‘A Cidade dos Abismos’, de Priscyla Bettim e Renato Coelho

Por Fernando Oriente

O centro de São Paulo se tornou um mito no cinema, como também na literatura. Essa mitologia em torno de um espaço degradado surgiu a partir dos anos 1960, quando a região central da maior cidade do país iniciou seu processo de deterioração. Até a década de 1950, o centro paulistano era pujante, frequentado pelas classes médias e altas, que ao mesmo tempo continha uma população pauperizada em seus cortiços e pequenos edifícios. mas que não impediam a circulação das classes abastadas em seus bares, boites, cafés, restaurantes, doceiras, cinemas e teatros. A degradação desse espaço alimentou uma nova relação da classe artística com a região central de SP, que no caso do cinema se traduziu no cinema marginal (ou de invenção) e depois nos filmes da Boca do Lixo. A Rua do Triunfo era o local onde se encontravam as produtoras e distribuidoras de filmes. Por seus quarteirões andavam cineastas, fotógrafos, roteiristas, montadores, produtores, bem como atrizes e atores que trabalhavam diretamente tanto nos filmes de invenção quanto nos longas da Boca dos anos 1960, 1970 e 1980. Mas isso acabou. Hoje a Rua do Triunfo não tem mais nenhum vestígio desse mundo cinematográfico, mas existe na mitologia de um cinema incontornável que marcou a cinematografia paulistana e brasileira.

Em 2023 o centro de São Paulo é habitado por moradores de rua, dependentes de crack, prostitutas, travestis e pequenos traficantes, além de trabalhadores pobres, ao mesmo tempo em que abriga artistas, poetas, escritores, intelectuais e membros da classe média que se recusam abandonar a região e lá ainda moram, seja no Edifício Copam, nos prédios das Avenidas São Luís e Viera de Carvalho ou na regiões do entrono da Praça da República e do Largo do Arouche.

Essa longa introdução é necessária para nos aproximarmos desse ótimo primeiro longa de Priscyla Bettim e Renato Coelho. Em ‘A Cidade dos Abismos’ o centro de SP é tão personagem quanto os tipos que dentro dele interagem. E o vazio é a marca central, esse vazio espacial e simbólico da região que se transporta para as existências dos personagens.

No longa temos uma pequena narrativa fragmentada que se desenrola em torno de quatro personagens que habitam a região central de SP – duas travestis, uma restauradora de filmes que trabalha na Cinemateca e um imigrante africano dono de um boteco fuleiro. Uma das travestis é assassinada no bar do africano e os outros três personagens passam a investigar por conta própria os autores desse crime. A grandeza do filme está em não se ater apenas a essa evolução dramática e promover uma mescla de situações alegóricas, que vão desde a entrada em cena de personagens marginais desse tecido urbano degradado do centro paulistano – que surgem na tela como arquétipos, recitam poesias diretamente para a câmera, ou apenas se movem como presenças fantasmáticas dentro desse vazio urbano -, passando por um sonho de uma personagem que é narrado e depois encenado, pela presença fantasmagórica da travesti assassinada que surge em cena perambulando pelas ruas e praças sujas e deterioradas, por um bizarro Papai Noel que no dia de Natal, em plena Cracolândia, troca brinquedos por pedras de crack e por momentos de puro experimento com imagens – com cenas captadas em super 8 que registram as ruas, calçadas e fachadas de casas e prédios do centro e que são apresentadas em velocidade acelerada e montadas por justaposições e fusões de planos.

O primeiro longa de Bettim e Coelho é um filme híbrido, em que a pequena narrativa é constantemente intercalada por experimentos com as texturas da imagem  – o filme todo é captado em película; 16mm na maioria das cenas, super 8 nas sequências mais experimentarias e 35mm em uma única cena em que uma das protagonistas canta ao lado do personagem vivido por Arrigo Barnabé -, por planos e sequências alegóricos, por uma constante inversão entre o colorido e o preto e branco, além de textos em voz over que penetram o espaço diegético. A filiação de Bettim e Coelho é o cinema de invenção, o experimental – tendo ‘Limite’, de Mario Peixoto, como o marco zero na genealogia do cinema experimental brasileiro. O longa de 1931 de Peixoto, esse cânone do cinema mundial, é citado em imagens mais de uma vez ao longo do filme.

Mas mesmo nesse deleite de imagens e sons que ‘A Cidade dos Abismos’ oferece, a dupla de realizadores consegue promover uma perfeita junção entre o alegórico e o discurso dramático centrado na presença desses quatro personagens centrais, seu vazio existencial, as relações de pequenas afeições que surgem entre eles e a fragilidade de suas existências que os conduzem a um desfecho trágico, onde a morte violenta nada representa para a “sociedade”. São vazios existências que ao serem eliminados da forma mais brutal somem da mesma forma como viveram, num limbo sócio-existencial. É o centro de São Paulo que abriga ao mesmo tempo que engole e faz desvanecer esses seres.

‘A Cidade dos Abismos’ promove uma verdadeira imersão no tecido urbano do centro de São Paulo, tanto em sua materialidade quanto em sua simbologia – e aqui, o fato do longa ser captado em películas de diferentes formatos permite uma primorosa valorização sensória do grão da imagem impresso na tela. Entre as cenas  alegóricas e experimentais, temos belos momentos de encenação dos dramas dos quatro protagonistas, filmados em ângulos fechados e planos de situação – que oferecem uma sensação de aprisionamento espacial e existencial desses personagens -, um registro pujante dos espaços cênicos, assim como de diálogos lentos, dos silêncios e de deslocamentos por ruas e becos, bem como por uma interação entre esses personagens em que rasgos de amizade e empatia afloram em meio a conversas corriqueiras e o desejo de descobrir os assassinos da travesti. Para completar, temos participações especiais de figuras marcantes da identidade cultural e social da cidade de São Paulo como Arrigo Barnabé (que assina a trilha sonora original do filme), o poeta Claudio Willer, o ator e encenador Marcelo Drummond (principal nome do Teatro Oficina depois de Zé Celso) e do padre Julio Lancelotti.

Mas talvez o maior triunfo desse belíssimo filme seja a valorização do plano cinematográfico pelos seus diretores. O plano não apenas como significante, mas como locus da potência da imagem; de tudo que ela carrega por si só – tanto como discurso dramático, discurso simbólico-alegórico, quanto como devir da luz e do movimento; bem como espaço onde a palavra e os ruídos são impressos de forma centrífuga e centrípeta – a partir do interior do campo em expansão ao extracampo e ao ante-campo e do fora de quadro para o interior do quadro. É desse mínimo denominador comum do filme – o plano – que ‘Cidade dos Abismos’ se ergue para o encanto sensorial do espectador.

O primeiro longa de Priscyla Bettim e Renato Coelho tem os pés firmes em nosso tempo, mas constantemente se desloca genealogicamente em direção a elementos constitutivos do cinema de invenção, do experimental, do cinema da Boca e de artistas que encarnam a metrópole paulistana em suas próprias presenças. ‘A Cidade dos Abismos’ transborda em suas imagens e sons essa cidade caótica e sua região central e reforça a mitologia do centro paulistano, mas de maneira inventiva, orgânica e autêntica, onde a visão dos realizadores foge de clichês e preconceitos e retira uma beleza de onde menos se espera, sem mascarar a realidade concreta de um espaço deteriorado e abandonado, do vazio e das existências que nele sobrevivem.

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