‘Capitu e o Capítulo’, de Julio Bressane

Por Fernando Oriente

Em ‘Capitu e o Capítulo’, reforçando o que vem fazendo desde os anos 1990, Bressane traz a força da teatralidade na encenação, com toda a construção de cena baseada em planos estáticos em que uma valorização dos tableaux se dá de maneira primorosa pela disposição dos corpos e objetos dentro do quadro, pela maestria do maneirismo usado nas composições, pelo devir da luz e por meio da junção espaço-temporal entre personagens, texto, sons, fragmentos dramáticos e espaços cênicos, bem como pela espessura densa empregada na mise-en-scène.

Ao mesmo tempo em que Bressane reforça a potência da teatralidade especificamente cinematográfica no cinema contemporâneo (muito forte no cinema português recente), o cineasta remete a uma linguagem de encenação que remete ao primeiro cinema, especialmente aquela dos filmes europeus dos anos 1910, em que a encenação se dava por meio de uma  mise en cadre da qual os plateaux eram o centro a partir dos quais a ação era construída, com ênfase nos posicionamentos dos atores, seus deslocamentos e distâncias em relação à câmera fixa e a profundidade de campo era explorada como recurso composicional e dramático dentro de ambientes internos. Mas Julio Bressane vai além e faz essas presenças no plano estático reforçarem a materialidade dos corpos e o que eles representam na dramaturgia – suas personas ficcionais emanam de seu próprio ser em cena e em relação à potência do décor. Como cineasta tardio, Bressane retoma esses elementos do primeiro cinema e os reorganiza e atualiza por meio do maneirismo personalíssimo de sua mise-en-scène.

‘Capitu e o Capítulo’ promove uma junção de pequenos instantes de ‘Dom Casmurro’ – onde a narrativa se dá na tela de maneira labiríntica, a partir de fragmentos interrompidos do romance e interpostos pela decupagem e a montagem – com passagens da obra reimaginadas e (re)interpretadas por Bressane. São as tensões da escritura, em meio à dissolução dos traços impressos no discurso do filme, que o longa promove constantemente por meio de uma construção dramática em processo.

Esses momentos são intercalados com uma expansão do texto machadiano em direção à literatura brasileira dos séculos XIX e XX. Essa junção é promovida pela presença do personagem do narrador, que é ao mesmo tempo Bentinho (já mais velho) e o próprio Machado de Assis, além de uma extensão do próprio Bressane, que se coloca em cena por meio desse narrador-personagem.

As reflexões do narrador sobre poetas como Álvares de Azevedo e Junqueira Freire, com direito a leitura de alguns de seus poemas, bem como a citação direta de um ensaio de Lima Barreto, fazem com que Bressane relacione a obra machadiana com o contexto literário que o precedeu e o seguiu. Esses momentos são uma forma do diretor interromper as sequências diretamente extraídas ou repensadas de ‘Dom Casmurro’ e contextualizar o romance com o pensamento histórico-literário, social e dramático que são a fonte da moderna literatura brasileira. 

Além disso, Bressane reforça um elemento que vem se utilizando em seu cinema recente, a constante inserção de cenas de seus antigos filmes, criando, dentro de uma obra fechada, uma relação centrífuga com a evolução de seu próprio fazer cinematográfico. Processo esse que culmina em ‘A Longa Viagem do Ônibus Amarelo’ (2023), longa monumental em que Bressane repassa, através de imagens e textos, toda sua obra por meio de um excepcional trabalho de montagem reflexiva

As cenas digressivas do narrador (e os excertos de antigos filmes do diretor) se intercalam  a fragmentos do mais célebre romance de Machado. Nestes, Bressane põe a ênfase na força erótica de Capitu, Sacha e Escobar e no contraste dessa potência erótica do desejo com um quase assexuado Bentinho, mostrado como um homem fraco, frágil e incapaz de romper com sua mesquinha posição moral pequeno burguesa.

Julio Bressane cria um universo cênico de pequenos e belíssimos instantes dramáticos, em que potencializa a força do texto falado, das imagens, da simples presença dos atores em cena e do uso destacado da profundidade de campo em ambientes fechados (assim como de toda a escala de planos dentro do quadro). Além disso, há um notável destaque aos objetos de cena, tudo amalgamado num vir a ser  que reforça sensações e os desejos. Toda essa linguagem fílmica se dá dentro de um processo composicional anti-naturalista, em que a significação das ações e, principalmente, das pulsões, sentimentos e hesitações dos personagens ganham vida por meio de falas declamadas, de instantes de um silêncio espesso, da expressividade dos cenários, de olhares, gestos e expressões, bem como por meio da extasiante construção dos tableaux.

Deixe um comentário