‘Luz nos Trópicos’, de Paula Gaitán

Por Fernando Oriente

O longa de Paula Gaitán atinge e supera toda a enorme ambição do projeto. Um filme dessa grandeza necessita de vários textos críticos ou um artigo mais extenso para dar conta de todas as suas possibilidades de interpretação. Por aqui, apenas algumas observações. Assim que eu rever mais uma vez ’Luz nos Trópicos’, volto ao texto.

Impressiona a liberdade da câmera da diretora, que explora todas as possibilidades indiciais da imagem. Imagens que se pautam e constroem numa observação sensual, sensorial e poética dos espaços (da natureza viva  e quente da região pantaneira do Xingu aos espaços urbanos de concreto, aço, asfalto e vidro de Nova Iorque, bem como ambientes naturais gelados de rios, lagos e bosques no interior dos EUA).

A liberdade discursiva do filme se desdobra constantemente, seguindo os fluxos das águas dos rios que cruzam o continente americano, desde o frio estadunidense ao calor dos trópicos do Xingu. A câmera da Paula não se impõem limites ou regras, registra tudo de todas as formas e sempre em função da luz; das texturas e intensidades luminosas – desde os espaços abertos onde personagens transitam até os detalhes de corpos, objetos, roupas,  plantas, águas, animais, ruas, casas e prédios. Natureza e civilização.

A questão do pertencimento aos espaços, à terra e à natureza em que os personagens (europeus, estadunidenses, mestiços brasileiros, indígenas – colonizadores e vítimas do processo histórico de colonização) se encontram e na qual se fundem, se perdem ou se encontram é central na relação que diretora constrói entre os corpos e os ambientes que acolhem esses sujeitos. Só as comunidades indígenas apresentam uma real comunhão entre seus seres e a Natureza onde vivem.

Os rios que conduzem sujeitos desterrados a diferentes locais geográficos são os mesmos rios que ligam diferentes tempos históricos, diferentes povos, diferentes culturas. A transitoriedade do ser humano em constante contraste com a continuidade e a permanência da Natureza.

Os dois fios narrativos que conduzem a primeira metade do filme são interrompidos, quando um personagem (presente na segunda narrativa: a expedição de europeus à região do Pantanal no século XIX) atravessa o tempo e se funde ao presente dos dias de hoje, no qual retornou um desterrado em busca de sua ancestralidade indígena – personagem da primeira narrativa que abre ‘Luz nos Trópicos’.

A segunda metade do longa é um exercício brilhante de montagem livre e disrupção narrativa (de tudo que foi erigido de forma fragmentária na primeira parte), que paralelamente intercala registros de personagens deslocados e em permanente movimento na metrópole americana e nos espaços de natureza gelada do hemisfério norte com cenas do Pantanal, de comunidades indígenas do Xingu, bem como introduz cenas alegóricas e situações oníricas.

Distintos registros – digital, super 8, 16mm, fotografias, pinturas, desenhos e imagens de arquivo (cenas do primeiro longa de Paula Gaitán, ‘Uaká’, filmado no Xingu em 1987) – são intercalados com textos em voz over, em diferentes idiomas, que penetram a cena e ampliam seu espalho diegético-temporal.

A montagem da banda sonora é tão potente quanto as imagens – sons, ruídos, vozes, textos, cantos e música que constantemente dialogam e interagem dialeticamente com o campo imagético e remetem ao enorme extracampo que o filme não para, em momento algum, de tensionar.

‘Luz nos Trópicos’ é um filme que se dá ao olhar e à escuta como matéria heterogênea, com camadas e mais camadas de sobreposições espaciais, temporais, visuais e sonoras. Uma obra polifônica. Mas, ao mesmo tempo, é um longa em que o fazer cinema, o construir do cinemático como (e em) processo criador está presente em cada plano e vai além do filme após o término da projeção – uma constante presença do cinema como movimento, como devir imagem-som que se dá no filme como matéria e se prolonga no espectador durante o ato de assistir e depois como memória ativa daquilo que foi visto e ouvido.

Um filme que usa as possibilidades do cinema para criar uma experiência inclassificável e incontornável de imagens e sons belíssimos, discursos e mais discursos e ainda é repleto de alternâncias – espaciais, temporais e materiais – de ritmo e fruição. Ao mesmo tempo, trata-se de um longa que dialoga com toda a obra da cineasta. Mais um filme extraordinário de Paula Gaitán.

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