sobre sua viagem e participação em um festival de cinema e começa a fazer um paralelo entre a realidade do filho, que busca se consolidar como diretor de cinema, seguir fazendo aquilo que gosta e acredita com as lembranças que tem de seu pai, que ela diz ser muito parecido com André, por sempre ter sido fiel em se dedicar a fazer aquilo que acreditava e que gostava (cena que é um longo plano sequência com mãe e filho sentados na cama e evolui até a câmera fechar em close no rosto da mãe deitada enquanto ela continua a falar e ouvir seu filho, já fora de quadro) – ou na já clássica cena em que os pais, com o casamento em crise, em meio às mágoas e ressentimentos que carregam em relação um ao outro, dançam no meio da sala como jovens enamorados enquanto escutam uma música que ela quer ouvir e, com ajuda do marido encontra a canção na internet, e os dois dançam em meio à música que saí do laptop ligado sobre a mesa de jantar.

Nessa dança, que a mãe demora em aceitar, vemos aflorar por meio de um registro direto em um plano estático e com a câmera distante dos personagens todo um caleidoscópio de emoções conflituosas que o casal carrega dentro de si. Dançando meio sem jeito, num misto de tentativa de se (re)aproximarem um do outro, de reviver um amor que já foi intenso e que foi sendo corroído pelo tempo e um mal estar por saberem da real situação em que sua relação se encontra (o que faz com que seus gestos sejam meio descompassados e a atração e retração de seus corpos durante a dança seja constante), André Novais cria uma profunda, melancólica e extremamente significativa representação dos efeitos do tempo numa relação amorosa. Existe amor, existe ternura, existe carinho, mas a idéia, a utopia do amor para sempre nunca resiste às marcas do tempo, aos imprevistos da vida e ao desgaste do convívio. “O amor não acaba, ele vai embora” essa frase presente em mais de um filme de Godard talvez seja a melhor definição para o que vemos na tela. O amor idealizado como puro e eterno não existe. Para viver o amor o ser humano precisa constantemente recriar o objeto amado, buscar ressignificações para o que seja amar o outro dentro dos fluxos do tempo, fazer concessões, se deixar anular em muitas de suas convicções, controlar e realocar o desejo e se deslocar e deixar ser deslocado para outras formas de sentimento, para diferentes maneiras de se manterem próximos e conservar viva uma relação. Passar por esse processo, enfrentar essas situações para manter o outro próximo ou investir nos rearranjos dos sentimentos e nas formas de se colocar no mundo e perante o outro não é fácil, muitos não querem, não acham que os sacrifícios valem à pena, desistem ou simplesmente não conseguem.

Lacan dizia que tanto o amor como a verdade têm uma estrutura de ficção. Quando se ama, um outro é inventado. Continua- se a reinventar constantemente esse outro quando o amor se estende no tempo e sofre seus naturais desgastes. Essa talvez seja a única forma de manter uma relação amorosa duradoura. A cena da dança, bem como toda a relação do casal no filme, carrega todas essas possibilidades de leitura, mas em nenhum momento Novais introduz elementos que quebrem a simplicidade e o registro seco (mas extremamente terno) que faz das ações. Não existem diálogos filosóficos, discussões psicanalíticas. Toda essa riqueza de textura interpretativa surge do registro direto e sensorial que o diretor retira da aparente simplicidade do cotidiano de seus personagens, recriado na sinceridade e singeleza da encenação. Essa tensão de um relacionamento desgastado no tempo em que vive o casal dos pais, se projeta em seus filhos e nas suas próprias relações com suas namoradas. Eles estão no início do amor, fazem planos para viver juntos com as mulheres que amam e construir suas famílias, mas o outro lado desse amor jovem e cheio de esperanças (a situação da relação de seus pais e como eles absorvem a dor dessa relação corroída) surge como uma ameaça, uma possibilidade que eles podem vir a encontrar em suas vidas de casal em um futuro não muito distante.

'Ela Volta na Quinta', de Andre NovaisO cinema de André Novais, principalmente nesse ‘Ela Volta na Quinta’, tem uma aproximação com seus personagens, seus sentimentos e seus espaços tão orgânica, que seus filmes atingem momentos mágicos, no sentido em que a simplicidade singela e frontal daquela realidade recriada torna-se tão cativante e honesta que o espectador sente-se em uma espécie de contato com o sublime do caráter mundano da existência. Do esplendor que existe no simples estar no mundo, com tudo bom e de ruim que isso traz. É um cinema que é feito de dentro de sua matéria, da cumplicidade total entre o realizador, seus tipos e a forma com que se projetam no centro de um universo onde a sinceridade e a entrega mútua se unem para formar um tecido dramático original e complexo.

 ‘Ela Volta na Quinta’ confirma plenamente o talento que o diretor havia mostrado em seus curtas ‘Fantasmas’, Domingo’ e ‘Pouco Mais de Um Mês’, bem como em seu curta-metragem mais recente, ‘Quintal’, de 2016. ‘Ela Volta na Quinta’, ao lado de outro filme mineiro, também filmado em Contagem, ‘A Vizinhança do Tigre’ de Affonso Uchoa (que coincidentemente estreou nos cinemas no mesmo dia do longa de André Novais) são dois dos melhores filmes brasileiros dos últimos anos. Ambos são extremante originais e singulares, mas trazem muitos elementos em comum.

‘A Vizinhança do Tigre’, de Affonso Uchoa

Por Fernando Oriente

A Vizinhança do TigreO longa de Affonso Uchoa é um dos melhores filmes brasileiros dos últimos anos. É bom deixar isso claro logo de cara. ‘A Vizinhança do Tigre’ trata de construção de identidade, auto-afirmação, solidificação de personalidades e resistência em meio a um ambiente hostil e a limitações geográficas e materiais, bem como faz um registro minucioso de uma comunidade periférica do Sudeste brasileiro – e opera tudo isso de uma maneira criativa, original e intensa. É um filme em que os personagens buscam dentro de si e no outro – seus amigos, seus vizinhos, seus familiares, seus semelhantes – o reconhecimento, o companheirismo, o afeto e a força para seguirem adiante e juntar os cacos de existências calcadas na precariedade a que estão inseridos. Esse afeto não é esse que contamina muitos dos filmes independentes contemporâneos feitos no país, um afeto estéril e forçado que serve para encobrir a ausência de construções cinematográficas sólidas. É um afeto genuíno, em que Uchoa filme seus personagens de maneira horizontal, está entre eles, nunca acima. Os olha de igual para igual, procura sempre entender ou tentar traduzir suas existências, pensamentos e ações. Tem sobre eles uma visão sincera, humana e isenta de julgamentos morais e teorias sociologizantes.

‘A Vizinhança do Tigre’ não se preocupa com esse debate já infértil sobre as fronteiras entre o que é ficção e o que é documentário. O filme mostra personagens interpretando um roteiro escrito por Uchoa, seus parceiros e por alguns dos próprios tipos que vemos na tela. É um argumento composto coletivamente baseado em experiências reais de vida. Um longa em que pessoas interpretam e improvisam a si mesmas em situações ficcionais que são extraídas ou criadas a patir da realidade de suas vidas. Existe todo um processo de encenação, decupagem, montagem e evolução narrativa construído por Affonso Uchoa que é concebido desde esse roteiro coletivo. A ficcionalização do real a partir da recriação desse real pelo dispositivo cinematográfico. Um filme em que a captação orgânica do mundo e do meio retratado atinge potências imensas. As imagens, as inter-relações, os conflitos, o registro dos personagens e dos espaços seguem uma mise-en-scéne que é totalmente contaminada e concebida em função do caráter orgânico de um mundo que é transposto para a tela com uma sinceridade uma honestidade artística tocantes. O filme é composto dos encontros entre os personagens, seus diálogos (em que discutem assuntos banais, usam sua linguagem e suas gírias características, tiram sarro um do outro ao mesmo tempo em que deixam claro as dificuldades e os problemas em que estão inseridos), seus momentos de diversão, os instantes em que se abrem e se desnudam emocionalmente e pelo registro dos tipos isolados dentro do confinamento dos espaços – sejam suas casas, as ruas e arredores de um bairro pobre do município de Contagem, parte pulsante da Grande Belo Horizonte. Esses momentos em que os vemos sozinhos têm tanto poder significativo e traduz tanto de suas realidades quanto as cenas em que estão em duplas ou grupos. Todos os personagens centrais (Juninho, Menor, Eldo e Adilson) são homens, garotos que se encontram no fim da adolescência ou no início de suas juventudes como adultos.

'A Vizinhança do Tigre'‘A Vizinhança do Tigre’ é um filme em que a violência e a revolta estão presentes constantemente no interior desses jovens e no meio que os cercam. Ela é extrapolada pelas constantes brincadeiras com armas, pela valorização fantasiada que esses jovens fazem de um mundo de criminalidade que nada mais é do que uma forma de resistência e afirmação pessoal diante de uma sociedade que nunca irá incluí-los e que eles fazem questão de rejeitar (as músicas, os raps, funks e o rock hardcore ou metal que escutam constantemente, cantam junto e criam letras em cima dessas melodias é outra maneira de transbordarem a violência e a revolta que carregam dentro deles). Mas é uma violência contida, reprimida, uma revolta que busca escape nas suas brincadeiras agressivas, nos detalhes e gestos mínimos de cada uma de suas ações, nos pequenos prazeres que experimentam, na maneira como se ofendem ao brincarem um com o outro ou mesmo em que se protegem, na forma como expressam seus desejos e o que pensam sobre o mundo ao seu redor. As pulsões violentas são rebatidas nos afetos que se tornam possíveis pelo encontro com o outro e pela possibilidade de se projetar fora do cotidiano brutal.

Eles vivem dentro de um universo em que a ir à escola para alguns e os pequenos bicos que arrumam como trabalho não lhes dá nada, não lhes garantem oportunidades nem esperança em um futuro melhor. Juninho é um ex-detento, tem que prestar contas constantemente à justiça após sua libertação em regime de condicional, ao mesmo tempo ele deve dinheiro a membros do crime; como seu trabalho como pedreiro (nada além de bicos de fim de semana) não lhe dá o suficiente, precisa voltar a vender droga para poder pagar os traficantes, seus credores. Neguinho e Menor teriam que frequentar a escola, mas não se interessam e praticamente não comparecem às aulas. Eles vivem de suas rotinas de jovens largados ao meio, soltos na vida e sem nada que os motive a não serem eles próprios. Se encontram, fumam, usam drogas, escutam muitas músicas, picham muros, destroem construções em ruínas e perambulam pelo bairro, entre brincadeiras, conversas e instantes de imobilidade. É um tempo presente que se estende na repetição e na falta de objetivos concretos, dias em que as ações se repetem e os prendem ainda mais a uma existência castradora e limitada, mas que nunca retira suas energias, suas resiliências, suas alegrias e suas vontades de viver e interagir com os outros e com o mundo. Uchoa não cria situações que transformam personagens em vítimas passivas, não cria sentimentalismos, muito pelo contrário, ele os retrata cheios de vigor, de vida, de vontades e pulsões. Existe alegria em suas vidas, uma alegria retirada pela complexidade na construção subjetiva desses personagens.

A grande força de ‘A Vizinhança do Tigre’ está em Affonso Uchoa retratar tudo isso de maneira natural, por meio de uma mise-en-scéne orgânica e aberta aos tipos, ações, gestos e espaços. O diretor faz isso sem querer elaborar discursos políticos pré-fabricados e sociologizar sobre uma realidade (e ao fazer isso constrói um longa político de primeira grandeza e atualíssimo). Ele entende seus personagens e sabe traduzi-los, reforça o valor identitário de suas individualidades, sentimentos e ações, por mais banais que essas possam parecer; dá valor aos seus encontros, as sua interações, conversas e diversões precárias que encontram para “encher o dia”, como diz um dos personagens em certo ponto do filme. Cada gesto, cada expressão facial dos personagens tem peso imenso no filme. É por meio desses gestos, dessas ações e inações, dos diálogos, do registro detalhado que a câmera faz da materialidade e da presença física de seus corpos na relação espaço-tempo criada pela encenação de Uchoa que temos personagens extremamente densos, complexos em suas imperfeições e inseguranças, na natural composição dos paradoxos de suas personalidades – frágeis e fortes ao mesmo tempo -, cheios de texturas e que transbordam suas limitações e qualidades, suas características mais humanas, suas alegrias, medos e desejos. Raramente um cineasta tratou seus personagens com tamanho respeito, equidade e consideração afetuosa sincera como Affonso Uchoa faz em ‘A Vizinhança do Tigre’. Cada gesto, cada ação, expressão, olhar e fala dos jovens que vemos na tela são afirmações contundentes da complexidade de suas existências e do valor de suas identidades sendo reafirmado constantemente.

A Vizinhaça do Tigre de Affonso UchoaOutra escolha eficaz de Uchoa é intercalar as cenas entre os personagens, pular de um para o outro sem esquematismos, para depois retomá-los. Esse processo ganha mais força ainda pela inserção de planos estáticos que registram com esmero e de maneira direta e documental recortes dos espaços e ambientes onde eles vivem – sejam fachadas de casas, interiores de residências e seus cômodos precários, construções em ruínas, muros, ruas desertas, personagens anônimos que habitam na vizinhança, planos abertos do bairro tanto durante o dia quanto a noite. A cadência na evolução do filme, sua montagem, é calcada no ritmo natural da rotina e da vida dos personagens, desse microcosmo da periferia brasileira. É um filme de observação minuciosa, de detalhamento dos tipos, ambientes, ações e de um desenrolar próprio do tempo em função das realidades subjetivas retratadas. Não existe um plano descuidado no filme. Todas as construções de quadro são precisas, tanto quanto os posicionamento e movimentos de câmera, os cortes, as modulações da luz na direção de fotografia e a duração dos planos e o que se desenrola no interior do quadro. Uchoa tem total domínio do filme, desde a forma até a evolução discursiva e narrativa.

Voltando a questão do afeto, da procura pela empatia e a identificação no outro, é importante ressaltar novamente como Affonso Uchoa desenvolve isso com uma integridade tocante e uma naturalidade orgânica de encenação, uma cumplicidade total com seus personagens e com o meio que registra. As cenas em que os jovens conversam, brincam como se estivessem brigando ou duelando, se imaginam como criminosos que enfrentam o sistema bem como os momentos em que dão apoio um ao outro, muitas vezes apenas por estarem lado a lado, compartilhando os momentos vividos e ainda em diversas cenas belas e singelas, como duas sequências que envolvem Juninho. Na primeira (a cena que abre o filme) ele lê uma carta que acabou de escrever para um amigo preso (em que busca consolá-lo, aconselhando e a dando força motivacional para o jovem preso), na segunda ele pinta as unhas da mãe com carinho e ternura para que ela fique bonita para ir a um culto religioso. Tudo no filme transborda o que de mais humano e autêntico esses personagens têm. ‘A Vizinhança do Tigre’ é um filme que marca um jeito novo, um frescor e um desejo imenso por novas potências do fazer cinema. Não só um dos melhores filmes brasileiros dos últimos anos, como um verdadeiro farol para novos cineastas e para o espectador. Potente e honesto demais. Filmaço.

‘Boi Neon’, de Gabriel Mascaro

Por Fernando Oriente

Boi NeonMais do que registrar e situar corpos em um determinado espaço e tempo, como afirma o diretor Gabriel Mascaro sobre seu novo longa, ‘Boi Neon’ consegue contextualizar a presença, a existência volátil e as camadas emocionais e existenciais de homens, mulheres e crianças em meio ao Nordeste brasileiro nos dias de hoje. Uma região que cresceu demais nos últimos anos de governo do PT. Com uma maior distribuição de renda e investimentos, pessoas passaram a consumir mais, a desejar e a sonhar mais. Embora isso não tenha mudado muito as questões de poder e hierarquia social – os detentores do poder político e econômico continuam os mesmos – as pessoas mais simples, os pobres passaram a ter mais acesso a um universo consumista, o que estimula a imaginação e os leva a desejar novas formas de vida, novas ocupações e serem mais vaidosos. A ascensão das pessoas de camadas mais baixas se dá basicamente pelo acesso maior ao consumo e pela possibilidade de desejar novas formas de vida, com novos trabalhos, novas ambições, mas isso não é nenhuma garantia que esses desejos se tornem algo concreto. Tudo isso em meio a uma região que muda fisicamente, em sua paisagem, com a presença de novas indústrias, pólos comerciais, grandes eventos de agronegócio.

Ao mesmo tempo, a presença física dos personagens, a materialidade corpórea dos tipos estão sempre em primeiro plano. Ao registrar o cotidiano do trabalho e das situações corriqueiras que envolvem um grupo de vaqueiros que viajam pelo interior nordestino com um caminhão de bois para participar de vaquejadas em eventos de agropecuária, Mascaro consegue imprimir um registro direto da relação entre homens, mulheres e uma pré-adolescente em meio aos espaços, conflitos e ambientes em que vivem, sonham e interagem. Gabriel Mascaro não se preocupa em fazer de ‘Boi Neon’ um filme com narrativa clássica, ele se interessa pelos instantes, os momentos isolados de vida, os tempos mortos, o registro sensível das presenças de seus personagens e das relações que surgem entre eles, os ambientes e situações em que em vivem. O longa prioriza sempre os acontecimentos isolados, as ações e inações do dia a dia. Vemos o vaqueiro Iramar (Juliano Cazarré), a motorista de caminhão Galega (Maeve Jinkings), sua filha Cacá (Alyne Santana) e os vaqueiros Zé (Carlos Pessoa) e Junior (Vinicius de Oliveira).

Uma crítica que pode cair sobre ‘Boi Neon’ é o fato de o filme não se aprofundar, ou melhor, não dar sequência a alguns dos conflitos e situações que vemos na tela. Mas para quem conhece o cinema de Gabriel Mascaro, essa ressalva torna-se desnecessária e contrária a uma proposta corriqueira em seus filmes. Mascaro não se preocupa em construir uma história com foco nos impactos de ações e consequências. O que interessa para o diretor são o registro das pessoas e suas relações, os gestos, as expectativas, os momentos de pausa, a rotina de suas vidas e a inserção delas em seus meios e espaços, deslocamento e prostração. Recortes de vida, de existência, de presenças. É assim nos filmes anteriores de Mascaro, como no registro do cotidiano dos moradores de Brasília Teimosa em ‘Avenida Brasília Formosa’ (2010), na captação do cotidiano de empregadas domésticas em ‘Doméstica’ (2012) e no primeiro longa de ficção de Mascaro, ‘Ventos de Agosto’ (2014).

E ‘Boi Neon’ é um filme muito superior a ‘Ventos de Agosto’. A contextualização, a construção forte de personagens, a eficácia da encenação, a densidade das sequências e a relação espaço-temporal são muito melhores no novo filme de Mascaro. Uma evolução impressionante de um longa para o seguinte. As cenas são bem compostas e embora não exista a intenção de trabalhar os personagens além de suas presenças em um determinado tempo e espaço, esses personagens têm suas camadas solidificadas no extra-campo, no fora de quadro, naquilo que não é a diegese pura do filme. O espectador constrói sua visão mais aprofundada dos tipos ao relacioná-los com aquilo que não se vê na tela, com o que esses personagens trazem implicitamente sobre suas histórias de vida, seus passados e suas ambições para o futuro. Tudo em oposição a uma realidade mais seca, em que a chance de tornarem seus sonhos realidades parece tão artificial quanto o boi que participa de uma vaquejada noturna com uma pintura especial que o faz brilhar como se fosse de neon ou como no brinquedo de Cacá – um pequeno cavalo com asas preso a um fio que se mexe e emite luzes fortes.

'Boi Neon'Tudo o que Mascaro põe na tela tem significação e enredamento, mesmo mantendo sua encenação centrada para dar enfoque nos recortes de vida, nos movimentos, nos gestos e nos instantes isolados. São assim as sequências em que vemos Iramar (um vaqueiro de formação, mas que sonha em ser estilista e criar roupas femininas) desenhando modelitos à caneta em cima de fotos de mulheres nuas de uma revista masculina, tratando dos bois antes e depois das vaquejadas, costurando roupas com materiais e equipamentos precários, tentando roubar sêmem de um cavalo de leilão, interagindo com seus colegas, com Galega e com a pequena Cacá, bem como quando ele se encontra com a vendedora de cosméticos e vigia noturna de uma fábrica em meio a maquinas de costura profissional e todos os demais equipamentos de uma grande tecelagem (seu sonho de trabalho ideal). São dessa forma que nos chegam as cenas dos vaqueiros conversando sobre amenidades, brincando, contando seus sonhos, dormindo, comendo, fazendo sexo ou nos intensos momentos de silêncio, em que apenas valem as presenças físicas dos corpos, as tensões dramáticas que se encontram atrás de olhares, que ganham vida em ações, em momentos de repouso ou em movimentos lentos que se encaixam perfeitamente dentro dos ambientes em que se deslocam.

São sutis e ao mesmo tempo emblemáticas as situações em que Gabriel Mascaro mostra a nova realidade nordestina, uma região que com o crescimento acelerado dos últimos anos, tem em seus habitantes pessoas que desejam algo além daquilo que a vida os deu e que suas formações destinaram para eles. A paisagem desse novo Nordeste é cheia de fábricas de grande porte, centros comerciais de roupa e acessórios, grandes eventos do agronegócio. Iramar é um típico vaqueiro, totalmente inserido em seu ambiente e em seu trabalho, mas ele sonha ser estilista (é importante lembrar que regiões do interior nordestino se tornaram pólos de produção de roupas e acessórios que abastecem todo o país) e gosta de comprar perfumes. Junior é vaqueiro, mas é extremamente vaidoso, tem cabelos compridos alisados com chapinha, colocou um aparelho nos dentes só porque acha bonito, além de dar status por ser algo caro. Galega gosta de comprar roupas e calcinhas sexy (como diz o vendedor). A única que destoa desse processo é Cacá, a pré-adolescente seque movida entre a vontade de ter cavalos e lidar com eles e a necessidade de acompanhar e ajudar sua mãe em sua rotina de trabalho e afazeres. Mascaro coloca tudo isso na tela de maneira natural, como algo simplesmente presente naquele universo. A sinceridade e a objetividade com que o diretor constrói seus personagens e ambientes são pontos altos em ‘Boi Neon’. A encenação de Mascaro faz essas características de seus tipos serem algo natural e orgânico, sem artificialismos, cacoetes ou forçação de barra.

Embora todos os personagens, dos centrais aos coadjuvantes, tenham uma construção sólida, a melhor presença em ‘Boi Neon’ é de Maeve Jinkings, uma atriz excepcional que a cada filme se consolida como uma das melhores do cinema contemporâneo. Maeve faz qualquer papel, é totalmente polivalente ao interpretar, não carrega vícios e mergulha em cada tipo que vive com densidade. Galega é uma personagem complexa, vive em um meio embrutecido, dirige caminhão, faz trabalhos mecânicos no veículo, mas ao mesmo tempo foge de um perfil masculinizado que se poderia imaginar para uma mulher em tais situações, foge de construções engessadas, preconceituosas e caducas de gênero, respira frescor e autenticidade. Ela exala charme, sensualidade, fragilidade e erotismo, sem deixar de cumprir suas tarefas com precisão e competência. Galega é uma mulher complexa e graças ao enorme talento de Maeve Jinkings, chega à tela com múltiplas texturas, complexidade e cheia de camadas existenciais.

Para contextualizar melhor as qualidades de ‘Boi Neon’ é interessante voltar a compará-lo a ‘Ventos de Agosto’, longa anterior do diretor. No filme de 2014, vemos uma superficialidade dramática, um uso raso e a espetacularizante dos ambientes que não se projetam nos dramas e certo tom pudico emperra as cenas de sexo, que são apenas sugeridas e mantidas fora do quadro. Em ‘Boi Neon’ o registro dos cenários é totalmente imbricado com o discurso do filme, as cenas de sexo são boas, as trepadas são filmadas com vigor e de maneira frontal. Além disso, os personagens são bem mais intensos e as cenas atingem um grau de densidade mais forte. ‘Boi Neon’ é um belo filme, pode não ser uma obra arrebatadora, mas está totalmente em sintonia com as propostas de Gabriel Mascaro e repleto de qualidades.