‘Era uma Vez em Nova York’ (The Immigrant), de James Gray

DSC_3749.NEFPor Fernando Oriente

Em ‘Era uma Vez em Nova York’ o diretor James Gray reafirma com maturidade os elementos que são matéria central em seu cinema: a intensidade dos dramas, a carga emocional de seus personagens e a força das relações entre eles. Gray é um encenador elegante, no que o termo tem de mais elogioso. Seus planos são milimetricamente calculados, sua decupagem é rigorosa e pensada sempre em função da fluidez dramática das sequências. Ele trabalha o quadro em suas minúcias, posiciona atores e objetos em pontos específicos dentro de cada plano que visam à relação mais intensa que eles mantêm com a câmera e a função dramática da luz, sendo o trabalho da fotografia um elemento narrativo de primeira importância dentro de seus filmes, ainda mais em um filme de época como ‘Era uma Vez em Nova York’.

No filme temos uma protagonista (a imigrante polonesa vivida por Marion Cotillard) e dois personagens igualmente importantes que interagem com ela. O principal deles é o gigolô, também filho de imigrantes, que alicia a jovem e a traz para trabalhar para ele. Esse personagem (vivido por Joaquim Phoenix em mais uma interpretação excepcional) é quem vai propor as variações dramáticas mais intensas e os conflitos que permitem a James Gray construir ‘Era uma Vez em Nova York’ como um dos grandes filmes do ano. Para completar o trio de tipos centrais, existe o mágico interpretado por Jeremy Renner, que entra na narrativa como catalisador e força propulsora da desordem emocional que conduzirá o longa aos seus picos narrativos e ao desfecho. E é impossível não ressaltar que todo o impressionante final do filme é fechado por um dos mais belos planos que do cinema recente, com uma construção de quadro, movimento de câmera e jogo de significados que ficarão impregnados no espectador por muito tempo.

Embora desenvolva o filme centrado nos conflitos entre seus personagens centrais, James Gray contextualiza suas relações de maneira porosa com o ambiente e a época em que estão inseridos. Por meio dos dramas dos protagonistas, temos a construção de um universo tenso, de um mundo áspero e de uma rotina asfixiante que marcava a vida dos imigrantes em bairros pobres da cidade de Nova York nos anos 20. Gray faz cinema narrativo, em que força autônoma das sequências soma intensidade e amplia a experiência total do filme. Estamos diante de um cineasta que constrói narrativas adultas em meio a um cinema cada vez mais infantilizado no tratamento com as emoções humanas.

Em seus filmes anteriores, principalmente ‘Os Donos da Noite’ (2007) e ‘Amantes’ (2008), temos nítidas essas preocupações de Gray em que o cinema deve unir a altíssima carga dramática, a força narrativa e a funcionalidade austera da encenação com a profundidade e a complexidade de personagens constituídos por muitas camadas emocionais. São as múltiplas texturas de seus tipos que conduzem seus longas, que dão contornos a narrativa.

Em ‘Era uma Vez em Nova York’ são as modulações internas e as variações emocionais do personagem de Joaquim Phoenix que ditam as regras, bem como as próprias tensões da vida precária em um ambiente inóspito em que todos estão inseridos. O gigolô que interpreta é de uma densidade dramática impressionante. Ele é canalha ao mesmo tempo em que transpira fragilidade em todos os gestos. Em uma das cenas do filme, a personagem de Marion Cotillard diz a sua tia que conheceu um homem perdido. Esse homem perdido, egoísta e explorador é ao mesmo tempo capaz de deixar sentimentos fortes de ternura e amor guiar seus atos. Os tipos de James Gray são todos culpados (embora essa culpa não tenha uma lógica simplista), mas isso não os impede de alternarem as mais distintas e muitas vezes nobres características humanas. Eles buscam seus desejos, seguem seus instintos de sobrevivência. Esses fatores lhes dão complexidade aguda e levam as situações dramáticas a extremos.

É impossível julgar os personagens, a moral do cinema de James Gray vem exatamente da impossibilidade que ele implica aos seus tipos de serem julgados por conceitos rasos ou maniqueísmos. Uma moral construída na solidez da mise-en-scène. Seus personagens são todos demasiadamente humanos. E é das profundezas dessa humanidade que os conflitos surgem, que a violência rompe os limites e os dramas afloram dentro da intensidade ímpar do cinema de James Gray.

‘Era uma Vez em Nova York’ evoca referenciais claras. As mais notáveis são o tratamento na construção da encenação em espaços internos e externos cara a muitos filmes da Nova Hollywood dos anos 70, mais notadamente as sequências do jovem Vito Corleone em ‘O Poderoso Chefão 2’, mas também muito do estilo de Michael Cimino em quase todos seus longas. A luz dourada, os tons marrons amarelados da paleta de cores na fotografia remetem bastante a trabalhos do cinema americano dos anos 70, principalmente em filmes de época. Um uso de luz dramática que imprime às sequências um tom ligado aos humores narrativos e as percepções espaço temporais dos ambientes. A sensorialidade da imagem em função da evolução dramática.

No filme também ficam claras comparações na maneira como James Gray constrói a encenação, com posicionamentos e movimentos de câmera, bem como a relação entre os tipos e os objetos, que lembram bastante a forma de Luchino Visconti perscrutar os espaços em muitos de seus filmes, mais notadamente ‘Vagas Estrelas da Ursa’, ‘Violência e Paixão’ e ‘O Inocente’.

James Gray tem apenas cinco longas realizados em quase vinte anos de carreira (seu primeiro longa-metragem ‘Fuga Para Odessa’ é de 1994). Trata-se de um cineasta que realiza apensas os projetos que deseja e pode ter controle total sobre eles. Gray é um artesão do cinema, um narrador sofisticado e um dos maiores encenadores surgidos no cinema mundial nas últimas décadas. ‘Era uma Vez em Nova York’ é um claro exemplo disso.

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