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Os 20 melhores filmes dos anos 1970  (+ 120 grandes longas da década)*

Por Fernando Oriente

Aqui está a lista com meus 20 filmes de longa-metragem favoritos da década de 1970. Pessoalmente acho os anos 1970 o melhor período do cinema mundial, seguido de muito perto pelas décadas de 1960 e 80. Um período de 30 anos que, para mim, conta com o maior número de obras-primas, grandes filmes e grandes cineastas. Por isso, essa relação dos 1970 é acrescida de 60  filmes que poderiam estar entre os 20 primeiros e por mais 60 menções de longas que acho excepcionais. Mesmo com 140 títulos relacionados, vários ótimos filmes e cineastas acabaram ficando de fora.

              (#Apenas um filme por diretor(a) para tornar a lista mais variada)

Os 20 melhores filmes dos anos 1970

  1. ‘Out 1, Noli Me Tangere’, de Jacques Rivette. (França, 1971) [versão com 12h52min. de duração]
  2. ‘Da Nuvem à Resistência’ (Dalla Nube Alla Resistenza), de Jean-Marie Straub e Danièle Huillet. (Itália, 1979)
  3. ‘Numéro Deux’, de Jean-Luc Godard. (França, 1975)
  4. ‘Profissão: Repórter’ (Professione: Reporter), de Michelangelo Antonini. (Itália, 1975)
  5. Nous Ne Vieillirons Pas Ensemble’ – ‘Nós Não Envelheceremos Juntos’, de Maurice Pialat. (França, 1972)
  6. ‘India Song’, de Marguerite Duras. (França, 1975)
  7. ‘Amor de Perdição’, de Manoel de Oliveira. (Portugal, 1979)
  8. ‘O Diabo, Provavelmente’ (Le Diable Probablement), de Robert Bresson. (França, 1977)
  9. ‘Saló ou 120 Dias de Sodoma ’, Pier Paolo Pasolini. (Itália, 1975)
  10. ‘La Maman et la Putain’ – ‘A Mãe e a Puta’, de Jean Eustache. (França, 1973)
  11. ‘De Cierta Manera’, de Sara Goméz. (Cuba, 1974)
  12. ‘Jeanne Dielman’, de Chantal Akerman. (Bélgica, 1975)
  13. ‘L’Enfant Secret’, de Philippe Garrel. (França, 1979)
  14. ‘Sem Essa, Aranha’, de Rogério Sganzerla. (Brasil, 1970)
  15. ‘A Primeira Noite de Tranquilidade’ (La Prima Notte de Quiete), de Valerio Zurlini. (Itália, 1972)
  16. ‘Ludwig’, de Luchino Visconti. (Itália/Alemanha, 1973)
  17. ‘Num Ano de 13 Luas’ – ‘In a Year with 13 Moons’, de Rainer Werner Fassbinder. (Alemanha, 1978)
  18. ‘Change Pas de Main’ – ‘A Chantagem’, de Paul Vecchiali. (França, 1975)
  19. ‘O Espírito da Colmeia’ (El Espíritu de la Colmena), de Victor Erice. (Espanha, 1973)
  20. ‘Sambizanga’, de Sarah Maldonor. (Angola, 1972)

+  60 filmes que poderiam estar entre os 20

  • ‘A Morte de um Bookmaker Chinês’ (The Killing of a Chinese Bookie), de John Cassavetes. (EUA, 1976)
  • ‘Bang Bang’, de Andrea Tonacci. (Brasil, 1971)
  • ‘O Discreto Charme da Burguesia’ (Le Charme Discret de la Bourgeoisie), de Luis Buñuel. (França, 1972)
  • ‘Stalker’, de Andrei Tarkovsky. (URSS, 1979)
  • ‘A Agonia’, de Julio Bressane. (Brasil, 1978)
  • ‘A Última Ceia’ (La Última Cena), de Tomás Gutiérrez Alea. (Cuba, 1976)
  • ‘Vengeance is Mine’ – ‘Minha Vingança’, de Shohei Imamura. (Japão, 1979)
  • ‘São Bernardo’, de Leon Hirszman. (Brasil, 1972)
  • ‘Providence’, de Alain Resnais. (França, 1977)
  • ‘Salmo Vermelho’ – ‘Red Psalm’, de Miklós Jancsó. (Hungria, 1972)
  • O Leão de Sete Cabeças’, de Glauber Rocha. (Brasil/Itália/França, 1970)
  • ‘Trágica Obsessão” (Obsession), de Brian De Palma. (EUA, 1976)
  • ‘A Conversação’ (The Conversation), de Francis Ford Coppola. (EUA, 1974)
  • ‘Trás-Os-Montes’, de António Reis e Margarida Cordeiro. (Portugal, 1976)
  • ‘Blaise Pascal’, de Roberto Rossellini. (Itália/França, 1972)
  • ‘Two-Lane Blacktop’ – ‘Corrida Sem Fim’, de Monte Hellman. (EUA, 1971)
  • ‘A Última Mulher’ (La Dernière Femme), de Marco Ferreri. (Itália/França, 1976)
  • ‘O Desejo’, de Walter Hugo Khouri. (Brasil, 1975)
  • ‘O Açougueiro’ (Le Boucher), de Claude Chabrol. (França, 1970)
  • ‘O Amuleto de Ogum’, de Nelson Pereira dos Santos. (Brasil, 1974)
  • ‘The Man Who Left His Will on Film’ – ‘O Homem que Deixou Seu Testamento no Filme’, de Nagisa Oshima. (Japão, 1970)
  • ‘A Ascensão’ – ‘The Ascent’, de Larisa Shepitko. (URSS, 1977)
  • ‘Veredas’, de João César Monteiro. (Portugal, 1978)
  • ‘O Joelho de Claire’ (Le Genou de Claire), de Eric Rhomer. (França, 1970)
  • ‘Amargo Reencontro’ (Big Wednesday), de John Milius. (EUA, 1978)
  • ‘God Told Me To’ – ‘Foi Deus Quem Mandou’, de Larry Cohen. (EUA, 1976)
  • ‘No Decurso do Tempo’ – ‘Kings of the Road – In The Course of Time’, de Wim Wenders. (Alemanha, 1976)
  • ‘Deep End’ – ‘O Ato final’, de Jerzy Skolimowski. (Inglaterra, 1970)
  • ‘A Mulher Que Inventou o Amor’, de Jean Garret. (Brasil, 1979)
  • ‘A Morte de Maria Malibran’ – ‘The Death of Maria Malibran’, de Werner Schroeter. (Alemanha, 1972)
  • ‘A Árvore dos Tamancos’ (L’Albero degli Zoccoli), de Ermano Olmi. (Itália, 1978)
  • ‘Actas de Marusia’, de Miguel Littin. (México, 1975)
  • ‘A Patriota’ – ‘The Patriotic Woman’, de Alexander Kluge. (Alemanha, 1979)
  • ‘Lua de Papel’ (Paper Moon), de Peter Bogdanovich. (EUA, 1973)
  • ‘Pat Garret & Billy The Kid’, de Sam Peckinpah. (EUA, 1973)
  • ‘A Floresta Petrificada’ – ‘The Petrified Forrest’, de Masahiro Shinoda. (Japão, 1973)
  • ‘A Queda’, de Ruy Guerra e Nelson Xavier. (Brasil, 1978)
  • ‘F For Fake’ – ‘Verdades e Mentiras’, de Orson Welles. (França, 1973)
  • ‘Taxi Driver’, de Martin Scorsese. (EUA, 1976)
  • ‘Em Nome do Pai’ (Nel Nome del Padre), de Marco Bellocchio. (Itália, 1971)
  • ‘Le Théâtre Des Matières’, de Jean-Claude Biette. (França, 1977)
  • ‘Killer of Sheep’- ‘O Matador de Ovelhas’, de Charles Burnett. (EUA, 1978)
  • ‘Rabid’, de David Cronenberg. (Canadá, 1977)
  • ‘Blood Brothers’ – ‘Irmão de Sangue’, de Chang Cheh. (Hong Kong, 1973)
  • ‘Trovão Distante’ – ‘Distant Thunder’, de Satyajit Ray. (Índia, 1973)
  • ‘A Herança’, de Ozualdo Candeias. (Brasil, 1970)
  • ‘O Castelo da Pureza’ (El Castillo de la Pureza), de Arturo Ripstein. (México, 1973)
  • ‘All That Jazz’, de Bob Fosse. (EUA, 1979)
  • ‘História de Melancolia e Tristeza’ – ‘A Tale of Sorrow and Sadness’, de Seijun Suzuki, (Japão, 1977)
  • ‘Profondo Rosso’ – ‘Prelúdio para Matar’, de Dario Argento. (Itália, 1975)
  • ‘Fruto do Paraíso’ – ‘Fruit of Paradise’, de Vera Chytilová. (Tchecoslováquia, 1970)
  • ‘Anna’, de  Alberto Grifi e Massimo Sarchielli. (Itália, 1975)
  • ‘Purgatório Heroica’ – ‘Heroic Purgatory’, de Yoshishige Yoshida. (Japão, 1970)
  • ‘Los Hijo de Fierro’ – ‘Os Filhos de Fierro’, Fernando Solanas. (Argentina, 1978)
  • ‘Coração de Cristal’ – ‘Heart of Glass’, de Werner Herzog. (Alemanha, 1976)
  • ‘Emitai’, de Ousmane Sembene. (Senegal, 1971)
  • ‘Le Pélican’ de Gérard Blain. (França, 1974)
  • ‘Passing Through’, de Larry Clark. (EUA, 1977)
  • ‘Annie Hall’ – ‘Noivo Neurótico, Noiva Nervosa’, de Woody Allen. (EUA, 1977)
  • ‘Lilian M – Relatório Confidencial’, de Carlos Reichenbach. (Brasil, 1975)

+ 60 menções

  • ‘Ecce Bombo’, de Nanni Moretti. (Itália, 1978)
  • ‘Daguerreotypes’, de Agnes Varda. (França, 1975)
  • ‘Os Inconfidentes’, de Joaquim Pedro de Andrade. (Brasil, 1972)
  • ‘A Vocação Suspensa’ (La Vocation Suspendue), de Raul Ruiz. (França, 1978)
  • ‘A Filha De Ryan’ (Ryan’s Daughter), de David Lean. (Grã-Bretanha, 1970)
  • ‘Hitler – Um Filme da Alemanha’ – ‘Hitler – A Film from Germany’, de Hans-Jürgen Syberberg. (Alemanha, 1977)
  • ‘Dersu Uzala’, de Akira Kurosawa. (URSS/Japão, 1975)
  • ‘Roma’, de Federico Fellini. (Itália, 1972)
  • ‘La Tregua’, de Sergio Renán. (Argentina, 1974)
  • ‘Quando Explode a Vingança’ – ‘A Fistful of Dynamite’, de Sergio Leone. (Itália, 1971)
  • ‘O Inquilino’ (Le Locataire), de Roman Polanski. (França, 1976)
  • ‘A Casa Assassinada’, de Paulo César Saraceni. (Brasil, 1974)
  • ‘Muito Prazer’, de David Neves. (Brasil, 1979)
  • ‘Investigação Sobre um Cidadão Acima de Qualquer Suspeita’ (Indagine su un Cittadino al di sopra di Ogni Sospetto), de Elio Petri. (Itália, 1971)
  • ‘Assalto à 13ª DP’ (Assault on Precinct 13), de John Carpenter. (EUA, 1976)
  • ‘Damas do Prazer’, de Antonio Meliande. (Brasil, 1978)
  • ‘As Boas Maneiras’ (Les Belles Manières), de Jean-Claude Guiguet. (França, 1978)
  • ‘Poema’ – Poem’, de Akio Jissoji. (Japão, 1972)
  • ‘Confissões Íntimas de Uma Cortesã Chinesa’ – ‘Intimate Confessions of a Chinese Courtesan, de Chor Yuen (Hong Kong, 1972)
  • ‘O Estranho Sem Nome’ (High Plains Drifter), de Clint Eastwood. (EUA, 1973)
  • ‘Sorcerer’ – ‘Comboio do Medo’ de Willian Friedkin. (EUA, 1977)
  • ‘Delitto d’Amore’, de Luigi Comencini. (Itália, 1974)
  • ‘Frenesi’ (Frenzy), de Alfred Hitchcock. (Inglaterra, 1972)
  • ‘O Relatório’ – ‘The Report’, de Abbas Kiarostami. (Irã, 1977)
  • ‘O Segredo do Bosque dos Sonhos’ (Non se Sevizia un Paperino), de Lucio Fulci. (Itália, 1972)
  • ‘Dawn of the Dead’ – ‘Despertar dos Mortos’, de George A. Romero. (EUA, 1978)
  • ‘Banho de Sangue’  (Reazione a Catena), de Mario Bava. (Itália, 1971)
  • ‘Manila na Garras de Néon’ – ‘Manila in the Claws of Light’, de Lino Brocka. (Filipinas, 1975)
  • ‘Hardcore’, de Paul Schrader. (EUA, 1979)
  • ‘Harmonica’, de Amir Naderi. (Irã, 1974)
  • ‘Finis Hominis’, de José Mojica Marins. (Brasil, 1971)
  • ‘O Quarto Verde’ (La Chambre Verte), de Françoise Truffaut. (França, 1977)
  • ’11 x 14’, de James Benning. (EUA, 1977)
  • ‘Confissões de um Comissário de Polícia ao Procurador da República’ (Confessione di un Commissario di Polizia al Procuratore della Repubblica), de Damiano Damiani. (Itália, 1971)
  • ‘Rolling Thunder’ – ‘A Outra Face da Violência’, de John Flynn. (EUA, 1977)
  • ‘Louca Paixão’ (Turks Fruit), de Paul Verhoeven. (Holanda, 1973)
  • ‘Muna Moto’, de Jean-Pierre Dikongue-Pipa. (Camarões, 1975)
  • ‘O Franco Atirador’ (The Deer Hunter), de Michael Cimino. (EUA, 1978)
  • ‘O Massacre da Serra Elétrica’ (The Texas Chain Saw Massacre), de Tobe Hooper. (EUA, 1974 )
  • ‘Le Fond de L’Air est Rouge’ – ‘O Fundo do Ar é Vermelho’, de Chris Marker. (França,1977)
  • ‘Mandingo’, Richard Fleischer. (EUA, 1975)
  • ‘Crioulo Doido’, de Carlos Alberto Prates Correia. (Brasil, 1973)
  • ‘Milestones’, de Robert Kramer. (EUA, 1975)
  • ‘We Can’t Go Home Again’, de Nicholas Ray. (EUA, 1973)
  • ‘Wanda’, de Barbara Loden. (EUA, 1970)
  • ‘Juvenile Court’, de Frederick Wiseman. (EUA, 1973)
  • ‘Faustão – O Cangaceiro do Rei’, de Eduardo Coutinho, 1971. (Brasil, 1971)
  • ‘A Breve Noite das Bonecas de Vidro’ (La Corta Notte Delle Bambole di Vetro) de Aldo Lado. (Itália, 1971)
  • ‘Org’, de Fernando Birri. (Itália, 1979)
  • ‘Mar de Rosas’, de Ana Carolina. (Brasil, 1978)
  • ‘O Descarte’, de Anselmo Duarte. (Brasil, 1973)
  • ‘A Montanha Sagrada’ (La Montaña Sagrada), de Alejandro Jodorowsky. (México, 1973)
  • ‘As Aventuras Amorosas de Um Padeiro’,de Waldyr Onofre. (Brasil, 1975)
  • ‘O Jardim das Espumas’, de Luiz Rosemberg Filho. (Brasil, 1970)
  • ‘A Rainha Diaba’, de Antonio Carlos da Fontoura. (Brasil, 1974)
  • ‘A Rosa de Ferro’ (La Rose de Fer), de Jean Rollin. (França, 1973)
  • ‘A Culpa’ de Domingos de Oliveira. (Brasil, 1971)
  • ‘L’Uomo, la Donna e la Bestia’ – ‘O Homem, a Mulher e a Besta’, de Alberto Cavallone. (Itália, 1977)
  •  ‘Ódio’, de Carlo Mossy. (Brasil, 1977)
  • ‘Eu Matei Lúcio Flávio’, de Antonio Calmon. (Brasil, 1979)

*A lista foi feita a pedido de Pedro Lovallo para uma pesquisa com diversos críticos e pesquisadores sobre o cinema dos anos 1970.

‘Out 1, Noli Me Tangere’, de Jacques Rivette

Os 20 Melhores Filmes de 2022 (entre as estreias nos cinemas do Brasil no ano)

Por Fernando Oriente

Estes são os vinte melhores filmes que estrearam nos cinemas de São Paulo (e outras cidades brasileiras) em 2022 na minha opinião. A lista volta a ser como havia sido sempre até 2019, levando em conta apenas as estreias em nossas salas. Por isso alguns filmes presentes nas listas de 2020 e 2021 estão nesta lista. Em 20 e 21, levei em consideração, devido à pandemia e ao fechamento dos cinemas, filmes lançados nos respectivos anos e assistidos em diversas plataformas. Com algumas revisões, vários filmes cresceram demais para mim, enquanto outros diminuíram um pouco seu impacto, além de novos títulos, lançados apenas ano passado, terem entrado na lista final.

A qualidade dos filmes desta lista é muito alta devido ao número de estreias e ao fato dos filmes serem lançamentos de diferentes anos. Os longas aqui relacionados vão de obras-primas a filmes excelentes e encerra com obras no mínimo notáveis. Com são apenas 20 filmes, alguns belos longas que estrearam em 2022 ficaram de fora.

Os 20 melhores filmes de 2022

  1. ‘Vitalina Varela’, de Pedro Costa. (Portugal)
  2. ‘Drive My Car’, de Ryusuke Hamaguchi. (Japão)
  3. Crimes do Futuro’ (Crimes of the Future), de David Cronenberg. (Canadá)
  4. ‘O Traidor’ (Il Traditore), de Marco Bellocchio. (Itália)
  5. ‘Tre Piani’, de Nanni Moretti. (Itália)
  6. ‘Il Buco’, de Michelangelo Frammartino. (Itália)
  7. ‘A Mulher de Um Espião’, de Kiyoshi Kurosawa. (Japão)
  8. ‘Dias – Days’, de Tsai Ming Liang. (Taiwan)
  9. ‘Fabian – O Mundo Está Acabando’, de Dominik Graf. (Alemanha)
  10. ‘Encontros’ (Introduction), de Hong Sang-Soo. (Coréia do Sul)
  11. ‘Roda da Fortuna’, de Ryusuke Hamaguchi. (Japão)
  12. ‘Memoria’, de Apichatpong Weerasethakul. (Colômbia/Tailândia)
  13. ‘Benedetta’, de Paul Verhoeven. (França)
  14. ‘Mães Paralelas’ (Madres Paralelas), de Pedro Almodóvar. (Espanha)
  15. ‘Curtas Jornadas Noite Adentro’, de Thiago B. Mendonça. (Brasil)
  16. Armageddon Time’, de James Gray. (EUA)
  17. ‘Rua Guaicurus’, de João Borges. (Brasil)
  18. ‘Nope – Não! Não Olhe!”, de Jordan Peele. (EUA)
  19. ‘Marte Um’, de Gabriel Martins. (Brasil)
  20. ‘Licorice Pizza’, de Paul Thomas Anderson. (EUA)

Os 20 melhores filmes dos anos 1980 (+ 65 grandes longas da década)

Por Fernando Oriente

Aqui está a lista com meus 20 filmes de longa-metragem favoritos da década de 1980. Pessoalmente, acho as décadas de 1960, 70 e 80 a melhor época do cinema mundial, com maior número de grandes filmes e grandes cineastas. Por isso, essa relação dos 1980 é acrescida de 33 filmes que poderiam estar entre os 20 primeiros e por mais vinte e sete longas que adoro. Mesmo com 85 títulos relacionados, vários ótimos filmes e cineastas acabaram ficando de fora.

 *Apenas um filme por diretor para tornar a lista mais variada

Os 20 melhores filmes dos anos 1980

  1. ‘Passion’, de Jean-Luc Godard. (França, 1982)
  2. ‘Aos Nossos Amores’ (À Nos Amours), de Maurice Pialat. (França, 1983)
  3. ‘A Idade de Terra’, de Glauber Rocha. (Brasil, 1980)
  4. ‘Palombella Rossa’, de Nanni Moretti. (Itália, 1989)
  5. ‘O Portal do Paraíso’ (Heaven’s Gate), de Michael Cimino. (EUA, 1980)
  6. ‘Le Pont du Nord’, Jacques Rivette. (França, 1981)
  7. ‘Taipei Story’, de Edward Yang. (Taiwan, 1985)
  8. ‘Blow Out – Um Tiro na Noite’, de Brian De Palma. (EUA, 1981)
  9. ‘Cão Branco’, de Samuel Fuller. (EUA, 1982)
  10. ‘Francisca’, de Manoel de Oliveira. (Portugal, 1981)
  11. ‘Identificação de uma Mulher’, de Michelangelo Antonioni. (Itália, 1982)
  12. ‘O Império do Desejo’, de Carlos Reichenbach. (Brasil, 1981)
  13. ‘A Opção ou As Rosas da Estrada’, de Ozualdo Candeias. (Brasil, 1981)
  14. ‘O Dinheiro’ (L’Argent), de Robert Bresson. (França, 1983)
  15. ‘Videodrome’, de David Cronenberg. (Canadá, 1983)
  16. ‘Recordações da Casa Amarela’, de João César Monteiro. (Portugal, 1989)
  17. ‘Viver e Morrer em Los Angeles’, de William Friedkin. (EUA, 1985)
  18. ‘Rumble Fish – O Selvagem da Motocicleta’, de Francis Ford Coppola. (EUA, 1983)
  19. ‘Sul’ (Sur), de Fernando Solanas. (Argentina, 1988)
  20. ‘Tout une Nuit’, de Chantal Akerman. (Bélgica, 1982)

+ 36 filmes que poderiam estar entre os 20

  • ‘O Raio Verde’, de Eric Rohmer. (França, 1986)
  • ‘Rosa la Rose, Fille Publique’, de Paul Vecchiali. (França, 1986)
  • ‘Inspector Lavardin’, de Claude Chabrol. (França, 1986)
  • ‘Melô’ , de Alain Resnais. (França, 1986)
  • ‘Noites Paraguayas’, de Aluysio Raulino. (Brasil, 1982)
  • ‘Documenteur’, de Agnès Varda. (França/EUA, 1981)
  • ‘Conversas no Maranhão’, de Andrea Tonacci. (Brasil, 1983)
  • ‘Ela Passou Algumas Horas Sob a Luz do Sol’, de Philippe Garrel. (França, 1985)
  • O Sul” (El Sur), de Victor Erice. (Espanha, 1983)
  • ‘Relações de Classe’, de Danièle Huillet e Jean-Marie Straub. (Alemanha, 1984)
  • ‘A Time to Live, A Time to Die’, de Hou Hsiao-Hsien (Taiwan, 1985)
  • ‘Sombras no Paraíso’ – ‘Shadows in Paradise’, de Aki Kaurismäki. (Finlândia, 1986)
  • ‘Rosa de Areia’, de António Reis e Margarida Cordeiro. (Portugal, 1989)
  • ‘As Três Coroas do Marinheiro’, de Raúl Ruiz. (França, 1983)
  • ‘O Rufião’, de Shohei Imamura. (Japão, 1987)
  • ‘Le Rebelle’, de Gérard Blain. (França, 1980)
  • ‘O Desespero de Veronika Voss’, de Reiner Werner Fassbinder. (Alemanha, 1982)
  • ‘‘Tenebre’, de Dario Argento. (Itália, 1982)
  • ‘The Thing – Enigma de Outro Mundo’, de John Carpenter, (EUA, 1982)
  • ‘Conhecendo o Grande e Vasto Mundo’. de Kira Muratova. (URSS, 1980)
  • ‘Honkytonk Man – A Última Canção’, de Clint Eastwood. (EUA, 1982)
  • ‘Onde Fica a Casa do meu Amigo?’, de Abbas Kiarostami. (Irã, 1987)
  • ‘Simone Barbès ou a Virtude’, de Marie-Claude Treilhou. (França, 1980)
  • ‘Yeelen – A Luz’, de Souleymane Cissé. (Mali,1987)
  • ‘Eles Não Usam Black-Tie’, de Leon Hirszman. (Brasil, 1981)
  • ‘Era Uma Vez na América’. De Sergio Leone. (Itália/EUA, 1984)
  • ‘Nostalgia’, de Andrei Tarkovsky. (Itália/URSS, 1983)
  • ‘De Barulho e de Fúria’ (De Bruit et de Fureur), de Jean-Claude Brisseau. (França, 1988)
  • ‘Eros, O Deus do Amor’, de Walter Hugo Khouri. (Brasil, 1981)
  • ‘La Nación Clandestina’, de Jorge Sanjínes. (Bolívia, 1989)
  • ‘Das Tripas Coração’, de Ana Carolina. (Brasil, 1982)
  • ‘Amantes’ (Love Streams), de John Cassavetes. (EUA, 1984)
  • ‘Não Brinque com Fogo’, de Tsui Hark. (Hong Kong, 1980)
  • ‘Manhunter – Caçador de Assassinos’, de Michael Mann. (EUA, 1986)
  • ‘Out of the Blue – Anos de Rebeldia’, de Dennis Hopper. (EUA, 1980)
  • ‘Terror nas Trevas – The Beyond’  (L’Aldila), de Lucio Fulci. (Itália, 1981)

+ 29 menções

  • ‘O Futuro É Mulher’, de Marco Ferreri. (Itália, 1984)
  • ‘Hôtel des Amériques’, de André Techiné. (França, 1981)
  • ‘O Estado das Coisas’, de Wim Wenders. (Alemanha/Portugal, 1982)
  • ‘Depois de Horas’, de Martin Scorsese. (EUA, 1985)
  • ‘Hasta Cierto Punto’, de Tomás Gutiérrez Alea. (Cuba, 1983)
  • ‘Gli Occhi, La Bocca’ de Marco Bellocchio. (Itália, 1982)
  • ‘E La Nave Va’, de Federico Fellini. (Itália, 1983)
  • ‘Blade Runner – O Caçador de Androides’, de Ridley Scott. (EUA, 1982)
  • ‘Memórias do Cárcere’, de Nelson Pereira dos Santos. (Brasil, 1984)
  • ‘Ms. 45 – Sedução e Vingança’, de Abel Ferrara. (EUA, 1981)
  • ‘Erêndira’, de Ruy guerra. (México, 1983)
  • Panelstory – O Nascimento De Uma Comunidade‘, de Vera Chytilová. (Tchecoslováquia, 1980)
  • ‘Fitzcarraldo’, de Werner Herzog. (Alemanha, 1982)
  • ‘Nem Tudo É Verdade’, de Rogério Sganzerla. (Brasil, 1986)
  • ‘Danação’, de Bela Tarr. (Hungria, 1988)
  • ‘Um Lobisomem Americano em Londres’, de John Landis. (EUA/Inglaterra, 1981)
  • ‘Bar Esperança’, de Hugo Carvana. (Brasil, 1983)
  • ‘Shoah’, de Claude Lanzmann. (França, 1985)
  • ‘Matador’, de Pedro Almodóvar. (Espanha, 1986)
  • ‘O Quarto Homem’, de Paul Verhoeven (Holanda, 1983)
  • ‘Sermões – A História de Antônio Vieira’, de Julio Bressane. (Brasil, 1989)
  • ‘Broadway Danny Rose’, de Woody Allen. (EUA, 1984)
  • ‘Ao Sul do Meu Corpo’, de Paulo César Saraceni. (Brasil, 1982)
  • ‘Santa Sangre’, de Alejandro Jodorowsky. (México, 1989)
  • ‘Faça a Coisa Certa’ (Do The Right Thing), de Spike Lee. (EUA, 1989)
  • ‘O Iluminado’, de Stanley Kubrick. (EUA/Inglaterra, 1980)
  • ‘Corra Que a Polícia Vem Aí!’ (The Naked Gun), de David Zucker. (EUA, 1988)
  • ‘Acta General de Chile’, de Miguel Littin. (Chile, 1986)
  • ‘Conta Comigo’ (Stand By Me), de Rob Reiner. (EUA, 1986)

*A lista foi feita a pedido de Pedro Lovallo para uma pesquisa com diversos críticos e pesquisadores sobre o cinema dos anos 1980.

‘Passion’, de Godard

Os 30 Melhores Filmes de 2021

Por Fernando Oriente

A lista dos melhores longas de 2021 do Tudo Vai Bem inclui apenas filmes que tiveram sua primeira exibição no mundo em 2021, independentemente de terem sidos lançados no circuito brasileiro ou integrado mostras e festivais no país. Com um número maior de obras “selecionáveis”, a lista conta com 30 filmes na ordem – mais ou menos e até o momento – da minha preferência. Essa maior liberdade na escolha dos títulos faz com que os filmes dessa lista sejam excelentes ou, no mínimo, muito bons.

Do 1º ao 4º são obras-primas (a se confirmar com o tempo e com revisões).  Do 5º ao 18º são filmes excelentes. Os demais são muito bons.

Os 30 melhores filmes de 2021

  1. ‘Drive My Car’, de Ryusuke Hamaguchi. (Japão)
  2. ‘Zeros and Ones’, de Abel Ferrara. (Itália/EUA)
  3. ‘Limbo’, de Soi Cheang. (Hong Kong)
  4. ‘Cry Macho’, de Clint Eastwood (EUA)
  5. ‘Capitu e o Capítulo’, de Julio Bressane (Brasil)
  6. ‘Roda da Fortuna’, de Ryusuke Hamaguchi. (Japão)
  7. ‘Madres Paralelas’, de Pedro Almodóvar. (Espanha)
  8. ‘Memoria’, de Apichatpong Weerasethakul. (Colômbia/Tailândia)
  9. ‘The Card Counter’, de Paul Schrader. (EUA)
  10. ‘Annette’, de Leos Carax. (França/EUA)
  11. ‘In Front of Your Face’, de Hong Sang-soo. (Coréia do Sul)
  12. ‘A Garota e a Aranha’ (The Girl and the Spider), de Ramon Zürcher e Silvan Zürcher. (Suíça)
  13. ‘What do We See When We Look at the Sky?’, de Alexandre Koberidze. (Georgia)
  14. ‘Encontros’, de Hong Sang-soo. (Coréia do Sul)
  15. ‘France’, de Bruno Dumont. (França)
  16. ‘Old – Tempo’, de M. Night Shyamalan. (EUA)
  17. ‘Tre Piani’, de Nanni Moretti. (Itália)
  18.  ‘Benedetta’, de Paul Verhoeven. (França)
  19.  ‘Cena do Crime’, de Pedro Tavares. (Brasil)
  20. ‘Os Primeiros Soldados’, de Rodrigo de Oliveira. (Brasil)
  21.  ‘Ataque dos Cães – The Power of the Dog’, de Jane Campion. (Inglaterra/Nova Zelândia)
  22. ‘Ostinato’, de Paula Gaitán. (Brasil)
  23.  ‘A Vingança É Minha, Todos os Outros Pagam em Dinheiro’, de Edwin. (Indonésia)
  24.  ‘Întregalde’, de Radu Muntean. (Romênia)
  25. ‘Compartment No. 6’, de Juho Kuosmanen. (Finlândia/Rússia)
  26. ‘A Cidade dos Abismos’, de Priscyla Bettim e Renato Coelho. (Brasil)
  27. ‘Madalena’, de Madiano Marcheti. (Brasil)
  28. ‘Azor’, de Andreas Fontana. (Argentina/Suíça)
  29. ‘After Blue’, de Bertrand Mandico. (França)
  30. ‘A Chiara’, de Jonas Carpignano. (Itália)

‘Drive My Car’, de Ryusuke Hamaguchi

10º Olhar de Cinema – críticas e comentários sobre alguns dos destaques da edição 2021 do Festival

Por Fernando Oriente

Os quatro melhores filmes do Festival

‘Capitu e o Capítulo’, de Julio Bressane (Brasil, 2021)

Em seu novo longa, reforçando o que vem fazendo desde os anos 1990, Bressane traz a força da teatralidade da encenação, com toda a construção de cena baseada em planos estáticos em que uma valorização dos tableaux se dá de maneira primorosa pela disposição dos corpos e objetos dentro do quadro e na junção espaço-temporal entre personagens, fragmentos dramáticos e espaços cênicos. Ao mesmo tempo em que Bressane reforça a potência da teatralidade cinematográfica no cinema contemporâneo, o cineasta remete a uma mise en scène do primeiro cinema, especialmente aquela dos filmes europeus dos anos 1910, em que a encenação se dava por meio de uma  mise en cadre da qual os plateaux eram o centro a partir dos quais a ação era construída, com ênfase nos posicionamentos dos atores, seus deslocamentos e distâncias em relação a câmera fixa e a profundidade de campo era explorada como recurso composicional e dramático dentro de ambientes internos. Mas Julio Bressane vai além e faz essas presenças no plano estático reforçarem a materialidade dos corpos e o que eles representam na dramaturgia – suas personas ficcionais emanam de seu próprio ser em cena em relação à potência do décor.

‘Capitu e o Capítulo’ promove uma junção de pequenos instantes de ‘Dom Casmurro’ intercalados com uma expansão do texto machadiano em direção à literatura brasileira dos séculos XIX e XX. Essa junção é promovida pela presença do personagem do narrador, que é ao mesmo tempo Bentinho (já mais velho) e o próprio Machado de Assis, além de uma extensão do próprio Bressane, que se coloca em cena por meio desse narrador-personagem. As reflexões do narrador sobre poetas como Álvares de Azevedo e Junqueira Freire, com direito a leitura de alguns de seus poemas, bem como a citação direta de um ensaio de Lima Barreto, fazem com que Bressane relacione a obra machadiana com o contexto literário que o precedeu e o seguiu. Esses momentos são uma forma do diretor interromper as sequências diretamente extraídas de ‘Dom Casmurro’ e contextualizar o romance com o pensamento literário e dramático que são a fonte da moderna literatura nacional.  

Além disso, Bressane reforça um elemento que vem se utilizando em seu cinema recente, a constante inserção de cenas e seus antigos filmes, criando, dentro de uma obra fechada, uma relação centrífuga com a evolução de seu próprio fazer cinematográfico.

As cenas digressivas do narrador (e os excertos de antigos filmes do diretor) se intercalam  a fragmentos do mais célebre romance de Machado. Nestes, Bressane põe a ênfase na força erótica de Capitu, Sacha e Escobar e no contraste dessa potência erótica do desejo com um quase assexuado Bentinho, mostrado como um homem fraco, frágil e incapaz de romper com sua mesquinha posição moral pequeno burguesa.

Julio Bressane cria um universo cênico de pequenos e belíssimos instantes dramáticos, em que a força do texto falado, da simples presença dos atores em cena e do uso destacado da profundidade de campo em ambientes fechados (assim como de toda a escala de planos dentro do quadro), além do destaque dado aos objetos de cena,  reforçam as sensações dos tipos. Tudo dentro de um processo composicional anti-naturalista, em que a significação das ações e, principalmente, dos desejos, sentimentos e hesitações dos personagens ganham vida por meio de falas declamadas, de instantes de um silêncio espesso, da expressividade dos cenários, de olhares, gestos e expressões, bem como por meio da deslumbrante construção dos tableaux.

E, já que o filme exige uma crítica muito mais extensa, para resumir estes breves comentários em poucas palavras: Bressane nos oferece mais uma obra-prima.

‘A Máquina Infernal’, de Francis Vogner dos Reis (Brasil, 2021)

Francis Vogner dos Reis realiza, em apenas, 29 minutos, um brilhante retrato da situação da classe trabalhadora no Brasil. Mais especificamente o operariado industrial. Algo raro no cinema brasileiro contemporâneo, um filme em que a questão de classe é o centro e a razão da dramaturgia. Entre os inúmeros subtextos presentes em ‘A Máquina Infernal’ temos o colapso da industrialização no país. Esse processo da desindustrialização brasileira, que teve início nos anos 1980 e se agudizou a partir do Plano Real em 1994, marca uma transição da acumulação de capital no país para um tipo de capitalismo dependente rentístico, em que os industrias brasileiros, devido à concorrência de produtos manufaturados estrangeiros – que passam a inundar o mercado nacional após a abertura total da economia do país iniciada no início dos anos 1990 – fecham suas indústrias e passam a viver da especulação financeira, principalmente nos títulos da dívida pública e na renda imobiliária dos antigos galpões e terrenos onde existiam as fábricas. É bom deixar claro que o Brasil que sempre foi um pais dependente, subdesenvolvido e periférico, apesar breves momentos de desenvolvimentismo que nunca foram capazes de tirar o pais de sua posição depende e subdesenvolvida e na qual  classe trabalhadora sempre foi vítima da superexploração da força de trabalho, ao mesmo tempo em que a maioria dos lucros da nossa economia eram exportados para exterior via o envio de remessas de capital acumulado no pais e produzido por nossos trabalhadores.

A participação do capital industrial no PIB do país passa de mais 40% em fins dos anos 1970 para menos de 15% já nos anos seguintes ao Plano Real  – e hoje representa pouco mais de 10%. A nova divisão internacional do trabalho, que fez com que as multinacionais com sede nos países imperialistas transferissem suas plantas para o sudeste asiático e a Índia, bem como a crescente estrangeirização da economia nacional, restringiu o parque industrial brasileiro às transnacionais e a empresas de capital misto, onde a maior parte dos lucros fica na mão de investidores e sócios estrangeiros. Todos os setores da indústria de bens e equipamentos sofreu um enorme encolhimento.

Essa digressão não é meramente ilustrativa, é o cerne, a base material que engendra o discurso de ‘A Máquina infernal’. No filme acompanhamos uma indústria na divisa de São Bernardo com Diadema, na região do ABC paulista, que se encontra em processo de falência – os donos sumiram e uma interventora foi chamada para gerenciar a fábrica nos seus últimos momentos antes do inevitável fechamento de suas atividades. No interior dessa fábrica acompanhamos os poucos operários que restam, trabalhando em meio a máquinas deterioradas ou simplesmente quebradas, sem a mínima segurança para operar esses equipamentos e sofrendo de uma crescente superexploração de suas forças de trabalho, com aumentos da jornada de trabalho, empregos temporários, alguns cumprindo aviso prévio após serem demitidos e todos com seus rebaixados salários atrasados.

Vogner dos Reis compõe de forma precisa os espaços internos dessa fábrica  – ao mesmo tempo que contextualiza a área em seu entorno, com cenas externas de suas ruas e das poucas indústrias que restaram na região. Acompanhamos os deslocamentos dos operários que exercem seus trabalhos de maneira melancólica e resignada, a câmera filma detalhadamente a maquinária deteriorada, passeia pelos espaços intercalando planos fechados nos operários e planos de conjunto em que os mostram integrados aos espaços de trabalho, em curtos diálogos, se deslocando pelos ambientes da indústria ou simplesmente operando as máquinas. O tempo todo a excelente banda sonora introduz sons e ruídos das máquinas ao mesmo tempo em que insere barulhos estranhos; é como se aquelas máquinas estivessem emitindo sons de seu próprio colapso, anunciando a ruína final dessa fábrica.

Em uma das grandes cenas do filme, temos uma assembleia entre os funcionários e a interventora, em que as demandas dos operários por seus salários atrasados, suas queixas pela extensão da jornada são interrompidas pelo conflito entre os próprios trabalhadores. Um deles clama por uma greve com ocupação, enquanto outro o ataca e diz que eles têm que aceitar a situação para não perderem de maneira ainda mais rápida seus empregos. Nessa cena, mais um subtexto aflora dentro do discurso dramático, a fragilidade e a incapacidade de combate da classe trabalhadora, impossibilitada de se unir para lutar por seus direitos. Isso escancara a imensa regressão da consciência de classe que tomou conta dos trabalhadores brasileiros desde os fins dos anos 1980 e principalmente a partir dos anos 1990. Essa perda ou embotamento da consciência de classe se deve, no Brasil, à ação deletéria de sindicatos e centrais sindicais pelegas, ao crescente desemprego e rebaixamento dos salários, as perdas dos  direitos trabalhistas, bem como da ação dos partidos de esquerda, que passaram a abandonar a questão da luta de classes e a barganhar por pequenas causas e por políticas públicas de curto alcance.

O grande achado e uma das mais potentes soluções dramáticas assumidas por Francis Vogner do Reis é abordar essa situação concreta do proletariado industrial brasileiro nos dias hoje por uma chave fantástica carregada de simbologias e significações. Desde o início do filme, temos um crescente tom pesadelo, de horror – como numa das primeiras cenas em que um operário morre ao operar uma máquina. Ao longo do filme, vemos trabalhadores entrarem numa espécie de surto, em que se tornam uma espécie de zumbis, como se fosse extensões mecânicas das próprias máquinas. A maquinaria e a própria fábrica passam agir por conta própria, objetos são atirados nos funcionários, os ruídos se intensificam, sons insuportáveis tomam conta do espaço interno, operários caem no chão em convulsões provocados pelo contato com a maquinaria. Tudo caminha até o desfecho, quando a fábrica mata todos os operários, com exceção da protagonista, que perambula pelos espaços entre os cadáveres de seus colegas de trabalho até ela mesma ser tomada por um surto. Essa situação no interior da planta culmina com uma imagem externa da fábrica sendo demolida.

A indústria falida desmorona e soterra os operários. A crise do capital industrial se materializa na tela pelo próprio desmoronamento da fábrica; o capitalismo industrial desaba matando o operariado superexplorado. Os últimos planos trazem uma espécie de limbo pós destruição, em que vemos a protagonista andando pela indústria e vendo todos aqueles que morreram, desde o primeiro personagem que morre no início do filme, trabalhando normalmente. Surge em cena a figura do proprietário da fábrica – aquele que tinha abandonado e fugido da empresa – e sem mover os lábios ouvimos sua voz dizendo à protagonista que as máquinas não quebrarão mais e ela está dispensada do trabalho. Então, a jovem operária se dirige à saída da fábrica, mas ao abrir a porta, vê uma parede. Não há saída, todos estão encerrados dentro dessa fábrica que não mais existe. O operariado, assassinado pelo capital está encerrado dentro desse espaço de trabalho que não mais existe. É fim dos empregos, dos postos de trabalho, das indústrias do ABC que há quatro décadas atrás representaram o ápice da industrialização brasileira;  a crise final do capital industrial brasileiro.

‘A Máquina Infernal’ une cenas de um realismo cru a elementos de cinema fantástico e mesmo de horror. É a forma composicional que Vogner dos Reis encontra para traduzir a realidade desesperadora da classe operária brasileira hoje, que começou a ser gestada há décadas e encontra seu colapso final nos dias atuaia. O uso dos elementos fantásticos não são mero exercício formal e estético, eles traduzem e ampliam, metaforicamente, a realidade concreta retratada no longa. O fantástico no filme é uma forma de potencializar o realismo crítico com que o diretor constrói seu curta. Um dos grandes filmes do ano.

‘A Cidade dos Abismos”, de Priscyla Bettim e Renato Coelho (Brasil, 2021)

O centro de São Paulo se tornou um mito no cinema, como também na literatura. Essa mitologia em torno de um espaço degradado surgiu a partir dos anos 1960, quando a região central da maior cidade do país iniciou seu processo de deterioração. Até a década de 1950, o centro paulistano era pujante, frequentado pelas classes médias e altas, que ao mesmo tempo continha uma população pauperizada em seus cortiços e pequenos edifícios. mas que não impediam a circulação das classes abastadas em seus bares, cafés, restaurantes, doceiras, cinemas e teatros. A degradação desse espaço alimentou uma nova relação da classe artística com a região central de SP, que no caso do cinema se traduziu no cinema marginal (ou de invenção) e depois nos filmes da Boca do Lixo. A Rua do Triunfo era o local onde se encontravam as produtoras e distribuidoras de filmes e por seus quarteirões andavam cineastas, fotógrafos, roteiristas, montadores, produtores, bem como atrizes e atores que trabalhavam diretamente tanto nos filmes de invenção quanto nos longas da Boca dos anos 1970 e 1980. Isso também acabou. Hoje a Rua do Triunfo não tem mais nenhum vestígio desse mundo cinematográfico, mas existe na mitologia de um cinema incontornável que marcou a cinematografia paulistana.

Em 2021 o centro de São Paulo é habitado por moradores de rua, dependentes de crack, prostitutas, travestis, trabalhadores pobres e pequenos traficantes, ao mesmo tempo em que abriga artistas, poetas, escritores e intelectuais que se recusam abandonar a região e lá ainda moram, seja no Edifício Copam ou nos prédios das Avenidas São Luís e Viera de Carvalho e na região do entrono da Praça da República.

Essa longa introdução é necessária para nos aproximarmos desse ótimo primeiro longa de Priscyla Bettim e Renato Coelho. Em “A Cidade dos Abismos’ o centro de SP é tão personagem quanto os tipos que dentro dele interagem. E o vazio é marca central, esse vazio espacial da região que se transporta para as existências dos personagens.

No longa temos uma pequena narrativa que se desenrola em torno de quatro personagens que habitam a região central de SP – duas travestis, uma restauradora de filmes que trabalha na Cinemateca e um imigrante africano dono de um boteco fuleiro. Uma das travestis é assassinada no bar do africano e os outros três personagens passam a investigar por conta própria os autores desse crime. A grandeza do filme está em não se ater apenas a essa evolução dramática e promover uma mescla de situações alegóricas, que vão desde a entrada em cena de personagens marginais desse tecido urbano degradado do centro paulistano – que surgem na tela como arquétipos, recitam poesias diretamente para a câmera, ou apenas se movem como presenças fantasmáticas dentro desse vazio urbano -, passando por um sonho de uma personagem que é narrado e depois encenado, pela presença fantasmagórica da travesti assassinada que surge em cena perambulando pelas ruas sujas e deterioradas, por um bizarro Papai Noel que no dia de Natal, em plena Cracolândia, troca presentes por pedras de crack e por momentos de puro experimento com imagens – com cenas captadas em super 8 que registram as ruas, calçadas e fachadas de casas e prédios do centro e que são apresentadas em velocidade acelerada e montadas por justaposições e fusões de planos.

A Cidade dos Abismos’ é um filme híbrido, em que a pequena narrativa é constantemente intercalada por experimentos com as texturas da imagem ( o filme todo é captado em película; 16mm na maioria das cenas, super 8 nas sequências mais experimentarias e 35mm em uma única cena em que uma das protagonistas canta ao lado do personagem vivido por Arrigo Barnabé), planos e sequências alegóricos, uma constante inversão entre o colorido e o preto e branco, textos em off que penetram o espaço diegético. A filiação de Bettim e Coelho é o cinema de invenção, o experimental, mas mesmo nesse deleite de imagens e sons que o filme oferece, a dupla de realizadores consegue promover uma perfeita junção entre o alegórico e o discurso dramático centrado na presença desses quatro personagens centrais, seu vazio existencial, as relações de pequenas afeições que surgem entre eles e a fragilidade de suas existências que os conduzem a um desfecho trágico, onde a morte violenta nada representa para a “sociedade”. São vazios existências que ao serem eliminados da forma mais brutal somem da mesma forma como viveram, num limbo existencial. É o centro de São Paulo que abriga ao mesmo tempo que engole e faz desvanecer esses seres.

‘A Cidade dos Abismos’ promove uma verdadeira imersão no tecido urbano do centro de São Paulo, tanto em sua materialidade quanto em sua simbologia. Entre as cenas  alegóricas e experimentais, temos momentos de potente encenação dos dramas dos quatro protagonistas, que são filmados em ângulos fechados – que oferecem uma sensação de aprisionamento espacial e existencial desses personagens -, um registro potente dos espaços cênicos, assim como diálogos lentos, silêncios, deslocamentos por ruas e becos, bem como por uma interação entre esses personagens em que rasgos de afeto e empatia afloram em meio a conversas corriqueiras e o desejo de descobrir os assassinos da travesti. Para completar, temos participações especiais de figuras marcantes da identidade cultural e social da cidade de São Paulo como Arrigo Barnabé, Claudio Willer, Marcelo Drummond e do padre Julio Lancelotti.

O primeiro longa de Bettim e Coelho tem os pés firmes em 2021, mas constantemente se expande em direção a elementos constitutivos do cinema de invenção, do cinema da Boca e de artistas que encarnam a metrópole paulistana em suas próprias presenças. ‘A Cidade dos Afetos’ transborda em suas imagens e sons essa cidade caótica e sua região central e reforça a mitologia do centro paulistano, mas de maneira orgânica e autêntica, onde a visão dos realizadores foge de clichês e preconceitos e retira uma beleza de onde menos se espera, sem mascarar a realidade concreta de um espaço deteriorado e abandonado e das existências que nele sobrevivem.

‘Apenas o Sol’, de Arami Ullón (Paraguai, 2020)

A cineasta paraguaia Arami Ullón consegue promover em seu documentário um registro original do processo de desenraizamento de índios da etnia Ayoreo na região do Chaco no Paraguai. Todo este processo se deve primeiro a descoberta do que podemos chamar de protagonista, o indígena Sobode Chiqueño, que há anos grava em fitas cassete os depoimentos de membros de sua etnia hoje confinados a reservas em uma região seca e distante das florestas onde habitavam antes do contato com os brancos; florestas estas que viraram fazendas, propriedades privadas para gerar lucro pelas atividades agrícolas, bem como pela renda da terra.  

O grande mérito do filme está em centrar esses depoimentos, que Ullón registra enquanto Chiqueño os grava, no aspecto da religião, de como a catequese – primeiro católica, depois evangélica – fez com que esses indígenas, na maioria já velhos, tenham abandonado e renegado suas tradições e crenças religiosas e se convertido ao cristianismo e seus dogmas. Ao mesmo tempo o filme intercala os depoimentos com  uma captação primorosa de imagens dos espaços onde vivem os indígenas e mostra a integração deles nesse ambiente áspero.

Outro elemento de força desse resgate pela fala do processo de desenraizamento dos Ayoreo são os depoimentos que o próprio Chiqueño faz para seu gravador – e que a diretora registra da mesma maneira horizontal com que filma cada fala dos indígenas -, em que comenta como ele, após ter se convertido ao cristianismo, passou a refletir como este processo o afastou de suas raízes culturais e simbólicas e o fez desejar registrar as experiências de seus pares, ao mesmo tempo em que tentava um resgate das antigas tradições de seu povo e que, pelos depoimentos e imagens, vemos que estão condenadas a desaparecer.

Mas o elemento religioso não é o único. Em um dos grandes momentos do longa, um índio idoso comenta como, após ter contato com os brancos, passou a desejar ser como eles e ter o que eles tinham. Só que ele pensou que poderia ter tudo isso de graça e descobriu que no universo do colonizador, tudo tem seu preço, um valor dinheiro desconhecido pelas vivências indígenas. Daí surge a questão do trabalho, dos baixíssimos salários pagos aos índios em trabalhos temporários e subempregos.

Embora seja centrado na questão religiosa, ‘Apenas o Sol’, também traz depoimentos em que indígenas relatam as chacinas promovidas pelos brancos em que seus familiares foram assassinados; traz a questão das doenças desconhecidas na comunidade e que, trazidas pelo colonizador, mataram muitos membros da tribo, além de tratar da questão da introdução das mercadorias e sua relação com o dinheiro. Um documentário de extrema profundidade no mergulho nas raízes desses indígenas, numa contextualização ampla da totalidade dos processos de colonização que os levaram a um inescapável desenraizamento.

Outros destaques do 10º Olhar de Cinema

Um dos pontos altos da programação do festival em 2021 foi a retrospectiva de todos os filmes do palestino Kamal Aljafari. São longas e curtas que dialogam constantemente uns com os outros e mostram que na evolução da obra de Aljafari, os elementos centrais de sua obra são sempre a questão da tragédia do povo palestino, desde a diáspora do Nakba em 1948, que, fruto do ataque militar que os israelenses promoveram às cidades palestinas, forçou o êxodo de centenas de milhares de árabes de suas casas, além do assassinato de milhares deles. E como esse processo de expulsão e segregação continua de forma ininterrupta até os dias de hoje.

Kamal Aljafari detêm sua câmera nas casas deterioradas e em ruínas em que vivem os palestinos, nas ruas de terra, nos entulhos que se intercalam a essas precárias residências dentro dos guetos em que foram transformadas as cidades de Jaffa e Ramle, incrustradas na periferia de Telavive e de outras cidades ocupadas por Israel. Sua câmera também registra esses árabes dentro destes espaços (interiores e exteriores), na maioria das vezes em silêncio, em pequenas ações banais do cotidiano ou em diálogos que vão do corriqueiro às lembranças das violências de que foram vítimas pelas mãos de Israel e seus sionistas.

Dos depoimentos melancólicos e da prostração resignada de seus parentes em O Telhado (2006), que também marcam a dramaturgia e os personagens de seu único longa ficcional, Porto da Memória (2009), Aljafari passa a trabalhar em seus dois filmes seguintes com imagens de arquivo de diversas fontes. Em Recordação (2015) acompanhamos, pela montagem de inúmeras cenas registradas em diferentes períodos históricos, a deterioração material da cidade de Jaffa, suas casas e ruas. Já em Um Verão Incomum (2020) o diretor se utiliza de imagens de uma câmera de segurança instalada por seu pai na casa da família captadas ao longo de vários dias, em que um único enquadramento é trabalhado por Aljafari para promover um registro de um fragmentos de rua e seus espaços adjacente onde vemos diversas pessoas passarem diante da câmera, intercaladas por cartelas em que o texto contextualiza quem são as pessoas conhecidas pelo diretor, bem como comenta sobre tipos desconhecidos dele e as ações que os vemos fazer diante da câmera. Nesse recorte espacial minúsculo, Aljafari consegue um registro poderoso do dia a dia de palestinos e meio ao gueto em que foram confinado. O cinema de Kamal Aljafari é notável.

Para concluir, destaco outros dois filmes muito bons que integraram a seleção do 10º Olhar. Zinder, longa da diretora do Níger Aicha Macky, em que a cineasta faz um mergulho pessoal no bairro marginal e paupérrimo de Kara Kara, em sua cidade natal da de Zinder. Kara Kara é habitado por gangues, prostitutas, contrabandistas de gasolina, bem como por trabalhadores que vivem de subempregos e com salários baixíssimos.

O longa é composto por uma notável apreensão dos ambientes do bairro, bem como de seus habitantes – com destaque para membros de uma gangue, uma contrabandista e um ex-membro de gangue que trabalha como mototaxista. Esta imersão em Kara Kara é ampliada pela inserção no discurso do filme de questões de base que promovem a miséria e a violência do local. A falta de emprego  e ausência do Estado em promover o mínimo para a comunidade força a adesão de jovens da região tanto às gangues quanto a grupos terroristas e, no caso das mulheres e meninas adolescentes, à prostituição. Essa base socioeconômica também faz com que os habitantes do bairro tenham que sobreviver por meio de trabalhos por conta própria – como a venda de gasolina contrabandeada – ou por empregos temporários com salários rebaixados e uma constante superexploração de suas forças de trabalho, como no caso do trabalho em pedreiras da região. Um documentário de rara potência e de uma contextualização primorosa de um ambiente, seus habitantes e as relações materiais que determinam e condicionam suas vidas.

Já o documentário Estilhaços, da cineasta argentina Natalia Garayalde, faz uso de imagens captadas na infância da diretora, nos primeiros anos da década de 1990 – por meio de uma câmera de vídeo VHS da família de Garayalde – e montadas ao lado de imagens de arquivo da época e poucas cenas que diretora registrou, já nos anos 2010, em seu retorno à sua cidade de Río Tercero, na região de Córdoba. O filme gira em torno de um acidente que arrasou a cidade de Río Tercero, a explosão de uma fábrica militar de munições, em 1994.

Natalia Garayalde, então uma criança, filmou ela mesma, na câmera de vídeo de sua família, cenas que registram a destruição da cidade após a explosão. A força do filme vem da junção na montagem dessas cenas com outras captadas pela diretora criança e seus irmãos, em que vemos o cotidiano da família antes do acidente. O conflito entre o pacato e alegre dia a dia da família antes da explosão e a força das imagens caseiras de Río Tercero arrasada após o acidente nos dão um contraste pessoal e uma forte impressão do que essa tragédia significou para a vida de toda sua família. Ao mesmo tempo, as cenas feitas por meio de uma câmera caseira dão um tom extremamente particular e orgânico às imagens e ampliam a sensação subjetiva do olhar da diretora diante da tragédia.

As imagens não captadas pela câmera da família, as de arquivo e as cenas feitas por Garayalde nos anos 2010, bem como suas falas em off, nos jogam da visão pessoal e íntima das imagens caseiras antes e depois do acidente à contextualização do que foi essa tragédia: uma explosão proposital para tentar esconder o contrabando que o governo argentino de Carlos Menen  fazia dessas munições com a Croácia em plena Guerra dos Balcãs.

‘Estilhaços’ é um documentário que consegue o grande mérito de tratar de um evento traumático da história argentina por meio de uma extrema pessoalidade e presença da realizadora no meio onde a tragédia ocorreu (bem como ela se materializa nas imagens caseiras que registrou enquanto criança) e Garayalde mostra grande talento na precisa utilização e escolhas das imagens, indo da intimidade de sua família à contextualização geral dos acidentes, bem como retoma duas décadas depois os efeitos da explosão, como o câncer que matou sua irmã e que também acometeu seu pai – câncer esse fruto da contaminação química provocada pelas explosões.

Comentei aqui os filmes que assisti e gostei, os que achei ruim ou apenas medianos foram deixados de fora. Também não tive como assistir à alguns títulos que foram elogiados por colegas críticos que tenho grande consideração, como o longa iraniano Crime Culposo e o argentino Esqui. Infelizmente não consegui assistir aos novos filmes de dois realizadores brasileiros que gosto muito, O Dia da Posse, de Allan Ribeiro e O Bom Cinema, de Eugênio Puppo.

Os 20 Melhores Filmes dos anos 1990 (+24 menções)

Por Fernando Oriente

Aqui está a lista com meus 20 filmes de longa-metragem favoritos da década de 1990 (+ 22 filmes em menção). Aproveito para fazer uma nova publicação aqui no blog, já que minhas pesquisas e trabalhos têm me impedido de escrever mais para esse espaço. Em breve retornarei com a publicação de novas críticas, artigos e ensaios. Agora a lista dos anos 1990:

  1. “Nouvelle Vague”, de Jean-Luc Godard (França, 1990)
  2. “Van Gogh”, de Maurice Pialat (França, 1991)
  3. “Um Dia Quente de Verão”, de Edward Yang (Taiwan, 1991)
  4. “Vive L’Amour”, de Tsai Ming Liang (Taiwan, 1994)
  5. “Carlito’s Way” (O Pagamento Final), de Brian De Palma (EUA, 1993)
  6. “A Bela Intrigante” (La Belle Noiseuse), de Jacques Rivette (França, 1991)
  7. “Blackout”, de Abel Ferrara. (EUA, 1997)
  8. “O Vale Abraão”, de Manoel de Oliveira (Portugal, 1993)
  9. “Satantango”, de Béla Tarr (Hungria, 1994)
  10. “Crash”, de David Cronenberg (Canadá, 1996)
  11. “Beau Travail”, de Claire Denis (França, 1999)
  12. “Drácula, de Bram Stoker”, de Francis Ford Coppola (EUA, 1992)
  13. E a Vida ContinuaA Vida e Nada Mais “, de Abbas Kiarostami (Irã, 1992)
  14. “A Comédia de Deus”, de João César Monteiro (Portugal, 1995)
  15. “Antígona”, de Jean-Marie Straub e Danièle Huillet (Alemanha, 1992)
  16. “A Enguia”, de Shohei Imamura (Japão, 1997)
  17. “A Perfect World” (Um Mundo Perfeito), de Clint Eastwood (EUA, 1993)
  18. “La Naissance de L’Amour”, de Philippe Garrel (França, 1992)
  19. “Alma Corsária”, de Carlos Reichenbach (Brasil, 1993)
  20.  “Showgirls”, de Paul Verhoeven (EUA, 1995)

+ 24 Menções – Filmes que poderiam estar entre os 20

  • “Céline”, de Jean-Claude Brisseau (França,1992)
  • “Conto de Verão”, de Eric Rhomer (França, 1996)
  • “La Cérémonie” (Mulheres Diabólicas), de Claude Chabrol (França, 1995)
  • “A Estrada Perdida” (Lost Highway) de David Lynch (EUA, 1997)
  • “Hana-Bi”, de Takeshi Kitano (Japão, 1997)
  • “Caro Diário”, de Nanni Moretti (Itália, 1993)
  • “Flores de Xangai”, de Hou Hsiao-Hsien (Taiwan, 1998)
  • “Ossos”, de Pedro Costa (Portugal, 1997)
  • A Garota da Fábrica de Caixa de Fósforos“, de Aki Kaurismäki. (Finlândia, 1990)
  • “Tudo É Brasil”, de Rogério Sganzerla (Brasil, 1997)
  • “Do Leste”, de Chantal Akerman (Bélgica/França, 1993)
  • “O Viajante”, de Paulo César Saraceni (Brasil, 1998)
  • “Heat” (Fogo Contra Fogo), de Michael Mann (EUA, 1995)
  • “São Gerônimo”, de Júlio Bressane (Brasil, 1999)
  • “Vampiros”, de John Carpenter (EUA, 1998)
  • “Cure”, de Kiyoshi Kurosawa (Japão, 1997)
  • “Los Náufragos”, de Miguel Littin (Chile, 1994)
  • “Casino”, de Martin Scorsese (EUA, 1995)
  • “A Carne”, de Marco Ferreri (Itália, 1991)
  • “O Vigilante”,  de Ozualdo Candeias (Brasil, 1992)
  • “Les Amants du Pont-Neuf”,  de Leos Carax (França, 1991)
  • “Tiros da Broadway”, de Woody Allen (EUA, 1994)
  • “A Viagem”, de Fernando Solanas (Argentina, 1992)
  • “Audition”, de Takashi Miike (Japão, 1999)

*A lista foi feita a pedido de Pedro Lovallo para uma pesquisa com diversos críticos sobre o cinema dos anos 1990.

**Decidi colocar apenas um filme por diretor, para tornar a lista mais ampla na variedade de filmes.

‘Nouvelle Vague’, de Jean-Luc Godard

Os 20 melhores filmes de 2020

Por Fernando Oriente

Em um ano absurdo – com salas de cinema fechadas, eventos cinematográficos cancelados, festivais e mostras acontecendo online e filmes lançados direto em streaming ou VOD – a lista de melhores do ano do Tudo Vai Bem sofreu mudanças radicais na seleção dos títulos. Em primeiro lugar, não tive como assistir a alguns títulos lançados ao longo do ano que me parecem muito bons, por outro lado a oferta de filmes online ou em streaming aumentou como nunca. Resumindo, a lista dos melhores de 2020 do blog inclui filmes lançados no cinema – antes e depois do fechamento total das salas – e títulos vistos nos mais variados suportes, do streaming à TV.

Um quesito foi fundamental, incluí apenas filmes que tiveram sua primeira exibição no mundo em 2020 e alguns em 2019. Com um número maior de obras “selecionáveis”, a lista conta com 20 filmes na ordem – mais ou menos e até o momento – da minha preferência. Essa maior liberdade na escolha dos títulos faz com que os filmes dessa lista sejam excelentes ou, no mínimo, muito bons.

‘Vitalina Varela’, de Pedro Costa, só não está em primeiro lugar porque assisti em 2019 em uma sessão presencial em Belo Horizonte programada pela Zeta Filmes, que é a distribuidora do filme no Brasil. Essa obra-prima, último longa de Costa, foi exibida online ao longo de 2020 no país, dentro do Indie Festival e em outras ocasiões especiais.

Os 20 melhores filmes de 2020

  1. ‘Dias – Days’, de Tsai Ming Liang. (Taiwan)
  2. ‘The Woman Who Ran’ de Hong Sang-soo. (Coréia do Sul)
  3. ‘Liberté’, de Albert Serra. (França/Alemanha)
  4. ‘O Ano do Descobrimento’, de Luis López Carrasco. (Espanha)
  5. ‘Luz  nos Trópicos’, de Paula Gaitán. (Brasil)
  6. ‘O Caso Richard Jewell’, de Clint Eastwood. (EUA)
  7. ‘City Hall’, de Frederick Wiseman. (EUA)
  8. ‘Le Sel des Larmes – O Sal das Lágrimas’, de Philippe Garrel. (França)
  9. ‘Lua Vermelha’, de Lois Patiño. (Espanha)
  10. ‘Os Sonâmbulos’, de Tiago Mata Machado. (Brasil)
  11. ‘First Cow’,  de Kelly Reichardt. (EUA)
  12. ‘Fourteen’, de Dan Sallitt. (EUA)
  13. ‘Responsabilidade Empresarial’, de Jonathan Perel. (Argentina)
  14. ‘Retrato de Uma Jovem Em Chamas’, de Céline Sciamma. (França)
  15. ‘Los Conductos’, de Camilo Restrepo. (Colômbia)
  16. ‘Sibéria’, de Abel Ferrara. (Itália)
  17. ‘Nariz Sangrando, Bolsos Vazios’, de Bill Ross IV e Turner Ross. (EUA)
  18. ‘Canto dos Ossos’, de Jorge Polo e Petrus de Bairros. (Brasil)
  19. ‘Não Haverá Mais Noite’, de Éléonore Weber. (França)
  20. ‘Yãmiyhex – As Mulheres-Espírito’, de Sueli Maxakali e Isael Maxakali. (Brasil)

‘Dias – Days’, de Tsai Ming Liang

Top 10 Brian De Palma – meus (11) filmes preferidos desse gênio

Por Fernando Oriente

Segue a lista dos meus 11 filmes preferidos de Brian De Palma. O onze é por causa do empate de dois longas na primeira posição. Esse é o primeiro top 10 de um cineasta que publico (me sinto aqui meio como meu amigo Sérgio Alpendre e suas constantes e incríveis listas dos 10 mais de seus cineastas favoritos). Brian De Palma é o melhor cineasta americano surgido nos últimos 50 anos (talvez ao lado de Abel Ferrara e Michael Cimino) e um dos dez melhores realizadores da história do cinema mundial.

Segue a relação, por ordem de preferência, dos meus filmes favoritos de De Palma:

  1. ‘O Pagamento Final’ (Carlito’s Way), 1993 / ‘Síndrome de Caim’ (Raising Cain),  1992
  2. ‘Blow Out – Um Tiro na Noite’ (Blow Out), 1981
  3. ‘Carrie’ (Idem), 1976
  4. ‘Trágica Obsessão’ (Obsession), 1976
  5. ‘Vestida para Matar’ (Dressed to Kill), 1980
  6. ‘Femme Fatale’ (Idem), 2002
  7. ‘Dublê de Corpo’ (Body Double), 1984
  8. ‘Missão: Impossível’ (Mission: Impossible), 1996
  9. ‘A Fogueira das Vaidades’ (Bonfire of the Vanities), 1990
  10. ‘Redacted – Guerra Sem Cortes (Redacted), 2007

Nessa lista só constam obras-primas. E alguns filmes do De Palam, por pouco, não entraram entre esses 11 preferidos. São eles: ‘Olhos de Serpente’ (Snake Eyes), 1998, ‘A Fúria’ (The Fury), 1978, ‘Irmãs Diabólicas’ (Sisters), 1972, ‘Pecados Guerra’ (Casualties of War), 1989, ‘Passion’, (Idem), 2012 e ‘Os Intocáveis’(The Untouchables), 1987. Isso sem contar que alguns outros longas realizados por ele, mesmo não tendo o nível desses que já citei, também são ótimos. Afinal de contas, se trata de Brian De Palma.

‘O Pagamento Final – Carlito’s Way’

9º Olhar de Cinema: Breves (e outros não tão breves) comentários sobre alguns dos filmes exibidos na edição online de 2020

‘Luz nos Trópicos’, de Paula Gaitán

O longa de Paula atinge e supera toda a enorme ambição do projeto. Só se pode realmente escrever algo sólido sobre esse filme único se a ele se retornar. Por aqui, apenas algumas observações.

Impressiona a liberdade da câmera da diretora, que explora todas as possibilidades indiciais da imagem. Imagens que se pautam e constroem numa observação sensual, sensorial e poética dos espaços (da natureza viva  e quente da região pantaneira do Xingu aos espaços urbanos de concreto, aço, asfalto e vidro de Nova Iorque, bem como ambientes naturais gelados de rios, lagos e bosques no interior dos EUA).

A liberdade discursiva do filme se desdobra constantemente, seguindo os fluxos das águas dos rios que cruzam o continente americano, desde o frio estadunidense ao calor dos trópicos do Xingu. A câmera da Paula não se impõem limites ou regras, registra tudo de todas as formas e sempre em função da luz – dos espaços abertos onde personagens transitam aos detalhes de corpos, objetos, plantas, águas, animais, ruas, casas e prédios. Natureza e civilização.

A questão do pertencimento aos espaços e à natureza em que os personagens (europeus, estadunidenses, mestiços brasileiros, indígenas) se encontram e na qual se fundem, se perdem ou se encontram é central na relação que diretora constrói entre os corpos e os ambientes que acolhem esses sujeitos . Só as comunidades indígenas apresentam uma real comunhão entre seus seres com a Natureza onde vivem.

Os rios que conduzem sujeitos desterrados a diferentes locais geográficos são os mesmos rios que ligam diferentes tempos históricos, diferentes povos, diferentes culturas. A transitoriedade do ser humano em constante contraste com a continuidade e a permanência da Natureza.

Os dois fios narrativos que conduzem a primeira metade do filme são interrompidos, quando um personagem (presente na segunda narrativa: a expedição de europeus à região do Pantanal no século XIX) atravessa o tempo e se funde ao presente dos dias de hoje no qual retornou o desterrado em busca de sua ancestralidade indígena, personagem da primeira narrativa que abre ‘Luz nos Trópicos’.

A segunda metade do longa é um exercício brilhante de montagem livre que paralelamente intercala registros de personagens deslocados e em permanente movimento na metrópole americana e nos espaços de natureza gelada do hemisfério norte com cenas do Pantanal, de comunidades indígenas do Xingu, bem como introduz cenas alegóricas e situações oníricas.

Distintos registros – digital, super 8, 16mm, fotografias, pinturas, desenhos e imagens de arquivo (cenas do primeiro longa de Paula Gaitán, ‘Uaká’, filmado no Xingu em 1987) – são intercalados com textos em voz over, em diferentes idiomas, que penetram a cena e ampliam seu espalho diegético-temporal.

A montagem da banda sonora é tão potente quanto as imagens – sons, ruídos, vozes, textos, cantos e música que constantemente dialogam e interagem dialeticamente com o campo imagético e remetem ao enorme extracampo que o filme não para, em momento algum, de tensionar.

‘Luz nos Trópicos’ é um filme que se dá ao olhar e à escuta como matéria heterogênea, com camadas e mais camadas de sobreposições espaciais, temporais, visuais e sonoras. Mas, ao mesmo tempo, é um longa em que o fazer cinema, o construir do cinemático como processo criador está presente em cada plano e vai além do filme após o termino da projeção – uma constante presença do cinema como processo, como devir imagem-som que se dá no filme como matéria e se prolonga no espectador durante o ato de assistir e depois como memória ativa daquilo que foi visto e ouvido.

Um filme que usa todas as possibilidades do cinema para criar uma experiência inclassificável e incontornável de imagens e sons belíssimos e alternâncias constantes – espaciais, temporais e materiais – de ritmo e fruição. Mais um filme extraordinário de Paula Gaitán.

‘Los Conductos’, de Camilo Restrepo

O primeiro longa do colombiano Restrepo, filmado em 16mm, é um filme impressionante, desconcertante, que desestabiliza, provoca e instiga o olhar a cada cena.

Uma construção formal e discursiva que penetra a realidade colombiana pelas fissuras, pelo que não é dado de imediato, pelo que que está na imagem e por tudo o que está além das imagens – em tudo aquilo que essas imagens são incapazes de dar e representar.

Uma força impressionante surge dos cortes secos, que unem planos sintéticos de registros realistas que materializam as ações na superfície da tela – achatando sempre a profundidade de campo e trazendo, por meio de fragmentos, uma recriação direta e seca da  realidade dos marginalizados, explorados e excluídos que vivem nos cantos, nas periferias e nos escombros de uma Medelín caótica.

Mas o registro realista é insuficiente para o painel que Restrepo quer criar do cotidiano colombiano, por isso chega um momento em que o filme abandona o realismo e passa a sequências alegóricas – num misto entre o onírico e o simbólico que representam e ultrapassam a realidade dada. Essas cenas também se dão em planos curtos unidos pelos mesmos potentes cortes secos. O filme todo é pontuado pela narração em off dos dois personagens centrais e em suas falas, lembranças e relatos estão presentes tanto os comentários diretos sobre o real recriado nas imagens que compõem a maior parte do filme, quanto as simbologias e metáforas presentes nas sequências alegóricas finais.

Todo esse processo de construção híbrido e aberto do discurso de ‘Los Conductos’ interagem de maneira sensorial e disruptiva com o espectador e projeta uma percepção de um universo que se dá nas imagens mas que vai muito além delas.

Um dos grandes filmes do ano.

‘O Ano do Descobrimento’, de Luis López Carrasco

O filme, do cineasta espanhol Carrasco, tem como tema central o Trabalho. Coisa rara no cinema de hoje.

Toda a impressionante construção do discurso do longa é baseada nas falas, seja nos diálogos, seja nos depoimentos. Um painel amplo sobre as transformações impostas à classe trabalhadora nos últimos 45 anos. A perda da estabilidade, o crescimento vertiginoso do desemprego e dos subempregos, a intensificação da exploração do trabalho vivo. A sujeição completa da Espanha ao poder central da União Europeia, com a Alemanha (e seus aliados mais fortes como a França) comandando os destinos de toda nação espanhola.

O quadro dividido ao meio em duas janelas simultâneas, uma decisão formal poderosa que amplifica a sensação de ruptura do tecido social e torna ainda mais forte o sentimento de fratura dos trabalhadores.

Um registro que busca resumir a totalidade e a amplitude do avanço do liberalismo econômico na Europa e como isso afetou e afeta cada vez mais a classe trabalhadora espanhola (assim como da maioria dos países europeus) gerando a ampliação da perda de estabilidade no trabalho, o crescimento vertiginoso do desemprego e dos subempregos.

O filme dá voz aos jovens, aos velhos e nessa mistura da resignação da juventude se contrapõe o sentimento de melancolia e de derrota dos mais velhos que lutaram contra o franquismo e combateram contra os desmontes do setor industrial na região da cidade da Cartagena.

Uma felicíssima escolha do ano de 1992 como divisor de águas na luta operária – ano em que em que as últimas grandes manifestações de trabalhadores unidos e com consciência de classe tomaram as ruas de Cartagena por centenas de dia, enfrentaram a polícia e queimaram a Assembleia Legislativa da cidade.

Mesmo ano em que a Espanha tentava se vender ao mundo como moderna e globalizada, sediando os Jogos Olímpicos de Barcelona e a Expo Sevilha – para comemorar os 500 anos do “descobrimento” da América.

Todos os planos são fechados, onde o rosto das pessoas filmadas saltam à superfície da tela e ampliam a força de suas falas ou reverberam as suas expressões e sentimentos enquanto participam dos diálogos, escutam ou simplesmente se mantém calados em contemplação. Juntam-se a isso imagens de arquivo das manifestações de 1992 e trechos de telejornais e propagandas de TV.

Toda a ação se passa dentro de um bar, café e restaurante e dentro de espaço extremamente restrito todo um universo de questões do trabalho, da economia, da política, da consciência de classe, os ecos do passado franquista, da luta contra o fascismo, da resistência dos trabalhadores no início dos anos 1990 e do desmonte da segurança do trabalho convivem em constante dialética.

Escrevo no calor do momento, como alguém que acaba de passar pela experiência fantástica de assistir a um longa dessa magnitude. Muito mais pode ser dito sobre essa obra fundamental, mas aqui me falta espaço;

Para resumir: ‘O Ano do Descobrimento’ é um filme imenso.

‘Responsabilidade Empresarial’, de Jonathan Perel

O ótimo documentário é fundamental para todos nós latino-americanos. O longa do diretor argentino expõe enfaticamente (e usando excelentes escolhas formais e narrativas) a responsabilidade e a parceria dos setores empresarias (nacionais e multinacionais) na ditadura empresarial-militar na Argentina dos anos 1970-80, algo que ocorreu da mesma forma em nosso continente ao longo do século XX e mantêm muitas sequelas nos dias atuais em nossos países.

O filme se torna ainda melhor para quem leu o fundamental livro de René Dreifuss, “1964 A Conquista do Estado”, que retrata de maneira primorosa as ligações do setor empresarial (nacional e multinacional) associado ao imperialismo estadunidense no golpe de 1964 no Brasil. O Brasil reflete a Argentina e vice e versa.

‘A Metamorfose dos Pássaros’, de Catarina Vasconcelos

O primeiro longa da diretora portuguesa é um belíssimo exercício da fabulação da memória em imagens e textos. As lembranças da vida da família de Catarina Vasconcelos são encenadas e narradas por vozes em off. Desde o casamento de seus avós até os dias de hoje, tudo é rememorado e fabulado em cenas que exploram a poética dos planos fixos, em tableaux onde circulam personagens do passado e do presente, em que pequenos gestos são filmados em planos fechados, ressaltando os afetos que cada gesto contém. Um filme em que a presença da morte e da vida, do nascimento e da finitude são constantemente comparadas à Natureza. A figura da mãe se materializa na natureza, nas plantas. A relação dos seres humanos é refratada na terra, no mar e no céu; nas árvores, folhas e flores – por isso as constantes imagens dessa natureza entram como espaço portador das recordações daquilo que foi sentido, da dor da perda daqueles que se foram; os afetos que deixaram marcas nas pessoas se transportam, como representação, para a materialidade das plantas, das águas, das montanhas e do céu – tudo o que está ao lado e envolve os personagens como espaço sensorial e táctil, mas que vai além da existência dos sujeitos.

A casa dos avós como ambiente vivo, por onde circulam personagens em seu passado, aqueles que já morreram e os que cresceram e envelheceram, local em que o tempo se estende do passado ao presente, na presença dos objetos, na luz que penetra e moldura os ambientes dessa casa-personagem recipiente da memória e da passagem do tempo.

O filme perde parte da força na segunda metadade, quando Catarina abusa das imagens da Natureza e do excesso de cálculo para torná-las sempre belas. Esse mecanismo optado pela direta atravanca o fluxo do filme, que se engessa demais numa forma muito calculada de potencializar o esplendor visual do que ela põe na tela. E as próprias palavras narradas também perdem sua força, no choque com o excesso de beleza calculada. Catarina Vasconcelos recupera-se na parte final, quando volta a inserir os tipos humanos e a casa de seus avós em cena, momentos em que os textos em off acompanham esse crescimento do discurso no longa.

‘A Metamorfose dos Pássaros’ oferece aquilo que pode ser classificado como cinema de poesia, onde a memória se materializa nas cenas recriadas de lembranças fragmentadas, nas vozes que invadem os planos para narrar o que se passou, ou o que se imagina que aconteceu. Mas o filme trata a memória como recriação, em que fatos que ocorreram são apenas fiapos de lembranças, em que tudo o que não pode ser lembrado é inventado. A memória como fabulação e invenção do passado. Lembrar é um constante fabular, é recriação ficcional de um passado impossível de ser percebido e contido como matéria dada, em que muito do que se perdeu é idealizado, para que o que resta de verdade desse passado seja ampliado em afetos fabulares. E Catarina Vasconcelos traz um caleidoscópio de lembranças e as condensa em uma sequência de livre fruição de imagens-metáfora, imagens-representação, imagens-alegoria, imagens-fragmento. Todas mediadas pelos constantes textos em off, nas diferentes vozes que se relacionam com tudo que se dá plano e se estendem para além do quadro. Um belo longa de estreia.

‘Pajeú’, de Pedro Diógenes

‘Pajeú e mais um ótimo filme de Pedro Diógenes, que já se consolidou como um dos melhores realizadores do Brasil em uma década de trabalho, desde seu início de carreira dentro do coletivo Alumbramento.

O longa funde uma narrativa ficcional com diversas intromissões: documentais, fantásticas ou simbólicas que tratam tanto da cidade de Fortaleza como personagem em constante mutação como do microcosmos da protagonista.

A professora primaria Maristela, em meio a uma crise de ansiedade e angústia que a faz se isolar cada vez mais dos amigos, torna-se obcecada pelo riacho Pajeú, que corta a cidade de Fortaleza e hoje e se encontra canalizado e soterrado, correndo pelos subterrâneos da cidade e deixando-se ver em pequenos pedaços em diferentes pontos da capital cearense. Poluído e constantemente alterado se seu curso natural, o riacho sobrevive nas entranhas desse corpo urbano em expansão.

Maristela passa a ter pesadelos com o Pajeú, que se transforma, em seus sonhos, em um monstro de lixo e poluição. A ficção do filme passa a acompanhar sua protagonista numa jornada em que ela tenta percorrer o curso desse riacho. Nessa marcha ela cruza grande parte da cidade, que vai se revelando ao filme em seus espaços ocultos, em seus fragmentos e suas brechas. Ela passa a se encontrar com pessoas reais –  a ficção é invadida e partilhada na sua construção discursiva com os registros documentais. Esses desconhecidos, habitantes anônimos de uma cidade enorme,  falam sobre o riacho e os efeitos negativos de sua canalização para que mora ou trabalha próximo ao seu curso subterrâneo.

A curiosidade e a obsessão da personagem ficcional faz com que ela recuse, dentro do corpo do filme, a ficar presa ou limitada à ficção e a força a interagir de maneira cada mais documental com tipos reais dentro da cidade real. Essa nova evolução discursiva do filme conduz Maristela a se encontrar com pesquisadores reais, que estudam o Pajeú e as transformações em seu curso desde a fundação de Fortaleza no século XVII, bem com a leva a entrevistar, aleatoriamente, pessoas numa praia, que começam a falar sobre seu (des)conhecimento sobre riacho e, então, passam a responder questões existências que a personagem Maristela faz a elas (que servem como auxílio a suas próprias angústias subjetivas – dentro da ficção). A partir desse momento, ela passa a agir como se fosse uma entrevistadora de um documentário. Nesse trecho das entrevistas na praia, ‘Pajeú’ remete à ‘Crônica de um Verão’, documentário de Chris Marker e Edgard Morin, lançado em 1960. Nesse filme, Marker e Morin interpelam e entrevistam pessoas que passam nas ruas de Paris e lhes fazem perguntas existenciais, como “você é feliz?”

Mas o longa de Diógenes não é nada esquemático, a mistura documentário/ficção nunca é explicita ou fácil de se definir; é sempre questionada e expandida, invadida por outras formas de representação. A ficção realista, intercalada com os momentos documentais, é também interpelada por sequências fantásticas (os pesadelos e delírios de Maristela com o riacho) ou por cenas catárticas (como passagem no bar de karaokê). O percurso ficcional e documental de Maristela no desenrolar do filme desvelam tanto as entranhas e mutações de uma cidade do tamanho de Fortaleza como o íntimo da protagonista, seus medos, angústias, esperanças e incertezas. Ao longo de tudo isso, o discurso em construção de ‘Pajeú’ introduz as relações de Maristela com as pessoas próximas que conhece bem (personas ficcionais) e com os desconhecidos (os tipos “reais”) que encontra em sua trajetória de tentar descobrir, não apenas o curso do riacho canalizado Pajeú, mas também sobre ela mesma e seu estar no mundo.

Um belíssimo exercício de cinema que usa e abusa de tensionamentos no dispositivo.

‘O Índio Cor de Rosa Contra a Fera Invisível: A Peleja de Noel Nutels’, de Tiago Carvalho 

Um trabalho excepcional de montagem, tanto de som quanto de imagem. Um registro de ruínas, resíduos e rastros da história do nosso país, que se projetam e ecoam de maneira intensa nos dias hoje.

Belíssimo.

‘Los Lobos’, de Samuel Kishi Leopo

Segundo longa do realizador mexicano Samuel Kishi é baseado nas memórias de infância do diretor. Um retrato da migração forçada por causas econômicas que joga uma mãe e seus dois filhos crianças em uma cidade no Novo México, EUA. A super exploração da força de trabalho da mãe é tão forte no filme quanto a penúria, a melancolia e o isolamento das duas crianças encerradas dentro de um quarto alugado paupérrimo.

Amargo e poderoso (mas com breves e belos momentos de fuga e ternura) retratado do triste destino de milhões de latino-americanos que são empurrados a uma desterritorialização em busca de dinheiro, do dólar, da esperança de fugir da miséria para serem explorados e marginalizados nos quintais de um espaço que é a pura materialização da deterioração do sonho americano.

‘Longa Noite’, de Eloy Enciso

O longa do galego Eloy Enciso vem despertando amor e ódio em críticos de alto nível por todos os cantos.

Uma estrutura formal muito rígida, como proposta estética central, oferece aberturas para se penetrar no tecido do filme. A questão está em aceitar essa entrada e sentir aquilo que o filme propõe, no rigor dos textos, das falas (diegéticas ou em voz over) e na relação dos corpos dispostos no quadro de maneira meticulosa, mais como corpos-espectro do que peronas naturais ao espaço cênico.

A memória dos primeiros anos após a Guerra Civil espanhola, a relação ambígua em se aceitar o fascismo de Franco recém imposto ao país – as noções de ordem, poder e submissão que esse regime carrega. Ou se recusar a esse estado de coisas que anula os indivíduos e os torna seres-autômatos que agem mecanicamente, rejeitam suas subjetivações em detrimento a uma vida-morta que os joga na sujeição.

Memórias dos que lutaram contra o fascismo e perderam; suas lembranças dos próprios sofrimentos e torturas e das pessoas próximas que foram mortas, presas ou se exilaram.

A presença daqueles que aceitam e exaltam (ou se mantém passivos) a obediência cega ao novo líder supremo da ordem castradora, em que a desigualdade social é fato dado e impossível de ser alterado.

Tudo isso dentro de uma encenação muito rigorosa e formalista. O uso constante dos campos e contra-campos em todos os diálogos, o antinaturalismo na mise-en-scène contrastando a fragilidade desses corpos e sua relação com os espaços vivos onde se prostram ou, como no caso do protagonista, se põe em movimento constante em direção a um destino desconhecido.

Eu fico com os que penetraram o filme e gostaram dessa jornada e de sua proposta, mesmo com suas imperfeições e excessos de formalismo.

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Ressalto, também,  a presença na programação do festival de um filme incrível que pretendo futuramente voltar a ele: ‘O Tango do Viúvo e seu Espelho Deformador’, que mescla rolos do primeiro longa de Raúl Ruiz (rodados em 1967, ainda no Chile), recém-encontrados e completados por sua viúva, a cineasta e montadora de inúmeros de seus filmes,  Valeria Sarmiento. Uma exuberante experiência em que se fundem imagens mudas –  captadas há décadas e deixadas incompletas – com toda a banda sonora. falas textos, ruídos e trilha sonora, acrescentada em 2019, bem como todo um processo de montagem que interfere radicalmente nos planos encontrado. Esse material híbrido, além de criar um diálogo com a obra enorme de Ruiz,  se materializa na tela em um ensaio contemporâneo que mistura cacos ficcionais distantes do tempo presente com novos instantes reflexivos.

Para finalizar, resta dizer o quão bom foi o processo de curadoria do 9º Olhar de Cinema na escolha  da qualidade dos filmes da programação. Todos os que aqui foram comentados nesse texto tiveram no Olhar sua primeira exibição no Brasil. Mas vale lembrar que o Olhar 2020 ofereceu importantes filmes contemporâneos exibidos recentemente no país em outras mostras e festivais, como  os ótimos ‘O Canto dos Ossos’, de Jorge Polo e Petrus de Bairros e ‘Yãmiyhex – As Mulheres-Espírito’ de Sueli Maxakali e Isael Maxakali e o muito bom ‘Cabeça de Nêgo’, de Déo Cardoso.

Os 30 melhores filmes da década – 2010 a 2019

Por Fernando Oriente

Aqui está a minha lista com os 30 melhores filmes da década – 2010 a 2019. Foram considerados todos os filmes vistos e revistos por mim e que foram lançados no mundo ao longo desses anos, independente de terem estreado no Brasil. Os anos de lançamento são relativos às primeiras exibições de cada filme, sendo em festivais, mostras ou estreias ao redor do mundo.

Muitos filmes, após serem revistos, cresceram muito para mim, por isso essa lista não segue ordem de preferência que estão nas muitas listas de melhores do ano publicadas aqui no Tudo Vai Bem.

Os 30 Melhores Filmes da Década – 2010 a 2019

  1. “Adeus à Linguagem”, de Jean-Luc Godard. 2014. (França/Suíça) – leia a crítica
  2. “Cavalo Dinheiro”, de Pedro Costa. 2014. (Portugal) – leia a crítica
  3. “Vitalina Varela”, de Pedro Costa. 2019. (Portugal)
  4. “Film Socialisme”, de Jean-Luc Godard. 2010. (França/Suíça) – leia a crítica
  5. “Imagem e Palavra”, de Jean-Luc Godard. 2018. (França/Suíça) – leia a crítica
  6. “A Vingança de Uma Mulher”, de Rita Azevedo Gomes. 2012. (Portugal)
  7. “O Homem Que Não Dormia”, de Edgard Navarro. 2011. (Brasil)
  8. “Minha Mãe”, de Nanni Moretti. 2015. (Itália) – leia a crítica
  9. “Educação Sentimental”, de Julio Bressane. 2013. (Brasil)
  10. “Cães Errantes”, de Tsai Ming-Liang. 2013. (Taiwan) e “Holy Motors”, de Leos Carax. 2012. (França)

  11. “Bem Vindo a Nova York”, de Abel Ferrara. 2014. (EUA) – leia a crítica
  12. “Na Praia a Noite Sozinha”, de Hong Sang-soo. 2017. (Coréia do Sul) – leia a crítica
  13. “O Gebo e a Sombra”, de Manoel de Oliveira”. 2012. (França/Portugal)
  14. “A Portuguesa”, de Rita Azevedo Gomes. 2018. (Portugal)
  15. “A Assassina”, de Hou Hsiao Hsien. 2015. (Taiwan) – leia a crítica
  16. “O Cavalo de Turim”, de Belá Tarr. 2011. (Hungria) – leia a crítica
  17. “La Sapienza”, de Eugene Green. 2014. (França) – leia a crítica
  18. “La Fille de Nulle Part”, de Jean-Claude Brisseau. 2012. (França)
  19. “O Ciúme”, de Philippe Garrel. 2013. (França) – leia a crítica
  20. “Zama”, de Lucrecia Martel. 2017. (Argentina/Brasil) – leia a crítica

  21. “A Mula”, de Clint Eastwood. 2018. (EUA)
  22. “Amanda”, de Mikhaël Hers. 2018. (França) – leia a crítica
  23. “O Som ao Redor”, de Kléber Mendonça Filho. 2012. (Brasil)
  24. “Elle”, de Paul Verhoeven. 2016. (França) – leia a crítica
  25. “A Academia das Musas”, de José Luis Guerín. 2015. (Espanha) – leia a crítica
  26. “Cemitério do Esplendor”, de Apichatpong Weerasethakul. 2015. (Tailândia) – leia a crítica
  27. “O Dia Depois”, de Hong Sang-soo. 2017. (Coréia do Sul)
  28. “Guerra do Paraguay”, de Luiz Rosemberg Filho. 2016. (Brasil)leia a crítica
  29. “Amar, Beber e Cantar”, de Alain Resnais. 2014. (França) – leia a crítica
  30. “Era Uma Vez Em…Hollywood”, de Quentin Tarantino. 2019. (EUA)

Menção especial:

  • “Twin Peaks – temporada 3 – O Retorno”, de David Lynch. 2017. (EUA) – leia a crítica
  • “The Other Side of the Wind”, de Orson Welles. 2018. (França/EUA)

Adeus à Linguagem

“Adeus à Linguagem”, de Jean-Luc Godard

Os 10 melhores filmes de 2019

Por Fernando Oriente

Aqui está a lista dos dez melhores filmes que estrearam em São Paulo (e algumas outras capitais e cidades do Brasil) em 2019, na opinião do Tudo Vai Bem. Estão incluídos apenas filmes inéditos e recentes. Não considerei exibições de filmes em mostras, sessões especiais ou festivais.

 Alguns filmes, após revisões, mudaram levemente de posição em relação à lista dos melhores do primeiro semestre desse ano.

Os 10 melhores filmes de 2019

  1. ‘Imagem e Palavra’, de Jean-Luc Godard. (França/Suíça) (leia crítica)
  2. ‘Amanda’ de Mikhaël Hers. (França) (leia crítica)
  3. ‘Em Trânsito’, de Christian Petzold. (Alemanha) (leia crítica)
  4. ‘O Paraíso Deve Ser Aqui’, de Elia Suleiman. (Palestina)
  5. ‘A Mula’, de Clint Eastwood. (EUA)
  6. ‘Abaixo a Gravidade’, de Edgard Navarro. (Brasil) (leia crítica)
  7. ‘No Coração do Mundo’, de Gabriel Martins e Maurílio Martins. (Brasil)
  8. ‘Temporada’, de André Novais Oliveira. (Brasil) (leia crítica)
  9. ‘Bacurau’, de Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles. (Brasil)
  10. ‘Ad Astra’, de James Gray. (EUA)

Como o ano teve um nível um pouco acima da média em relação a boas estreias, fechar a lista foi tarefa difícil, por isso incluo mais cinco filmes que entraram em cartaz ao logo de 2019 e considero muito bons, lembrando que acabaram ficando de fora alguns outros belos longas:

  • ‘Inferninho’, de Guto Parente e Pedro Diogenes. (Brasil)
  • ‘Era Uma Vem Em…Hollywood’, de Quentin Tarantino. (EUA)
  • ‘O Irlandês’, de Martin Scorsese. (EUA)
  • ‘O Fim da Viagem, O Começo de Tudo’, de Kiyoshi Kurosawa. (Japão)
  • ‘A Noite Amarela’, de Ramon Porto Mota. (Brasil)

Le Livre d'Image

‘Imagem e Palavra’, de Jean-Luc Godard

Os 10 melhores filmes do primeiro semestre de 2019

Por Fernando Oriente

Aqui está a lista dos dez melhores filmes que estrearam em São Paulo entre a primeira semana de janeiro e a última semana de junho de 2019, na opinião do Tudo Vai Bem. Estão incluídos apenas filmes inéditos e recentes. Não considerei lançamentos de filmes em cópias restauradas, mostras, sessões especiais ou festivais.

Os 10 melhores filmes do primeiro semestre de 2019

  1.  ‘Imagem e Palavra’, de Jean-Luc Godard. (França/Suíça) (leia crítica)
  2. ‘Em Trânsito’, de Christian Petzold. (Alemanha) (leia crítica)
  3. ‘Amanda’ de Mikhaël Hers. (França) (leia crítica)
  4. ‘Temporada’, de André Novais Oliveira. (Brasil) (leia crítica)
  5. ‘A Mula’, de Clint Eastwood. (EUA)
  6. ‘Inferninho’, de Guto Parente e Pedro Diogenes. (Brasil)
  7. ‘Nós’, de Jordan Peele. (EUA)
  8. ‘Santiago, Itália’, de Nanni Moretti. (Itália/Chile)
  9. ‘John Wick 3: Parabellum’ de Chad Stahelski. (EUA)
  10. ‘Vidro’, de M. Night Shyamalan. (EUA)

 

'Imagem e Palavra'

‘Imagem e Palavra’, de Jean-Luc Godard

Os 10 melhores filmes de 2018

Por Fernando Oriente

Aqui está a lista dos dez melhores filmes que estrearam em São Paulo (e algumas outras capitais e cidades do Brasil) em 2018, na opinião do Tudo Vai Bem. Estão incluídos apenas filmes inéditos e recentes. Não considerei exibições de filmes em mostras, sessões especiais ou festivais.

O grande evento cinematográfico do ano foi ‘The Other Side of The Wind’, de Orson Welles, que entra na lista como hors concours. O filme foi rodado por Welles de 1970 a 1976 e teve seu processo de montagem iniciado pelo diretor do final dos anos 1970 até início dos anos 1980, quando Welles morreu. O longa foi concluído com base nas sequências já montadas por Orson Welles, além de anotações, diretrizes e apontamentos que ele deixou. ‘The Other Side of the Wind’ é uma das três melhores obras de Welles, e sem dúvida, um dos maiores filmes de todos os tempos.

 Os 10 melhores filmes de 2018

Hors Concours: ‘The Other Side of the Wind’, de Orson Welles (França/EUA)

  1. ‘Zama’, de Lucrecia Martel. (Argentina/Brasil) (leia crítica)
  2. ‘Amante Por Um Dia’, de Philippe Garrel. (França) (leia crítica)
  3. ‘O Dia Depois’, de Hong Sang-soo. (Coréia do Sul)
  4. ‘Café com Canela’, de Ary Rosa e Glenda Nicário. (Brasil) (leia crítica)
  5. ‘O Caminho dos Sonhos’, de Angela Schanelec. (Alemanha)
  6. ‘Arábia’, de Affonso Uchoa e João Dumans. (Brasil)
  7. ‘Infiltrado Na Klan’, de Spike Lee. (EUA)
  8. ‘A Câmera de Claire’, de Hong Sang-soo. (Coréia do Sul)
  9. ‘O Animal Cordial’, de Gabriela Amaral Almeida. (Brasil) (leia crítica)
  10. ‘Baronesa’, de Juliana Antunes. (Brasil)

 

Peter Bogdanovich, John Huston in Orson Wells' "The Other Side Of The Wind"

‘The Other Side of The Wind’

Dicas e apostas para a 42ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo

Por Fernando Oriente

Imagem e Palavra

‘Imagem e Palavra’, de Jean-Luc Godard

 – Entre os mais de 300 títulos que serão exibidos na 42ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo (que acontece de 18 a 31 de outubro), destaco alguns com grande ênfase. Entre os longas que tiveram suas primeiras exibições mundiais nesse ano de 2018 ou em 2017 (mas ainda estão inéditos em salas brasileiras) esses destaques principais são:

‘Imagem e Palavra’ (Le Livre D’Image), de Jean-Luc Godard (França/Suíça) – Novo longa do maior cineasta de todos os tempos. Mais uma experiência arrebatadora e radical de imagens e sons em uma construção de discurso em infinitas camadas e intertextos. Para se assistir muitas vezes.

‘Infiltrado na Klan’ (BlacKkKlansman), de Spike Lee (EUA) – O melhor filme de Spike dos últimos anos. Isso é muita coisa, já que Lee é, há décadas, um dos grandes do cinema mundial.

 ‘Sol Alegria’, de Tavinho Teixeira (Brasil) – Esse seu segundo longa confirma o diretor entre os melhores, mais criativos e originais realizadores do cinema contemporâneo brasileiro. Cinema inclassificável, político, libertário, de desbunde, contestação e maravilhamento.

 ‘Hotel às Margens do Rio’, de Hong Sang-soo (Coréia do Sul) – Ao lado de Pedro Costa, Hong é o maior realizador surgido no cinema nas últimas décadas. Seu novo longa dispensa apresentações.

 ‘Temporada’, de André Novais Oliveira (Brasil) – Assim como Tavinho Teixeira, André Novais já se firma, com esse seu segundo longa e após ótimos curtas, como um dos mais notáveis cineastas contemporâneos do Brasil. Um cinema pessoal e único.

 ‘Grass’, de Hong Sang-soo (Coréia do Sul) – Mais um Hong Sang-soo, sem mais. Só que esse teve suas primeiras exibições ano passado, mas terá suas primeiras sessões no país nessa edição da Mostra

 ‘Ilha’, de Ary Rosa e Glenda Nicário (Brasil) – Novo trabalho da dupla de cineastas após o sensacional ‘Café com Canela’

 ‘Como Fernando Pessoa Salvou Portugal’, de Eugene Green (Portugal/França) – Curta de um cineasta ímpar.

 ‘Trem das Vidas ou a Viagem de Angelique’, de Paul Vecchiali (França) – Após a retrospectiva que a Mostra de 2017 dedicou a Vecchiali, esse é o último trabalho de um veterano mestre responsável por alguns dos mais significativos (e pouco vistos) filmes do cinema mundial pós anos 1970.

‘Almas Mortas’, de Wang Bing (China) – O cinema de Wang Bing é bom demais

‘Amor até as Cinzas’, de Jia Zhang Ke (China) – Embora o último grande filme de Jia seja ‘Still Life’, de 2006, o cineasta chinês sempre realiza belos filmes, bem acima da média.

‘Clementina’, de Ana Rieper (Brasil) – Primeiro longa de Rieper após o belo ‘Vou Rifar Meu Coração’. Um belo retrato de Clementina de Jesus, uma das artistas mais seminais da cultura brasileira.

‘O Barco’, de Petrus Cariry (Brasil) – Gosto muito dos filmes de Petrus e embora ‘O Barco’ seja um filme mais formalista, tem grandes momentos e boas soluções.

‘O Termômetro de Galileu’, de Teresa Villaverde (Portugal) – O documentário é o novo trabalho da talentosíssima cineasta Teresa Villaverde.

‘Túmulos Sem Nome’ (Rithy Panh) (Camboja) – Panh é um dos grandes nomes do documentário contemporâneo no mundo.

‘O Olho e a Faca’, de Paulo Sacramento (Brasil) – Sacramento é um diretor de extremo talento e um grande encenador.

‘Los Silencios’, de Beatriz Seigner (Brasil) – Filme que cresce muito após ser assistido. Cheio de pequenos nuances e muita sensibilidade. Detalhes que fazem parte de uma obra que transcende uma visão imediatista.

 – Entre os filmes mais antigos e sessões especiais em cópias restauradas os destaques são:

 ‘Oito Horas Não São um Dia’, de Rainer Werner Fassbinder (Alemanha) – Monumental série feita para a televisão em 1972 realizada por um dos maiores gênios do cinema mundial.

 ‘O Bandido da Luz Vermelha’, de Rogério Sganzerla (Brasil) – Cópia restaurada de um dos maiores filmes brasileiros de todos os tempos. O filme é o primeiro longa do diretor, lançado em 1968. Todo o cinema de Sganzerla é maravilhoso, simples assim.

 ‘Bravo Guerreiro’, de Gustavo Dahl (Brasil) – A Mostra exibe em cópia restaurada essa pérola do cinema político brasileiro realizada em 1968. Um filme que dialoga diretamente com outros filmes brasileiros enormes do período como ‘O Desafio’ (Paulo César Saraceni), ‘Terra em Transe’ de Glauber Rocha) e ‘A Vida Provisória’ (de Maurício Gomes Leite). Assim como ‘O Bandido da Luz Vermelha’, ‘Bravo Guerreiro’ e os outros filmes listados acima têm muito a dizer sobre os dias que vivemos atualmente no Brasil.

 – Entre os filmes não assistidos (ou que não tenho uma opinião tão plena sobre os realizadores ou poucas informações), mas que tenho boas expectativas ou gosto de trabalhos anteriores de alguns dos cineastas, os destaques são:

  • ‘Uma Terra Imaginada’, de Yeo Siew Hua (Singapura)
  • ‘Maya’, de Mia Hansen-Love (França)
  • ‘A Valsa de Waldheim’, de Ruth Beckermann (Áustria)
  • ‘Futebol Infinito’, de Corneliu Porumboiu (Romênia)
  • ‘Peregrinação’, de João Botelho (Portugal)
  • ‘Coincoin e os Inumanos’, de Bruno Dumont (França)
  • ‘Chuva é a Cantoria na Aldeia dos Mortos’, de João Salaviza, Renée Nader Messora (Brasil/Portugal)
  • ‘Amanda’, de Mikhael Hers (França)
  • ‘A Prece’, de Cedric Kahn (França)
  • ‘Extinção’, de Salomé Lamas (Portugal/Alemanha)
  • ‘Eu Não me Importo se Entrarmos para História como Bárbaros’, de Radu Jude (Romênia)
  • ‘Neville D’Almeida: Cronista da Beleza e do Caos’, de Mario Abbade (Brasil)
  • ‘Um dia Para Susana’, de Giovanna Giovanini e Rodrigo Boecker (Brasil)
  • ‘O Pequeno Mal’, de Lucas Camargo de Barros e Nicolas Thomé Zetune (Brasil)
  • ‘Fabiana’, de Brunna Laboissière (Brasil)

 – Logicamente alguns bons filmes ficaram de fora, ou por falta de conhecimento meu sobre eles, ou por não ter tido capacidade de vasculhar mais detalhadamente a programação completa.

Sobre filmes que receberam o prêmio principal em festivais ao longo do ano, fora Locarno, nenhum outro me chamou atenção ou são assinados por diretores de que não gosto.

42 Motra de São Paulo

Os 10 melhores filmes do primeiro semestre de 2018

Por Fernando Oriente

ZamaAqui está a lista dos dez melhores filmes que estrearam em São Paulo entre a primeira semana de janeiro e a última semana de junho de 2018, na opinião do Tudo Vai Bem. Estão incluídos apenas filmes inéditos e recentes. Não considerei lançamentos de filmes em cópias restauradas, mostras, sessões especiais ou festivais.

Os 10 melhores filmes do primeiro semestre de 2018

  1. ‘Zama’, de Lucrecia Martel. (Argentina/Brasil) (leia crítica)
  2. ‘Amante Por Um Dia’, de Philippe Garrel. (França) (leia crítica)
  3. ‘O Dia Depois’ de Hong Sang-soo. (Coréia do Sul)
  4. ‘O Caminho dos Sonhos’, de Angela Schanelec. (Alemanha)
  5. ‘Arábia’, de Affonso Uchoa e João Dumans. (Brasil)
  6. ‘A Câmera de Claire’, de Hong Sang-soo. (Coréia do Sul)
  7. ‘As Boas Maneiras’, de Juliana Rojas e Marco Dutra. (Brasil) (leia crítica)
  8. ‘Baronesa’, de Juliana Antunes. (Brasil)
  9. ‘Western’ de Valeska Grisebach. (Alemanha)
  10. ‘O Processo’, de Maria Augusta Ramos. (Brasil) (leia crítica)

‘Zama’ e o cinema de Lucrecia Martel

Por Fernando Oriente

Um ponto central para se aproximar do cinema de Lucrecia Martel é o estilo e o que ele pode significar em termos de autoralidade de um artista em relação a uma obra ou ao conjunto de seus trabalhos. A cineasta impregna seus filmes com uma estética (no sentido mais amplo do termo), uma forma e uma linguagem visual e sonora que saltam aos olhos. Martel é uma realizadora que consegue aliar as estruturas formais de suas composições ao discurso cheio de texturas que confere aos seus trabalhos. Usa complexas estruturas formais que contém, sinalizam e apontam aquilo que costumamos chamar de conteúdo (dramático e narrativo). É a partir desse processo que a diretora argentina é capaz de realizar filmes que estão entre o que de mais relevante o cinema mundial produziu nessas duas últimas décadas.

'Zama', de Lucrecia Martel

Após nove anos sem um longa-metragem, Lucrecia Martel chega com seu ‘Zama’. Um filme que aparentemente se desloca em relação aos seus três primeiros, mas que se olharmos atentamente, guarda muitas semelhanças em relação a eles, tanto na forma quanto no conteúdo discursivo. Ao mudar seu tempo de ação para o século 18 na Argentina ainda colônia espanhola, Martel compõe ‘Zama’ com planos mais longos, enquadramentos mais abertos e um andamento narrativo mais lento, em que as tensões presentes na dramaturgia se tornam mais depuradas e, mesmo sem perder nada em intensidade, se oferecem de maneira mais contemplativa do que nos trabalhos anteriores da diretora. Mas para abordar e analisar melhor o novo filme, é necessário jogar luz sobre o que Lucrecia Martel realizou antes.

Em seus três primeiros longas, ‘O Pântano’ (2001), ‘A Menina Santa’ (2004) e ‘A Mulher Sem Cabeça’ (2008), encontram-se características comuns que são trabalhadas e depuradas de diferentes maneiras, ao mesmo tempo em que se replicam e dialogam entre si de um filme ao outro. Temos o universo de uma classe média argentina contemporânea que vive em cidades pequenas. Uma classe em decadência, que perde poder e contém, de um lado, adultos angustiados, incapazes de se comunicar, frustrados, e que veem seus anseios serem invariavelmente abafados e realojados por uma sensação de incapacidade, paralisia, suspensão emocional e física. De outro lado, existem adolescentes que transbordam desejos, erotismo e pulsões em estado bruto constantemente reprimidas e cujo futuro é a condenação de serem iguais aos adultos que os cercam. Entre a prostração e esse desejo constante, mas que não consegue jamais satisfação, as personagens se inserem em situações paradoxais em que a frustração, o erotismo e a apatia convivem em um permanente processo de deslocamento pulsional. Desses conflitos dramáticos surgem relações incestuosas, jogos eróticos entre adolescentes e adultos, aversão, frieza nas relações conjugais, incapacidade de perceber a presença do outro e um alienamento da própria forma com que essas personagens de autodeterminam. Como parte estruturante desse universo social, cada um dos filmes de Martel coloca em destaque o conflito de classes. Essa classe-média moribunda e cheia de frustrações se choca com qualquer representante das camadas mais pobres (bem como de todo aquele que aparente ser diferente), por meio de humilhações, violência, medo ou desprezo.

Todo esse contexto discursivo se potencializa e ganha dimensões pelas estruturas formais presentes no estilo de Martel. A partir de um domínio rigoroso da composição de quadro, a mise-en-scéne trabalha sempre em provocar perturbações e tensão no interior dos planos. Algo constantemente desestabiliza a imagem e tenciona aquilo que é representado. Os enquadramentos são em sua maioria fechados, o que promove, aliado as escolhas de posicionamento da câmera, o recorte e a fragmentação dos espaços, fragmentando assim as percepções do espectador e conferindo à dramaturgia uma crescente sensação de desconforto e deslocamento. A construção meticulosa e significante da banda sonora dialoga em conflito com uma organização que desestrutura o que está dentro de campo – com personagens nas bordas do quadro, desfocadas em plano de fundo ou em primeiro plano bem como no achatamento da profundidade de campo.

A força dramática do extracampo e os planos curtos, ligados por cortes secos, elevam ainda mais o desconforto e o mal-estar que são onipresentes no discurso dramático-narrativo de Martel. A materialidade dos espaços onde se dão as ações bem como os corpos das personagens e a presença física de objetos de cena são elementos cruciais para que a diretora proporcione ao espectador uma imersão sensorial nos ambientes da diegese.

‘Zama’, em suas mudanças na construção formal e evolução narrativa (uma maior presença de planos abertos e estáticos e uma duração maior das imagens entre os cortes), retoma e atualiza os mecanismos estético-discursivos presentes nos longas anteriores da diretora.  O filme acompanha a trajetória do agente da coroa espanhola Diego de Zama em um processo de desmoronamento emocional e corporal. Como as personagens da classe média argentina nos dias de hoje, Zama é representante de um estrato social desimportante que se vê tolhido de poder, incapaz de se relacionar com o outro, deslocado entre seus desejos e atirado a uma existência cada vez mais frágil. A ambição de Zama em ser transferido para outra localidade – última chance de tentar se autodeterminar em sua subjetividade – vai desmoronando em meio a sua rotina anódina em que é apenas um medíocre servidor burocrático e às ações e responsabilidades irrelevantes que executa. Fragmentado em suas potências, isolado daquilo que almeja, Diego de Zama segue sua jornada em direção à radical aniquilação física e existencial. Típico personagem de Lucrecia Martel, ele é um ser desprovido de domínio sobre tudo a sua volta, condenado a vagar destroçado por um espaço que não é capaz de lhe satisfazer as pulsões já difusas e no qual ele sobra apenas como um representante fantasmático do mal-estar que assola toda uma ideia de civilização de origem europeia que se desintegra em solo latino-americano.

'Zama'

O tratamento do tempo – que se arrasta lenta e ociosamente na cadência dos planos refletindo a forma como a vida de Diego de Zama se arrasta – é questão crucial para a força desconcertante que brota na tela de maneira paradoxal, se considerarmos a construção de imagens cuja indiferença do que é representado é a tônica. Para além do que vemos em cena, está o percurso da desimportância das ações que é reafirmado em cada novo plano. O que implica os tempos mortos, o sentir de uma temporalidade lenta e suspensa que insiste em durar mesmo não querendo significar nada além do que que o esfacelamento das potências de Zama em uma existência sem sentido.

No primeiro plano de ‘Zama’, Martel oferece os elementos centrais do enunciado que serão transformados em discurso ao longo do filme. Com um enquadramento aberto e estático vemos o protagonista inserido no quadro à distância, parado em frente ao mar com um olhar e uma postura corporal que traduzem suas sensações de melancolia e fracasso. Ao fundo passam indígenas indiferentes àquela figura decadente e ridícula em suas roupas e adereços puídos de representante do poder colonizador europeu. A solidão e a prostração de Diego de Zama dentro do quadro, seu total deslocamento daquele ambiente e daquelas pessoas expõem na imagem todo o comentário central de Lucrecia Martel a respeito de seu personagem e sua significação simbólica. O desalento e a impotência diante do espaço e da realidade dada e o aprisionamento numa temporalidade suspensa que faz do seu existir um imenso vazio de inutilidade e esperanças frustradas.

Zama

Não é só Diego de Zama que representa essa ideia de civilização de origem europeia que se desintegra em solo latino-americano. Os personagens com quem ele busca uma relação, seja por afeto ou interesse, são compostos como significantes da mesma noção de classe parasitária e vazia, por mais que se apeguem a um poder frágil como Luciana, mulher do Ministro do Trabalho, o Governador ou o contrabandista de bebidas moribundo. O se relacionar de Zama com essas figuras também é signo de fracasso e prostração. É um conviver estático, marcado por uma completa impossibilidade de se fazer entender, por uma incomunicabilidade angustiante assim como uma negação dos desejos e vontades que nunca são consumados, sendo continuamente reprimidos. É na construção dessas relações que Martel amplia ainda mais a impotência desses europeus que nada passam de exilados numa terra que não lhes pertence e na qual não conseguem existir plenamente. Todos fazem parte do que deu origem a atual classe média argentina que povoa os longas anteriores da diretora. Mortos vivos que contrastam nitidamente com aqueles que oprimem, sejam os indígenas ou os escravos negros, que mesmo na precariedade surgem como altivos e cheios de energia e vida. Por mais que estejam condenados a serem cada vez mais esmagados por um poder externo que tem nos medíocres brancos como Zama seus agentes de opressão. É a origem de um choque de classes sedimentado pelas estruturas do capitalismo colonialista.

Essa força material e corpórea da presença física de Zama e dos demais personagens é uma das tônicas do filme. A composição dos tipos – figurino, os gestos, os olhares e até mesmo a maquiagem – são elementos dramáticos fundamentais. Tão importantes quanto a direção de arte e a cenografia, que permitem criar o espaço vivo e sensível (a ambientação) para que Martel projete a temporalidade angustiante com que desenvolve a dramaturgia plano após plano. O trabalho de montagem, a união das cenas e sequências por meio de elipses que abortam a continuidade dramática linear de uma trama a ser desenvolvida e fazem surgir blocos sensoriais de tensões e dramas que se arrastam na ociosidade daquilo que as imagens fazem questão de propor como um discurso fragmentado, uma fragmentação que se refrata em Zama e se projeta no  desintegramento do personagem, que lentamente vai sucumbindo a um espaço que o absorve, a uma realidade suspensa que expõe o nada como a única essência de um medíocre representante de uma classe desimportante e patética, que segue até os dias de hoje se proliferando como vidas sem finalidade presas a um fiapo de existência.

 

*Crítica escrita a partir de texto originalmente feito para a revista de março de 2018 e para o site do Instituto Moreira Salles (IMS)

Buñuel: os dogmas e a religião em três filmes – ‘Viridiana’, ‘Simão do Deserto’ e ‘A Via Láctea’

Por Fernando Oriente

Em seu livro de memórias ‘Meu Último Suspiro’ Buñuel escreve o quanto, para ele, o mundo é guiado pelo acaso e pelo mistério e que entre os dois existe sempre a imaginação. O cineasta não acredita em dogmas, em explicações baseadas em preceitos religiosos e mesmo a ciência para ele não lhe diz nada. É pelo mistério, pelo imponderável do acaso e na imaginação sem limites e sem explicações que surgem a força e as pulsões do homem, da vida, da existência, da arte – e do cinema. Luis Buñuel transpôs todos esses seus sentimentos e visões de mundo para seus filmes. Sempre foi fiel à liberdade do acaso, aos mistérios e deu uma dimensão absoluta à imaginação e as criações que deles surgem.

Luis Buñuel

Luis Buñuel

A religião, as explicações dogmáticas para a imposição de poder de uma ordem metafísica presente na vida de homens e mulheres sempre causaram horror ao diretor, que teve uma criação rigorosa dentro de preceitos religiosos em um colégio católico na Espanha. Buñuel se dizia “ateu, graças a Deus”. Esse sarcasmo presente no comentário, bem como o paroxismo da afirmação são chaves para penetramos em sua obra, toda ela calcada no repúdio ao religioso, ao capitalismo, à burguesia e às instituições reacionárias da família, do Estado e da burguesia. Os temas do religioso, da Igreja, dos dogmas e mitos católicos e do cristianismo aparecem em toda a obra de Buñuel, desde seus curtas surrealistas como ‘O Cão Andaluz’ e a ‘A Idade de Ouro’, passam por suas fases seguintes, incluindo o período em que filmou no México e estão presentes de maneira frontal em seus últimos filmes realizados na França. Essas questões são abordadas sempre de maneira intensa, subversiva, por meio do sarcasmo, do uso de signos e significantes icônicos da religião e da Igreja – e que são sempre subvertidos (e muitas vezes avacalhados) por Buñuel – bem como por situações dramáticas, por elementos centrais e paralelos na evolução narrativa e pela inserção de situações absurdas e momentos de surrealismo.

Vamos nos debruçar sobre três filmes distintos e seminais dentro da obra de Luis Buñuel para tentar penetramos nessa relação do diretor com o religioso, o sagrado, a igreja (sua simbologia, signos e dogmas) e o caráter metafísico da vida e ressaltar a forma como ele desconstrói tudo isso de maneira intensa.

Em ‘Viridiana’, obra-prima de 1961 realizada no México, Buñuel constrói um filme a partir da jornada de sua protagonista e das diversas reviravoltas e desilusões que conduzem seu caminho. Viridiana é uma jovem devota que vive num convento e está prestes a ordenar-se freira quando é enviada pelas madres para visitar seu tio, Dom Jaime, que se encontra doente e é único parente que a jovem possui. Na bela casa de Dom Jaime, Viridiana terá contato direto com os descaminhos e conflitos de sua fé. O tio é um homem cheio de vícios e ao ver a beleza de Viridiana e perceber o quanto ela se parece com sua mulher morta decide dopá-la e estuprá-la para mantê-la ao seu lado. O tio não chega a consumar a violação e sentindo-se impotente e fraco, se mata enforcado. Aqui temos o primeiro abalo moral/religioso de Viridiana; mesmo tendo sido vítima de um golpe e de uma violência sórdida, a jovem se acha pecadora por ter apenas provocado o desejo carnal em seu tio e, ao sentir-se impura e indigna, desiste da vida no convento.

Viridiana

‘Viridiana’

A partir desse momento, Buñuel irá construir uma sequência de choques e confrontos entre as intenções e aspirações metafísicas da fé dogmática de Viridiana com a realidade do mundo e do ser humano comum. Após a morte do tio, a jovem decide abrigar mendigos e moradores de rua na casa que herdou. Ela pretende salvar, recuperar e colocar as vítimas da sociedade no caminho da fé dando abrigo, comida, fazendo com que trabalhem e rezem diariamente. Ao mesmo tempo, o filho bastardo de Dom Jaime, também herdeiro da mansão, se muda para a casa com uma mulher. Outro conflito posto por Buñuel é entre a jovem beata e o filho bastardo, um pequeno burguês materialista.

Buñuel subverte o que poderia ser um filme de ascese metafísico, uma obra de conciliação entre o humano e o divino e faz de ‘Viridiana’ uma jornada de desilusão e desconstrução da fé por meio do choque entre as aspirações religiosas com os elementos incontornáveis da materialidade abjeta do mundo, do homem decaído e do mundo desencantado. Por meio de um total domínio da encenação, pela força dramática da evolução narrativa e por um onipresente sarcasmo crítico, Buñuel vai transformando a jornada de Viridiana em um processo de queda. Os mendigos mostram-se seres humanos comuns, movidos por desejos imediatos, carnais, por ataques de cólera e ações violentas. Não gostam de trabalhar, querem levar vantagem um sobre o outro, segregam aqueles que são mais fracos ou doentes, querem os prazeres da carne: o sexo, a comida, a bebida e o conforto. Aqui a idéia cristã propagada pela igreja, do ser humano como almas boas em busca de salvação divina cai por terra. Os mendigos de ‘Viridiana’ são seres humanos comuns, vítimas da sociedade capitalista, da pobreza material. Quando tem sua chance de possuírem aquilo que o mundo lhes nega, fazem de tudo para levar vantagem e buscarem a consumação de suas pulsões em prazeres.

‘Viridiana’ é repleto de cenas icônicas, em que Buñuel coloca de maneira frontal a desconstrução de signos, significantes, símbolos e dogmas do cristianismo e da religião institucional. Ao chegar à casa de Dom Jaime, a aspirante a freira traz na pequena bagagem um crucifixo, uma coroa de espinhos e vestimentas rudes. Ao longo filme a vemos rezar constantemente, ajoelhada em frente a ícones sagrados. Enquanto isso, seu mundo idealizado de fé desmorona ao seu redor.  Cenas antológicas se sucedem. Em um determinado momento, o filho bastardo de Dom Jaime sente pena de um cachorro que anda amarrado a uma carroça e resolve comprar o bichinho para salvá-lo. Na mesma sequência, logo após ele ter libertado o animal vemos na mesma estrada outra carroça passando com um cão idêntico amarrado a ela. É um comentário explícito de Buñuel de que por mais que as boas intenções possam levar um ser humano a salvar um animal, um homem, uma mulher, nunca poderá salvar a todos os milhares de condenados que estão por todos os lados; as boas intenções não passam de ações assistencialistas movidas por impulsos de comiseração que servem apenas para ajudar um entre milhões de vítimas das mazelas do mundo.

Buñuel é irônico, explícito e direto na sua encenação, depura seu filme de sentimentalismos e reforça o caráter do cinema de crueldade, de não-conciliação que é uma de suas principais características. Não é maniqueísta, não julga seus personagens nem cai em moralismos. Tudo o que registra é para comentar com sarcasmo e muita acidez as idiossincrasias e a hipocrisia das boas intenções. A fé, a igreja, os dogmas são invenções do homem para controlar, anular e alienar o ser humano em meio aos processos históricos que determinam a vida real, desencantada. E é o choque de Viridiana com essa realidade que irá conduzir sua jornada dentro de um processo de desencantamento, de falência de suas esperanças e certezas dogmáticas; ela constantemente confrontada pelo acaso, pelo imponderável. A realidade da vida esgota suas crenças, suas ilusões metafísicas e vão transformando a jovem apática, ela passa a ser conduzida e manipulada por forças materiais imponderáveis, forças muito maiores que ela e que seus valores religiosos herméticos.

E Buñuel vai mais fundo na desconstrução, usa elementos e significantes clássicos da mitologia cristã para destilar seu discurso sarcástico. Na cena mais emblemática de ‘Viridiana’ vemos os mendigos, após fazerem um banquete na ausência dos donos da casa, em que comem e bebem na grande mesa da sala de jantar, posar para uma foto. Essa foto é uma reconstrução visual idêntica ao quadro ‘Santa Ceia’, de Da Vinci. No quadro vemos Cristo e seus apóstolos em torno da mesa após a última ceia antes da crucificação. No filme, a foto reproduz de maneira idêntica a disposição dos personagens, só que ao invés de Jesus e seus seguidores, temos mendigos sujos e bêbados nas exatas mesmas posições. É esse uso direto de ícones clássicos do cristianismo que Buñuel subverte de maneira gráfica e frontal, para potencializar seu discurso crítico e confrontar os signos sagrados.

Ao final do filme, após ser contaminada, agredida por uma realidade que nega todas as suas crenças vemos Viridiana em roupas comuns, com um olhar e uma postura derrotada, apática diante da desilusão, sentada na mesa ao lado do filho de Dom Jaime e da criada da casa jogando baralho. A postura física de Viridiana em cena é a de um fantasma, uma presença esgotada, derrotada. Ao mesmo tempo, do lado de fora, a câmera de Buñuel fecha em close na coroa de espinhos que a jovem havia levado sendo queimada pelos mendigos. O fogo arde e destrói a coroa da mesma forma que a fé e os dogmas de Viridiana foram destruídos pela materialidade do mundo.

‘Simão do Deserto’, também realizado no México, em 1965, é um média-metragem em que Buñuel, de maneira coesa, revisita um dos clássicos mitos do cristianismo: o profeta, o santo, aquele que abdica da vida para se isolar e por meio de penitências, sacrifícios e devoção irrestrita à oração e à meditação tenta se afastar dos valores terrenos para se aproximar de Deus. Tudo no filme tem um ar farsesco, por mais natural que seja a construção de cena, os ambientes e a caracterização dos personagens. Simão é um homem que abandona a vida entre seus pares em uma vila da Idade Média e se retira para um monte onde passa anos no alto de uma coluna, comendo e bebendo o mínimo para seu sustento e orando freneticamente para se purgar dos pecados do mundo e se aproximar do divino, do mundo metafísico do cristianismo, de Deus e de seus ensinamentos. A relação de Simão com os moradores da vila, os padres da região e com sua mãe é pautada no distanciamento arrogante de alguém que se acha superior em sua fé. Ele os recebe na base de sua coluna, prega a eles os ensinamentos sagrados e constantemente faz julgamentos morais e comportamentais sobre todos.

Simão do Deserto

‘Simão do Deserto’

Desde o início Buñuel faz de Simão um misto de fanatismo religioso e moralismo tacanho, sempre em meio às incertezas e fraquezas de sua personalidade. O diretor desconstrói o caráter heroico do mártir para fazer de Simão um homem perdido em devaneios de divindade, arrogante em seus discursos moralistas com que julga a todos, confuso – ele esquece as orações, entra em surtos em que afirma que benzer pessoas, animais e objetos é algo “divertido e que faz o tempo passar sem cometer nenhuma afronta em relação aos desígnios de Deus” -, fraco e inseguro. Um típico beato irracional em delírios de fé e grandeza de espírito.

A encenação de Buñuel é ágil, a câmera se move o tempo todo em travellings, recuos e aproximações, contextualiza tanto os primeiros planos quanto os planos médios e os de fundo, usa a profundidade de campo (onde quase sempre vemos Simão no fundo do plano em pé sobre sua coluna enquanto as ações se desenrolam no chão, próximas à câmera, nos primeiros planos – a presença de Simão no alto da coluna é quase onipresente e mesmo quando não está no quadro é sentida no extra-campo). Essa mise-en-scéne passa uma inquietude que domina o quadro e traduz as tensões das situações narrativas. Simão é quase sempre filmado em contra-plongê, vendo todos de cima, numa posição de superioridade. Os outros olham de baixo pra cima, e são registrados em plongês que mantém os personagens hierarquicamente inferiores a Simão dentro da construção do campo. A caracterização física de Simão é outra alusão direta de Buñuel a signos clássicos do cristianismo. Vestido em uma túnica puída, com longas barbas a cabelo comprido, ele nos aprece como um profeta, um santo e até mesmo como o Cristo dentro da iconografia da igreja.

O grande conflito do filme é entre Simão e o diabo, que constantemente vem tentá-lo. Aqui uma alusão direta as tentações do demônio à Cristo enquanto ele se retirou para o deserto para orar. Só que o diabo no filme é vivido pela belíssima Silvia Pinal, a mesma atriz que havia interpretado Viridiana no filme de 1961. Ela surge num misto de erotismo e humor, seu diabo é impaciente, irritadiço, se incomoda com o fanatismo de Simão e tenta trazê-lo de volta ao mundo, destituí-lo de sua fé cega. A personagem vivida por Pinal é moderna (uma típica mulher dos anos 1960) e materialista, destoa da iconografia clássica do catolicismo e esbanja carismática. Tem humor, se veste de Deus, com barba e tudo para tentar Simão, mostra as pernas, os seios e leva Simão a sentir desejos carnais que ele tanto se esforça em negar. O Simão de Buñuel é um fraco, confuso e meio abobalhado; é uma desconstrução irônica dos santos, dos mártires e profetas.

‘A Via Láctea’, longa de 1969, está inserido dentro do que podemos considerar a fase final do diretor. Filmes realizados na França a partir do final dos anos 1960 até o início da década de 80, com uma enorme liberdade criativa, construções dramático-narrativas radicais em que todos os temas trabalhados por Buñuel ao longo de sua carreira voltam de maneira visceral e intensa. São dessa fase filmes primorosos como o próprio ‘A Via Láctea’, ‘O Fantasma da Liberdade’, ‘O Discreto Charme da Burguesia’ e ‘Esse Obscuro Objeto do Desejo’. Buñuel assume um discurso mais coeso, em filmes que trabalham isoladamente os significantes de cada plano, sem seguir uma evolução narrativa e sem contar uma história com início, meio e fim. O que valem são as sequências e os planos em si.

A Via Láctea

‘A Via Láctea’

Em ‘A Via Láctea’ Buñuel volta a colocar a religião, seus dogmas, ícones e símbolos em primeiro plano. Mas aqui o diretor parte de uma análise corrosiva da relação entre religião e heresia. O filme acompanha a viagem de dois peregrinos a pé da França até a cidade de São Tiago de Compostela, seguindo a famosa rota que fiéis percorrem há séculos para chegarem a Igreja onde ficam os restos mortais de Tiago, apóstolo de Cristo. O longa é um grande filme de episódios e situações isoladas, em que a jornada dos dois vagabundos é entrecortada por personagens e ações que surgem em seus caminhos bem como por flashbacks de tempos passados, em que vemos desde Cristo, a Virgem Maria, cavaleiros medievais, nobres da Idade Moderna, religiosos de diversos períodos históricos, membros e vítimas da Inquisição e até o Marquês de Sade (um dos mais famosos inimigos da Igreja e de seus dogmas).

O humor se faz presente ao longo de todo o filme, um humor ácido, sarcástico e crítico, mas que não busca o riso fácil e sim a cumplicidade do espectador mediante aquilo que o filme critica e debocha. É um Buñuel ácido, que abusa das referências histórico-religiosas para despossuí-las de seu caráter sacro, de suas certezas dogmáticas. ‘A Via Láctea’ é um filme de imaginação, em que as ideias de Buñuel são transpostas para a tela em diversas sequências fantásticas e muitas vezes surrealistas. O diretor não busca explicações, ele quer questionar, criticar e expor os aspectos patéticos da fé institucionalizada, não só a católica ou cristã, mas qualquer fé cega que se deixa guiar por estatutos e códigos impostos.

As heresias clássicas e os hereges que fazem parte da história do cristianismo são revisitados por Buñuel. Desde a os questionamentos sobre a real existência da Santíssima Trindade, a afirmação de que o homem é capaz de escolher entre o bem e o mal sem a influência divina, a reivindicação de não se seguir aos mandamentos e ordens morais impostas pelas autoridades eclesiásticas até as dúvidas acerca da transubstanciação do Cristo na hóstia. O filme trata de cada uma dessas questões em sequências isoladas, ora no tempo presente em que vivem a dupla de peregrinos que amarram as narrativas, ora em flashbacks acionados por algo que a dupla vê ou ouve. É por meio dos diálogos constantes do filme que essas questões são abordadas. A todo momento surgem personagens que discutem religião, dogmas, heresias, o sagrado e o metafísico. Mas Buñuel subverte toda a dramaturgia ao introduzir constantemente o fantástico, o inverossímil, o surreal e o grotesco do mundo. A materialidade da vida e o caráter mundano do homem sempre surgem a se sobrepor aos preceitos do sagrado e da fé. O diretor retira qualquer possibilidade de ascesse metafísica dos dramas e situações e faz do acaso novamente o agente motor das ações.

Sequências antológicas se sucedem: um diálogo de um padre com um policial que é interrompido quando o religioso se exalta e atira uma xícara de café no policial até ser levado para o hospício de onde havia fugido por dois enfermeiros em uma ambulância, a sequência onde Jesus se prepara para se barbear e é convencido pela Virgem Maria a deixar a barba, no duelo de sabre entre dois nobres, um jansenista e outro jesuíta subitamente interrompido quando ambos decidem fazer as pazes sem nenhum motivo aparente, numa aula de catecismo que se transforma em um tribunal da Inquisição, ou na sequência em que Jesus, durante um almoço com seus apóstolos, a Virgem Maria e outros de seus seguidores, conta uma parábola sem pé nem cabeça e que não faz o menor sentido. Tudo no filme é composto para descontrair os dogmas e ridicularizar com alto grau crítico as normas e significantes da religião e da fé institucionalizada.

 

Texto escrito originalmente para o catálogo da mostra Luís Buñuel – Vida e Obra, realizada na Caixa Cultural do Rio de Janeiro em 2016.

Editado para essa publicação no Tudo Vai Bem.

Cinema do maravilhamento: ‘A Forma da Água’ e ‘Sem Fôlego’ (Wonderstruck)

Por Fernando Oriente

É curioso como dois longas lançados em 2017 e que entraram em cartaz no Brasil no início de 2018 sejam representantes tão evidentes de um tipo de cinema que está entre o que de melhor temos na produção atual, mas que muitas vezes é relegado ao segundo plano ou tachado de infantil e maniqueísta por grande parte da crítica e da cinefilia. ‘A Forma da Água’, de Guillermo Del Toro e ‘Sem Fôlego’ (Wonderstruck), de Todd Haynes, são filmes que existem em função de seu caráter espetacular, na sua forma depurada e carregada de tinturas e virtuosismos e na intensidade da reação que provocam no espectador: o maravilhamento. São duas obras que só podem existir como e pelo meio cinematográfico. É do universo exclusivo da linguagem, gramática ou elementos estruturantes do cinema que esses dois filmes conseguem ser tão potentes, encantar e carregarem um discurso cheio de intertextualidade e possibilidades de apreensão. Tanto Del Toro quanto Haynes se dirigem ao emocional, ao reativo do público. Filmes de sensações, vibrações e emoção, que enaltecem a força das tensões e conflitos na diegese, que carregam em sua estrutura a importância fundamental que a mise-en-scène tem para o devir cinema. ‘A Forma da Água’ e ‘Sem Fôlego’ existem unicamente dentro daquilo que a encenação cria e impulsiona.

A Forma da Água

A Forma da Água

A honestidade com que Haynes e Del Toro trabalham a matéria de seus filmes, respeitando e ao mesmo tempo sendo ousados ao manipularem os códigos do cinema de fantasia, fazem ‘Sem Fôlego’ e ‘A Forma da Água’ atingirem todos os níveis de eficiência que deles se podia esperar. Os realizadores não têm medo de mergulhar na fábula, no artifício, no âmbito moral que a própria evolução narrativa de seus filmes engendra. São longas que operam dentro de códigos de valores: o bem contra o mal, a jornada de seus protagonistas para se autodenominarem, a luta pela liberdade de existir em meio a um mundo opressor, a pureza e nobreza de valores éticos, sacrifícios e heroísmos. Uma ética da moral que pede que os diretores assumam um lado, defendam valores que acreditam e não tenham medo de retratar a dualidade de conflitos posta na sociedade. Não se trata aqui de impor um mundo binário, maniqueísta. Tanto Del Toro quanto Haynes sabem que não podemos reduzir a existência a apenas dois lados, que nem todo mal é mau e nem todo bem é bom. O que eles fazem por meio desses dois longas é recortar a realidade, implodi-la de suas aspirações de realismo ou naturalismo e operarem dentro do mundo do simulacro, dos arquétipos e da simbologia. Como o próprio título original em inglês de ‘Sem Fôlego’ já indica, o “maravilhar-se” está na gênese de tudo aqui envolvido – e dessa definição ampla, podemos trabalhar como toda uma noção de maravilhamento também é um dos pilares estruturantes do dispositivo cinematográfico desde o surgimento das imagens em movimento.

‘Sem Fôlego’, por mais que seja a adaptação do livro de enorme sucesso, consegue fazer com que a enunciação proposta pela literatura seja totalmente recriada pela gramática do cinema e torne-se um discurso de cinema puro. Um filme que dialoga com a história do cinema americano, particularmente o cinema mudo dos anos 1920 e o universo fílmico riquíssimo da década de 1970 nos Estados Unidos. A divisão da narrativa em dois momentos distintos de evolução e ambientação, interligados pela energia pulsante da mise-en-scène de Haynes, faz com que o diretor use características estruturais de um fazer cinematográfico de períodos passados (anos 20 e 70) e os redimensione com o que de mais atual as tecnologias digitais permitem hoje. Ele não copia um fazer antigo, ele atualiza esses códigos e entrega um longa com o frescor daquilo que de melhor o bom uso das técnicas e construções atuais podem oferecer. Toda a obra de Haynes tem esse diálogo com outros cinemas, seja na revisão e atualização dos melodramas clássicos em ‘Longe do Paraíso’ (2002) e ‘Carol’ (2015), na releitura do cinema underground em ‘Veneno’ (1991) ou na apropriação do universo glam dos anos 1970 em ‘Velvet Goldmine’ (1998), sem contar o desbunde estético-discursivo do delicioso ‘Não Estou Lá’ (2007).

Wonderstruck

Sem Fôlego

‘Sem Fôlego’ é um tour de force de encenação, com uma câmera inquieta que, em constante movimento, aprisiona os dois protagonistas na claustrofobia de ângulos fechados que são sempre intercalados por planos abertos furiosos de multidão, de espaços superlotados de gente, ambientes amplos em que a tensão da cidade grande primeiramente oprime seus personagens, mas sempre se abrindo e se oferecendo como local de possibilidades de libertação e acolhimento de suas individualidades. A tudo isso junta-se uma direção de arte impressionante e uma fotografia primorosa, cada elemento soma-se a outro para dar forma a esse caldeirão de potência visual e arrebatamento.

No filme de Haynes tudo é construído em função dos deslocamentos, do movimento vertical, da busca incessante da menina e do garoto por aquilo que seus desejos pedem. Mas, antes de tudo, é um longa que trabalha o encontro desses protagonistas – marginalizados, órfãos e solitários – que somente quanto estiverem frente a frente entenderão suas histórias de vida e desse encontro não descobrirão soluções, mas sim novas possibilidades de existir de maneira mais plena, no afeto, na cumplicidade e no entendimento mútuo de seus vínculos. ‘Sem Fôlego’ se realiza e se torna grande pelo universo cinematográfico posto e materializado, que só existe em função daquilo que a mise-en-scène cria. Todd Haynes é o autor de um mundo ficcional vibrante, que se materializa nas imagens e naquilo que as imagens propõem existir em torno delas mesmas e para além delas. O tom fabular, os aspectos que sugerem a existência do fantástico em meio a vida ordinária são a matéria propulsora dos dramas, da intensidade narrativa e do discurso que desses processos surgem. Cinema potente, que reverbera, que joga o espectador no interior de seu universo frenético e o conduz lado a lado com seus protagonistas e com eles se depara com o maravilhamento do viver dentro de um mundo expandido, que só pode existir dentro do núcleo daquilo que a encenação de Haynes cria de maneira tão especial, com paixão e entrega.

‘A Forma da Água’ é mais um belíssimo mergulho de Guillermo Del Toro na fábula. Uma jornada de libertação metafísica da protagonista que só se torna possível pelo fantástico, por destruir qualquer tentativa de se pensar o mundo por meio de uma mentalidade racionalista ou do naturalismo, pela crença do diretor (a mesma crença que move suas heroínas e heróis) em que existe um lado mágico em meio a dor e a tristeza do mundo oficial que não só nos encanta, mas opera como espaço de possibilidade, de libertação e materialização dos desejos mais intensos. Del Toro não esconde o lado sórdido do mundo, não tranca seus filmes na fabulação estreita, ele mostra e carrega nas tintas do lado abjeto da vida, para a partir daí potencializar a fantasia no interior da dramaturgia. Tudo o que vemos na tela em ‘A Forma da Água’ – dentro de um primor do décor, do virtuosismo da direção de fotografia, dos criativos planos que Del Toro compõem usando os mais diferentes enquadramentos de uma câmera que não se furta a mudanças de eixo radicais – é a afirmação material daquilo que os valores morais intrínsecos aos conflitos propostos pelos códigos da fantasia promovem na dramaturgia e principalmente na forma como o espectador é arrebatado pelo maravilhamento desse mundo fantástico confeccionado pelo cineasta mexicano. Assim como em seus dois melhores trabalhos – ‘A Espinha do Diabo’ (2001) e ‘O Labirinto do Fauno’ (2006), aos quais ‘A Forma da Água’ agora se junta, o novo filme de Del Toro engrandece os elementos fabulares e oníricos por meio de uma constante variação entre o esplendor poético do fantástico com sequências em que a ferocidade do mundo “real” desencantado irrompe na tela com  aspereza e brutalidade, aqui representadas pelo agente do governo americano vivido por Michael Shannon, todos aqueles que o cercam, bem como pelo espiões soviéticos e por qualquer personagem que não divida com a protagonista a crença e o desejo de se ir além, de se acreditar no impossível, um impossível tornado realidade por aquilo que a mise-en-scène de Del Toro cria com tanta precisão e beleza visual.

Como Todd Haynes, Del Toro faz uso primoroso das possibilidades do digital, que, com criatividade e elegância, confeccionam esse refúgio fantástico em que personagens podem sempre superar suas limitações e encontrar as autodeterminações que libertem seus desejos e sonhos e materializem suas fantasias. ‘A Forma da Água’, bem como toda a obra de Guillermo Del Toro, transcende o aspecto pueril das fábulas infantilizadas. Temos cenas de violência gráfica intensa, crueldade e um erotismo que conferem texturas muito mais intensas aos personagens e dramas. O romance impossível entre a faxineira Elisa Esposito (Sally Hawkins) e a criatura aquática torna-se muito mais forte pelo fato de não se restringir à idealização, ao metafórico ou a um platonismo romântico. O casal consuma sua paixão em sexo, no gozo erótico e aí Del Toro insere elementos que energizam e solidificam essa união impossível entre o humano e o ser fantástico. “A Forma da Água’ é mais um filme em que Del Toro, ao criar um universo dramático-narrativo de encantamento e estilização formal, promove o enfrentamento da dureza fria do viver na banalidade cotidiana com as possibilidades que se abrem pelo maravilhamento do fantástico. Uma negação da resignação e um ato moral de fé nos valores mais nobres que a fábula clássica enaltece. Se seus personagens maus podem ser vistos como representações maniqueístas dessa maldade, esse maniqueísmo é dado como apenas mais um elemento estruturante do desencanto de um mundo sem fé na transcendência, uma transcendência que só o cinema pode oferecer. É ao vencer esse arquétipo do mal, que os personagens de Del Toro são elevados pelo maravilhamento (compartilhado passionalmente pelo espectador) a um exercício de tornar-se aquilo que desejam, a viver o impossível tornado real pela fantasia, uma fantasia política de resistência que os levam a agir e vencer suas pequenas grandes batalhas.

The Shape of Water

A Forma da Água

Em meio a um impasse que toma conta dos filmes que se pretendem sérios, de obras que evitam as intensidades dramáticas e os conflitos, ao universo fílmico “arthouse” engessado em discursos ocos de boas intenções realistas, é esse cinema do maravilhamento de ‘A Forma da Água’ e ‘Sem Fôlego’ que apresenta um verdadeiro frescor, cheio de vida e originalidade, que encanta e levanta questões, que reverbera na intensidade das tensões dramáticas e situações narrativas, que discute política e socialmente a vida contemporânea. Que faz sonhar com algo a mais, um cinema de resistência e fé no que de mais humano a fantasia pode significar com suas simbologias e possibilidades de leitura. É também, como sempre foi, pelo encantamento que os filmes nos tocam, ao nos arrebatar no e pelo espetáculo, que traz reflexão em meio ao maravilhoso recriado e tornado matéria em imagens, sombras e sons. É o que nos permite mergulhar nessas histórias fantásticas que nos arrebatam pela força de seus discursos cheios de camadas e intertextos e pelo acreditar no esplendor do impossível tornado possível exclusivamente pelo cinema.

Os 10 melhores filmes de 2017

Por Fernando Oriente

‘Twin Peaks’

Aqui está a lista dos dez melhores filmes que estrearam em São Paulo (e algumas outras capitais e cidades do Brasil) em 2017, na opinião do Tudo Vai Bem. Estão incluídos apenas filmes inéditos e recentes. Não considerei lançamentos de filmes em cópias restauradas, mostras, sessões especiais ou festivais.

O grande evento cinematográfico do ano foi ‘Twin Peaks – Temporada 3’, de David Lynch, que entra na lista como hors concours Os 18 episódios dirigidos por Lynch formam um todo notável. Por mais que a qualidade de filmes e séries feitos e veiculados por canais de televisão e streaming seja algo cada vez mais presente, pelo menos por enquanto, vou manter essas obras separadas dos filmes que são exibidos em salas de cinema.

Os 10 melhores filmes de 2017

Hors Concours: ‘Twin Peaks – Temporada 3’, de David Lynch (EUA) (leia a crítica)

  1. ‘Guerra do Paraguay’, de Luiz Rosemberg Filho. (Brasil) (leia a crítica)
  2. ‘Beduíno’, de Julio Bressane. (Brasil) (leia a crítica)
  3. ‘O Ornitólogo’, de João Pedro Rodrigues. (Portugal) (leia a crítica)
  4. ‘Corra!’, de Jordan Peele. (EUA) (leia crítica)
  5. ‘Na Praia à Noite Sozinha’, de Hong Sang-soo. (Coréia do Sul) (leia a crítica)
  6. ‘Colo’, de Teresa Villaverde. (Portugal) (leia a crítica)
  7. ‘Toni Erdmann’, de Maren Ade. (Alemanha)
  8. ‘Na Vertical’, de Alain Guiraudie. (França) (leia a crítica)
  9. ‘Martírio’, de Vincent Carelli. (Brasil)
  10. ‘O Filho de Joseph’, de Eugène Green. (França)

 

Os 10 melhores filmes do primeiro semestre de 2017

Por Fernando Oriente

‘Guerra do Paraguay’

Aqui está a lista dos dez melhores filmes que estrearam em São Paulo entre a primeira semana de janeiro e a última semana de junho de 2017, na opinião do Tudo Vai Bem. Estão incluídos apenas filmes inéditos e recentes. Não considerei lançamentos de filmes em cópias restauradas, mostras, sessões especiais ou festivais.

Os 10 melhores filmes do primeiro semestre de 2017

  1.  ‘Guerra do Paraguay’, de Luiz Rosemberg Filho. (Brasil) (leia crítica)
  2. ‘Beduíno’, de Julio Bressane. (Brasil) (leia crítica)
  3. ‘O Ornitólogo’, de João Pedro Rodrigues. (Portugal) (leia crítica)
  4. ‘Corra!’, de Jordan Peele. (EUA) (leia crítica)
  5. ‘Na Vertical’, de Alain Guiraudie. (França) (leia crítica)
  6. ‘Toni Erdmann’, de Maren Ade. (Alemanha)
  7. ‘Martírio’, de Vincent Carelli. (Brasil)
  8. ‘O Filho de Joseph’, de Eugène Green. (França)
  9. ‘Fragmentado’ de M. Night Shyamalan. (EUA) (leia crítica)
  10. ‘Um Limite Entre Nós’, de Denzel Washington. (EUA)

 

‘Na Vertical’, de Alain Guiraudie

Por Fernando Oriente

Após utilizar diversos gêneros como matéria na composição dramática de seus filmes, variando da comédia ao thriller, passando pelo drama social (muitas vezes os fundindo dentro da mesma obra), Alain Guiraudie chega a seu último longa, ‘Na Vertical’ com uma liberdade formal e narrativa em que essa opção do gênero (ou de gêneros) como recurso impulsionador do discurso se dilui e dá lugar a uma composição (discursiva e formal) em que a desorientação e os deslocamentos existenciais, físicos e temporais de seus personagens conduzem todo o processo para a potencialização plena das sensações, dos sentimentos e das incertezas. O resultado é um filme que não se encaixa em classificações e o que fica, tanto nas imagens e personagens, bem como no espectador, é uma forte sensação de melancolia, dúvida e vazio.

O cinema de Alain Guiraudie tem no desejo e nas pulsões seu núcleo, de onde surgem narrativas, discursos, dramas e suas respectivas soluções dramáticas, bem como a estética e as opções formais de cada um de seus filmes. O desejo humano pode assumir as mais distintas formas de manifestação, sendo reprimido, extrapolado, deslocado, idealizado ou coibido. Nada mais forte do que uma pulsão como o desejo, suas raízes e seu papel central nas definições das personalidades de homens e mulheres e na forma como definem as relações consigo mesmo e com o outro. Em ‘Na Vertical’, Guiraudie trabalha o vazio do desejo. A estagnação da pulsão na prostração esmagadora do eu desejante, na frustração da impossibilidade de existir em plenitude de seus personagens.

O personagem central, Léo, é um tipo em constante deslocamento, não para por muito tempo em nenhum lugar. Mas por mais que vá do campo à cidade, da estrada para um bosque, saia de uma casa para outra, acaba sempre retornando para os mesmos lugares, encontrando e reencontrando os mesmos tipos e paisagens, para logo depois se por novamente em movimento. Ao mesmo tempo, sua pouca estabilidade e segurança vão ruindo numa espiral de acontecimentos ao qual ele não tem controle e tão pouco consegue perceber. Cada pessoa que aparece em seu caminho acaba por formar um laço com ele, e por mais que se desloquem, sempre retornam a se encontrar, a estar frente a frente. É um filme de encontros (e redefinição desses encontros), em que as situações, os personagens, suas sensações e ações mudam, mas o estar com o outro, o (re)encontro permanecem sempre, encerrando a todos em uma espécie de prisão espacial e temporal da qual ninguém consegue se libertar – libertação essa que só se torna viável na morte, morte essa que só é possível com a participação do outro.

‘Na Vertical’ é um filme todo construído na força dos cortes. Cada corte promove radicais mudanças espaciais e temporais. Encerram bruscamente ações e situações dramáticas para abrir caminho a novas tensões. A montagem por correspondências adotada por Guiraudie faz constantemente que os planos e sequências que vemos na tela ecoem nas cenas e imagens que se seguem. Cada nova sequência e cada nova imagem estão impregnadas por aquilo que já vimos passar na tela. O tempo é reconfigurado, expandido, relativizado, retorcido. O que fica é a materialidade de corpos incertos de suas potências, cansados, exauridos nas impossibilidades de completude. Corpos cansados já incapazes de fixar uma pulsão, uma estabilidade.

A encenação de Guiraudie em ‘Na Vertical’ abre mão dos planos estáticos de ‘Ce Vieux Rêve que Bouge’ (2001) e dos planos analíticos e subjetivos – com cadenciados movimentos de câmera – de ‘O Estranho no Lago’ (2013) – embora essas composições também estejam presentes no filme – e se aproxima mais da usada por ele em ‘O Rei da Fuga’ (2009), em que movimentos constantes de câmera, travellings, planos subjetivos, variações sucessivas de distâncias focais e cortes secos aumentam a força da desorientação e das incertezas dos personagens e dramas. Mas essa composição é aliada a um notável conjunto planos de abertos e estáticos (ou com suaves deslocamentos de câmera) em que o diretor faz com que os movimentos internos do quadro, dos personagens dentro da amplitude da paisagem, reforcem as sensações de pequenez e fragilidade do ser humano diante da imensidão dos espaços. A frieza analítica e o distanciamento no tom da mise-en-scéne promovem um deslocamento questionador do olhar, ao mesmo tempo em que conferem imagens e cenas e cenas de grande beleza.

Embora no cinema de Guiraudie a grande maioria de seus personagens sejam homens – o que é emblemático em filmes como ‘Ce Vieux Rêve Que Bouge’ e ‘O Estranho no Lago’, em só vemos personagens masculinos e sempre num mesmo cenário (a fábrica no primeiro e o lago e o bosque no segundo), Guiraudie também se utiliza de forma notável da presença da mulher em alguns de seus trabalhos, como em ‘O Rei da Fuga’. Em ‘Na Vertical’, a mulher tem papel central, tanto na personagem de Marie com quem Léo inicia uma relação afetiva e sexual e com quem acaba tendo um filho, como na personagem misteriosa da mulher que vive no bosque e que o protagonista vai ao encontro para buscar ajuda e alguma sensação de conforto e estabilidade, alguma rusga de certeza em meio a sua angustiante incompletude existencial. Marie, como mulher e na maneira como Léo se entrega a ela, com intensidade erótica e afetiva, são uma forma de Guiraudie reforçar a desorientação e o vazio no desejo, nas pulsões que movem Léo. O filme nos sugere que ele seja homossexual, mas sua sensação de deslocamento e incompletude o faz se envolver de maneira intensa com a jovem Marie, dedicando (mecanicamente) a ela seu afeto e sua libido. O personagem se entrega à relação como se entrega (de distintas maneiras e com expectativas diversas) a cada novo tipo que surge em seu caminho.

O se entregar ao outro de Léo é sempre uma ação, um movimento incompleto, em que as dúvidas em relação a esse outro, a ele mesmo e a esses laços que se estabelecem entre eles são sempre mais fortes – e fazem dessas relações agenciamentos já condenados a não realização plena – e nunca proporcionam, nem para o protagonista nem para aqueles que cruzam seu caminho, uma possibilidade real de comprometimento, de empatia, de completude. Não existe jamais um autêntico estar junto. Estar junto é uma impossibilidade já anunciada. De diferentes formas, Léo vê em cada corpo, em cada indivíduo um lampejo frágil de possível afirmação e concretização do desejo, para uma breve e parcial realização afetiva e existencial. É uma constante maneira de procurar no outro o destino de suas pulsões, mas esse outro, seja que for, nunca irá ser o que ele espera, nunca será o ponto de chegada de sua jornada passional-existencial. O mesmo movimento de encontros e reencontros ocorrem com todos os personagens, em um filme em que cada tipo que surge na tela tem papel crucial no discurso fílmico de Guiraudie. Em ‘Na Vertical’ temos uma constante ressignificação dos núcleos de convivência e relacionamento, principalmente em relação as estruturas e a noção de família e de como e por quem elas são formadas e se mantém – mesmo que por pouquíssimo tempo – até esses vínculos e laços serem rompidos e reorganizados.

O desejo e seus desdobramentos e incertezas, tendo nos corpos seu local privilegiado de realização, tornam esses corpos focos de relações de saber e poder, além de colocarem o corpo como centro de construção de subjetividades. E o corpo sempre foi matéria central no cinema de Guiraudie. Corpos à deriva ou a procura de outros corpos. Personagens – na sua grande maioria homens cis homossexuais – movidos pelo desejo e que se encontram em cenas de sexo diretas, secas. O sexo é personagem nuclear e canalizador desse discurso do desejo. Guiraudie expõe sem pudores os corpos, cada uma de suas partes, fecha seus ângulos em órgãos genitais, em sequências de penetração, sexo oral, carícias, bem como em corpos nus antes ou após o gozo. A materialidade do corpo, o papel central das formas e texturas de cada parte dos corpos são imagens de enorme potência discursiva no cinema do diretor. E não se trata de uma obsessão por corpos jovens e perfeitos. Temos constantemente sexo e desejo entre (e com) homens gordos, velhos que nem de longe se encontram no padrão publicitário de beleza.

Mas o sexo e a nudez seguem sempre a necessidade discursiva e dramática de cada filme de Guiraudie. Nada é gratuito. Em ‘Ce Vieux Revê que Bouge’ não temos nenhuma cena de sexo e os corpos nus são retratados de forma distante e fria. Já em ‘O Estranho no Lago’ a nudez e o sexo são onipresentes e intensos. ‘Na Vertical’ tem pontuais cenas de nudez e de sexo, mas cada uma delas é de imensa força e significância. Desde os closes na vagina de Marie e no pau de alguns personagens, passando pela transa entre Marie e Léo até a cena de sexo gay que leva a um suicídio assistido/impulsionado –  esta última sendo um dos grandes momentos do cinema recente. Guiraudie tem domínio completo da materialidade e da função dramática que confere a suas imagens dos corpos, das texturas que imprime neles, tanto em prostração quando em movimento. Tanto no repouso quanto na intensidade das trepadas.

‘Na Vertical’ é um filme que amplia e confirma a força do cinema de Alan Guiraudie. Um trabalho ainda mais cético na visão de mundo melancólica e desencantada do diretor. Temos todos os seus principais temas presentes, assim como a utilização precisa de seus habituais mecanismos de construção formal e discursiva. No cinema de Guiraudie, os indivíduos solitários, frágeis, incompletos e em constantes conflitos internos de pulsões e desejos são o centro de uma contemplação contemporânea do mundo que o diretor faz. A partir de corpos e desejos individuais, discute a sociedade atual de maneira complexa e ampla. A crise e os confrontos do indivíduo sempre são construídos por Guiraudie dentro de um discurso que reforça a dissolução dos afetos, a falência do mundo do trabalho, a impossibilidade de consolidação de relações sólidas com o outro, o individualismo e a desorientação que movem todos. Por mais particular e não convencional que sejam o universo, os dramas, ações e personagens criados e presentes nas imagens e na gramática cinematográfica de Guiraudie, tudo reflete o todo. E é a cada um de nós que seus filmes contemplam e desorientam; tiram-nos da posição de conforto e faz com que a inquietude do que está na tela seja uma extensão e uma refração de nós mesmos.

Os 20 filmes favoritos de todos os tempos + 20

Por Fernando Oriente

‘Passion’, de Jean-Luc Godard

Segue abaixo a lista com meus 20 filmes favoritos de todos os tempos com o acréscimo de mais 20 filmes fundamentais (usei como parâmetros meu senso crítico, meus conhecimentos de cinema, meus valores subjetivos e um pouco de apego afetivo). Coloquei apenas um filme por diretor para deixar a lista mais plural. Essa lista surgiu de um pedido do crítico e amigo Chico Fireman (que irá utilizá-la em seu blog Filmes do Chico ao lado de outras várias listas individuais). Lógica e infelizmente, um grande número de obras-primas e cineastas excepcionais ficaram de fora.

1- ‘Passion’, de Jean-Luc Godard (1982. França)

2- ‘O Eclipse’, de Michelangelo Antonioni (1962. Itália)

3- ‘Police’, de Maurice Pialat (1985. França)

4- ‘Desejo Profano’, de Shohei Imamura (1964. Japão)

5- ‘Out 1’, de Jaques Rivette (1972. França)

6- ‘New Rose Hotel’, de Abel Ferrara (1998. EUA)

7- ‘Sem Essa, Aranha’, de Rogério Sganzerla (1970. Brasil)

8- ‘Stromboli’, de Roberto Rossellini (1950. Itália)

9- ‘A Paixão de Joana D’Arc’, de Carl T. Dreyer (1928. França)

10- ‘Muriel’, de Alain Resnais (1963. França)

11- ‘O Leopardo’, de Luchino Visconti (1963. Itália)

12- ‘Juventude em Marcha’, de Pedro Costa (2006. Portugal)

13- ‘A Idade da Terra’, de Glauber Rocha (1980. Brasil)

14- ‘Toda Uma Noite’, de Chantal Akerman (1982. Bélgica)

15- ‘Um Dia no Campo’, de Jean Renoir (1936. França)

16- ‘Os Pássaros’, de Alfred Hitchcock (1963. EUA)

17- ‘Deus Sabe o Quanto Amei’, de Vincente Minnelli (1958. EUA)

18- ‘Um Dia Quente de Verão’, de Edward Yang (1991. Taiwan)

19- ‘Moises e Aarão’, de Jean-Marie Straub e Danièle Huillet (1975. Alemanha)

20- ‘O Discreto Charme da Burguesia’, de Luis Buñuel (1972. França)

+ 20 filmes – em ordem cronológica

– ‘Aurora’, de F.W. Murnau (1927. EUA)

– ‘Outubro’, de Sergei Eisenstein (1928. URSS)

– ‘The Crowd’, de King Vidor (1928. EUA)

– ‘Outrage’, de Ida Lupino (1949. EUA)

– ‘O Intendente Sansho’, de Kenji Mizoguchi (1954. Japão)

– ‘Les Mauvaises Fréquentations’, de Jean Eustache (1963. França)

– ‘Crepúsculo de Uma Raça’, de John Ford (1964. EUA)

– ‘Cuidado, Madame’, de Julio Bressane (1970. Brasil)

– ‘Bang Bang’, de Andrea Tonacci (1971. Brasil)

– ´Saló – Os 120 Dias de Sodoma’, de Pier Paolo Pasolini (1975. Itália)

– ‘Eu Quero Apenas Que Vocês Me Amem’, de Rainer Werner Fassbinder (1976. Alemanha)

– ‘A Última Mulher’, de Marco Ferreri (1976. França/Itália)

– ‘A Mulher Que Inventou o Amor’, de Jean Garret (1979. Brasil)

– ‘O Império do Desejo’, de Carlos Reichenbach (1980. Brasil)

– ‘Cão Branco’, de Samuel Fuller (1982. EUA)

– ‘O Ano do Dragão’, de Michael Cimino (1985. EUA)

– ‘Drácula, de Bram Stoker’, de Francis Ford Coppola (1992. EUA)

– ‘Vive L’Amour’, de Tsai Ming Liang (1994. Taiwan)

– ‘Crash’, de David Cronenberg (1996. Canadá)

– ‘Miami Vice’, de Michael Mann (2006. EUA)

Os 10 melhores filmes de 2016

Por Fernando Oriente

A Academia das Musas

A Academia das Musas

Confira abaixo a lista dos dez melhores filmes que estrearam em São Paulo (e algumas outras capitais do Brasil) em 2016, na opinião do Tudo Vai Bem. Estão incluídos apenas filmes inéditos e recentes. Os oito primeiros filmes da lista são realmente excepcionais e todos os dez escolhidos são ótimos. Não considerei lançamentos de filmes em cópias restauradas, mostras, sessões especiais ou festivais.

Um filme especial entrou em cartaz no CineSesc em São Paulo (e em outras poucas capitais): ‘Visita, ou Memórias e Confissões’, realizado por Manoel de Oliveira. O longa, feito em 1982 e mantido inédito até a morte de Oliveira no ano passado, estaria entre os primeiros dessa lista se fosse uma produção mais recente, o que por critérios de seleção o mantém fora da lista. Mas não podia deixar de mencionar, já que se trata de um filme sublime que foi mantido inédito a pedido do realizador até sua morte e foi visto pela primeira vez ano passado.

Os 10 melhores filmes de 2016

  1.  ‘A Academia das Musas’, de José Luis Guerín. (Espanha) (leia a crítica)
  2. ‘Cemitério do Esplendor’, de Apichatpong Weerasethakul. (Tailândia) (leia a crítica)
  3. ‘Elle’, de Paul Verhoeven. (França) (leia a crítica)
  4. ‘A Assassina’, de Hou Hsiao Hsien. (Taiwan) (leia a crítica)
  5. ‘Certo Agora, Errado Antes’, de Hong Sang-soo. (Coréia do Sul) (leia a crítica)
  6. ‘O Cavalo de Turim’, de Béla Tarr. (Hungria) (leia a crítica)
  7. ‘Exilados do Vulcão’, de Paula Gaitán. (Brasil) (leia a crítica)
  8. ‘Sieranevada’, de Cristi Puiu. (Romênia)
  9. ‘Sully’, de Clint Eastwood. (EUA)
  10. ‘A Vizinhança do Tigre’, de Affonso Uchoa. (Brasil) (leia a crítica)

2016-logoAssim como no ano passado, 2016 foi um ano excepcionalmente bom para estreias em nossos cinemas (principalmente no primeiro semestre e nos meses de novembro e dezembro). Fechar a lista dos 10 melhores de 2016 foi tarefa difícil, alguns belos longas ficaram de fora. Mas listas são listas e tenho que seguir certos critérios. Mediante esse dilema, excepcionalmente, vou mencionar quatros filmes de que gosto muito, mas não entraram na lista:

  • ‘Ela Volta na Quinta’ de André Novais. (Brasil) (leia a crítica)
  • ‘Creepy’, de Kiyoshi Kurosawa. (Japão)
  • ‘As Montanhas Se Separam’, de Jia Zhang-Ke. (China) (leia a crítica)
  • ‘A Bruxa’, de Robert Eggers. (EUA/Canadá)

 

Semana dos Realizadores 2016

Por Fernando Oriente

Balanço da 8ª edição da Semana e comentários sobre a seleção de filmes e o atual estado do cinema independente no Brasil

Sutis Interferências

Sutis Interferências

A oitava edição da Semana dos Realizadores, que aconteceu de 23 a 30 de novembro no Rio de Janeiro, foi mais um exemplo de como o festival carioca já se afirmou como um dos mais importantes, coerentes, ousados e originais eventos do cinema independente contemporâneo brasileiro. A principal qualidade da Semana dos Realizadores é a cuidadosa curadoria, realizada por Lis Kogan e Daniel Queiroz. Enquanto muitos festivais e mostras Brasil a fora pecam exatamente na questão curatorial, é nela que a Semana se torna cada ano mais forte. Tanto na mostra competitiva quanto nas mostras paralelas, a seleção de filmes é primorosa, e escolhe trabalhos que englobam o que de mais interessante, original e ousado se produz no cinema feito hoje no Brasil. Tanto nos curtas quanto nos médias e longas, a qualidade dos filmes selecionados chama atenção e, por mais que alguns títulos exibidos mostrem-se fracos (a minoria) não deixam de serem trabalhos que indicam cineastas à procura de uma linguagem, de um discurso. Um fato fundamental na relevância ímpar da Semana dos Realizadores dentro do cenário do cinema independente brasileiro é poder oferecer uma chance ao espectador de perceber os caminhos, as qualidades, os acertos e erros, bem como os problemas e as soluções que surgem constantemente nos filmes da nova geração de realizadores do país.

O cinema independente brasileiro, desde meados da década passada, se encontra num crescente aumento de produção, muito graças às novas mídias e formatos de captação, finalização e exibição em digital. Diversos bons filmes, cineastas e coletivos surgiram nesse período e se firmaram com o passar dos anos. A cada ano, novos nomes surgem. Por outro lado, esse cinema jovem, independente e inquieto produz vários problemas, uma série de vícios que se repetem em filmes, temas, estruturas formais e discursivas que se esgotam e tornam-se muletas para esconder uma ausência de boas soluções dramáticas e abusos de formalismos vazios. O bom de acompanhar atentamente essa produção é poder ver esse conflito, é conseguir destacar as qualidades e os problemas dessa produção. É poder perceber como diretoras, diretores e coletivos enfrentam os problemas e esgotamentos e como sugerem novos caminhos e soluções, alguns que resultam em bons filmes e outros que acabam por apenas aprofundar os impasses formais e discursivos.

Alguns desses problemas já se tornaram claros há anos e vem sendo enfrentados por diversos realizadores, uns com sucesso, outros não. São problemas já bem conhecidos: a banalização do cinema de afeto, a saturação de questões como o deslocamento e o mal estar, entre outros. De uns tempos pra cá, um novo e grave problema surgiu no nosso cinema independente: a incapacidade de se desenvolver a dramaturgia, o não aprofundamento dos conflitos, texturas e camadas de personagens e situações dramáticas e o uso abusivo de elipses para esconder essa falta de soluções dramatúrgicas. Um dos principais méritos na curadoria da Semana dos Realizadores, que ficou claro na belíssima seleção de filmes dessa oitava edição, é procurar obras que se deslocam tanto no sentido de buscar novos caminhos formais e discursivos como enfrentar os problemas e tentar apontar soluções. Não se foge dos impasses, mas se procura mostrá-los, discuti-los e exibir trabalhos que dialogam como eles e conseguem (ou não) superar esses impasses.

Esse texto procura fazer um balanço dos filmes das diversas mostras que compuseram a programação da 8ª Semana dos Realizadores. Vou me ater aos filmes que considero interessantes até os que gostei bastante, mas alguns desses ficarão de fora por falta de espaço mesmo. O texto é dividido por sessões que seguem as mostras que compuseram o todo da programação.

Mostra Competitiva

A Casa Cinza e As Montanhas Verdes

A Casa Cinza e As Montanhas Verdes

Dos filmes da competição, a Semana exibiu alguns belos trabalhos. Entre os melhores estão os curtas ‘A Casa Cinza e As Montanhas Verdes’, de Deborah Viegas, ‘Estado Itinerante’, de Ana Carolina Soares, ‘Eclipse Solar’, de Rodrigo de Oliveira, ‘As Ondas’, de Juliano Gomes e Léo Bittencourt, ‘Solon’, de Clarissa Campolina, ‘Kappa Crucis’, de João Borges e ‘Nunca É Noite no Mapa’, de Ernesto de Carvalho.

Entre os longas, tivemos a exibição do ótimo ‘Sutis Interferências’, de Paula Gaitán o poderoso ‘Elon Não Acredita na Morte’, de Ricardo Alves Jr., o belíssimo, criativo e intimista ‘Muito Romântico’, de Melissa Dullius e Ricardo Jahn, além do original, intenso e muito bem resolvido na relação forma discurso ‘Filme de Aborto’, de Lincoln Péricles. Destaque também entre os longas, embora um pouco inferiores aos já citados, estão ‘O Misterioso Caso de Ezequiel’, de Guto Parente e ‘Rifle’, de Davi Pretto.

Pela quantidade de filmes citados, podemos ver como a curadoria foi capaz de reunir um bom número de trabalhos de qualidade e diferentes entre si na seleção competitiva. Os longas deverão ter críticas individuais a serem publicadas em breve aqui no  Tudo Vai Bem. Vamos a três dos melhores curtas presentes na competição da 8ª Semana dos Realizadores.

‘A Casa Cinza e As Montanhas Verdes’, de Deborah Viegas é um curta em que tudo funciona com precisão. Um filme construído num único plano-sequência, estático, com posicionamento da câmera em ângulo bem aberto que provoca uma grande distância focal dos micro-acontecimentos (micro-ficções) que surgem como elementos externos que desestabilizam uma paisagem – situações que interferem e desestabilizam o plano, a paisagem. Com uma encenação minimalista, criativa e funcional, Deborah mostra um domínio impressionante da construção do quadro e cria uma narrativa envolvente que provoca e tira o espectador de sua posição de conforto. O trabalho de som, a banda sonora, potencializa a naturalidade do cenário e indica e comenta os pequenos acontecimentos dramáticos do curta. Um filme original, que explora as potências do cinema dentro de elementos simples e básicos da gramática cinematográfica e a partir deles consegue um resultado muito feliz.

'Estado Itinerante'

‘Estado Itinerante’

Em ‘Estado Itinerante’ a diretora Ana Carolina Soares constrói uma ficção fortíssima, um filme em que as sensações e angústias das personagens, principalmente da protagonista Vivi (uma interpretação primorosa da atriz Lira Ribas), são sentidas de maneira intensa pelo espectador. Um filme em que temas urgentes como o abuso físico e psicológico sofrido diariamente por mulheres em todo o país são tratados de maneira densa, sem ser panfletário ou apelativo, e transformados numa ficção muito bem solucionada nas questões de dramaturgia. Todas as personagens do filme são mulheres, os homens – fundamentais à narrativa – são mantidos sempre fora de plano ou aparecem perifericamente no quadro. Uma mise-en-scéne precisa e funcional, com um trabalho de câmera que potencializa as ações, sensações e deslocamentos físicos dos tipos, bem como os gestos e estados de espírito dos personagens. Um filme em que o fora de quadro e o extra-campo têm importância central. Ana Carolina consegue atingir, dentro do formato e da duração do curta metragem, uma alta força emocional e discursiva, com cenas intensas, bem construídas e um ótimo trabalho de decupagem e transição entre as sequências. Um filme em que as elipses trabalham para fortalecer os dramas e não esconder uma ausência de densidade (muito pelo contrário), já que o filme consegue ir fundo nas texturas e camadas dramáticas da personagem central e transmitir força e intensidade nas ações encenadas.

‘Eclipse Solar’, de Rodrigo de Oliveira confirma que o diretor mantém a cada filme um crescente domínio do material com que trabalha. Mergulhando de maneira intensa na potência dos dramas, indo fundo na exploração da força da ficção e se utilizando de maneira precisa da teatralidade na mise-en-scéne, Rodrigo de Oliveira constrói seu primeiro curta, após ter realizado dois longas, explorando sem receios a força simbólica do drama. Um cinema que acredita no drama como base de seu discurso, na ficção, nas possibilidades de representação calcadas numa bela encenação e num ótimo trabalho de composição de quadro (além de cortes preciosos), com elementos barrocos e uma alta carga de simbolismo e significantes que amarram e dão grandeza a essa ficção levada ao extremo das potências do cinema. Um trabalho que segue na contramão da estetização e vai fundo no discurso dramático e narrativo únicos da linguagem cinematográfica.

Mostra Com Mulheres – Cachoeira Doc

Uma das melhores mostras paralelas da Semana dos Realizadores de 2016 foi a Com Mulheres, uma seleção de sessões compostas por filmes dos mais variados estilos, concepções, dispositivos e formas dirigidos por mulheres e que têm a mulher como protagonista ou tema. A mostra aconteceu na edição deste ano do Cachoeira Doc, festival realizado desde 2010 em Cachoeira na Bahia, e foi trazida como parte da programação paralela na Semana. Cada sessão é composta por filmes escolhidos por curadoras mulheres de várias regiões do Brasil. Todas as sessões da Com Mulheres são compostas por filmes interessantes e relevantes, mas entre os destaques estão a sessão Mulheres de Perto, com curadoria de Carla Maia, que exibiu o curta ‘A Entrevista’, que Helena Soldberg dirigiu em 1966, ‘Remontagem’, belíssimo média dirigido pela vietnamita Trinh T. Minh-ha em 1982 e o curta ‘Rio de Mulheres’, de 2010, dirigido pelas cineastas brasileiras Cristina Maure e Joana Oliveira. Outra sessão a ser destacada é a Por Um Cinema Negro Feminino que teve curadoria de Janaína de Oliveira e exibiu o curta ‘KBela’, da jovem realizadora Yasmin Thayná – filme que em apenas um ano desde sua primeira exibição já se tornou referência pela sua abordagem das questões de empoderamento, lugar de fala e protagonismo das mulheres negras no Brasil – e ‘Amor Maldito’, de Adélia Sampaio, de 1984 – primeiro longa metragem dirigido por uma mulher negra no Brasil e que se mostra extremamente atual nos dias de hoje.

Mammah, de Louise Botkay

Mas uma sessão específica chamou atenção pela beleza e força dos filmes exibidos: a sessão Encantarias, de curadoria de Lis Kogan. A sessão é composta por oito curtas-metragens da cineasta carioca Louise Botkay. Todos os trabalhos de Louise mostram uma grande sensibilidade da diretora em relação à composição da luz e as variações de luminosidade, a relação entre corpos e espaços, bem como a presença física registrada de maneira íntima e próxima das personagens, na sua grande maioria meninas (de crianças a pré-adolescentes) e mulheres grávidas. A captação dos ambientes e cenários é muito bem trabalhada pela diretora, que utiliza de forma preciosa as possibilidades estéticas do registro em película (super 8 e 16mm) e em celulares de primeira geração, em que as imperfeições e limitações dessa forma de captação digital produz texturas de imagem que conferem características abstratas, impressionistas e sensoriais aos planos. Louise Botkay faz um cinema muito pessoal, de maneira totalmente independente e de rara beleza e potência discursiva. Uma diretora a ser descoberta por um público maior e ter sua carreira acompanhada com atenção.

Realizações do Rio

A Maldição Tropical

A Maldição Tropical

Uma das programações mais notáveis da 8ª Semana dos Realizadores, a mostra Realizações do Rio contaria o que estamos acostumados a ver em festivais espalhados por todo o país e que se dedicam à exibição de filmes realizados no Estado onde acontecem esses festivais. Na maioria dos casos temos seleções fracas, com poucos filmes que chegam a chamar atenção. No caso da Realizações do Rio todos os filmes exibidos, curtas e longas, são, no mínimo, interessantes e alguns trabalhos realmente se destacam por sua qualidade. Os principais destaques dessa mostra paralela ficam por conta de dois ótimos e inventivos curtas, ‘Um Horizonte de 3,5 km’, de Jaqueline Maria – um estudo sobre distância focal, sobre a observação do espaço que nos cerca e a relação entre imagem, percepção e texto – e ‘Maldição Tropical’, de Luisa Marques e Darks Miranda, um filme que se utiliza de técnicas de montagem e manipulação de imagens por meio do vídeo. Com elementos de ficção científica e cinema fantástico, o curta comenta de maneira criativa questões sobre a idéia de modernidade e desenvolvimento do Brasil que acompanharam o imaginário do país ao longo dos primeiros 70 anos do século 20 e se refletem nos dias de hoje.

Outras duas mostras paralelas de alto nível também foram destaque na programação da Semana dos Realizadores desse ano. A retrospectiva dos três primeiros longas da diretora mineira Marília Rocha: ‘Aboio’, de 2005, ‘Acácio’, de 2008 e ‘A Falta Que Me Faz’, de 2009, são três belos documentários em que Marília faz um trabalho que une o registro documental de espaços, personagens, memórias e histórias com uma composição de imagens que tendem ao hibridismo e com um forte parentesco com as artes plásticas e o cinema de ensaio. Mesclando o uso do super 8, 16mm, imagens de arquivo e cenas captadas em digital, a diretora compõe filmes em que o discurso ganha força, beleza, possibilidades de significação e interpretação por meio das opções formais e de linguagem. Filmes abertos, porosos e em contato intimista com a matéria representada. Os três filmes revistos juntos e em sequência cronológica ajudam a ampliar a percepção e as leituras do último filme de Marília, ‘A Cidade Onde Envelheço’, seu ótimo primeiro longa de ficção e que foi exibido na sessão de encerramento da 8ª Semana. (leia crítica de ‘A Cidade Onde Envelheço’ aqui)

Outro destaque foram as duas sessões com curtas experimentais que fundem cinema, vídeo-arte, artes plásticas e fotografia e que foram selecionados pela pesquisadora e curadora Patrícia Mourão.

Sessões Especiais

Três longas excepcionais fizeram parte da programação da 8ª Semana dos Realizadores dentro das Sessões Especiais: ‘Guerra do Paraguay’, de Luiz Rosemberg Filho, ‘Beduíno’, de Júlio Bressane (os dois últimos filmes de dois gênios do cinema) e o épico de resistência ‘Martírio’, de Vincent Carelli. Os três filmes terão críticas individuais em breve aqui no Tudo Vai Bem e devem estrear nos cinemas no primeiro semestre de 2017.

Completaram as sessões especiais o já mencionado ‘A Cidade Onde Envelheço’, ‘O Último Trago’, mais um belo filme de Luiz Pretti, Pedro Diogenes e Ricardo Pretti (leia crítica do filme aqui) e o média ‘A Grávida da Cinemateca’, novo e bom filme do cineasta paulistano Christian Saghaard, além do curta ‘Confidente’, de Karen Akerman e Miguel Seabra Lopes.

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