Por Fernando Oriente
Primeiro longa-metragem de André Novais, ‘Ela Volta na Quinta’ é um filme calcado no cotidiano e do que de mais complexo pode existir no interior de sua aparente simplicidade rotineira. Um longa concebido a partir do registro naturalista do dia a dia de uma família e suas ações dentro do que de mais simples, corriqueiro e banal suas rotinas carregam. É a vida que toma conta de cada fotograma do filme, dessa vida nasce a força dos personagens, as suas essências, dúvidas, imperfeições, defeitos, desejos, frustrações e qualidades. Tudo vem à tona, penetram nas camadas dramáticas do filme e brotam da maneira mais singela possível por meio daquilo que fazem sem se dar conta, essas ações mecânicas, esses gestos infinitos que cada pessoa repete incontáveis vezes ao longo de suas vidas e não dá a menor importância significativa a eles. O trabalho, o cuidar da casa, o andar pelas ruas, as conversas, as refeições, o ir dormir, o jogar bola com amigos, ver televisão ou simplesmente não fazer nada. Impressiona como André Novais constrói um filme tão rico, tão cheio de texturas a partir de um registro direto da trivialidade de existir, da repetição dos gestos, do estar e se deslocar do mundo de pessoas comuns. É como se ele extraísse o que de mais autêntico e paradoxal existe em cada personagem pelo simples fato de registrá-los, de filmá-los e de se aproximar e prestar atenção naquilo que de único e identitário cada um possui; algo que só é possível se esse registro for o mais sincero possível, se o cineasta se permitir abrir-se ao outro, se comprometer e acreditar naquilo que filma. Sem arroubos dramáticos, sem conflitos forçados, ‘Ela Volta Na Quinta’ é um tocante retrato de uma família e seu cotidiano, suas dores e alegrias, suas frustrações e esperanças. É um filme sobre a riqueza e a complexidade do estar no mundo, sobre os paradoxos dessa existência e de como a relação com o outro, com aqueles mais próximos de nós, no caso a família, é algo que passa longe da razão. Relações surgem e são moldadas nas marcas do tempo, são construídas e consolidadas, solidificadas e enfraquecidas pela passagem do tempo e dentro das rotinas de cada um, dentro do constante e inexorável correr do tempo.
‘Ela Volta na Quinta’ usa esse registro direto do cotidiano e vai se deslocando em direção a como o tempo presente descortina os desgastes do passado, a erosão do que foi vivido, ao mesmo tempo em que projeta medos e incertezas sobre o futuro. Desenvolvido com uma encenação precisa em cada detalhe e trabalhada dentro de uma construção que busca reforçar a força significante da naturalidade com que as ações no interior das cenas são compostas, o longa caminha para um discurso sobre a perda, os desgastes das relações, os processos que levam às essas perdas, e chega a um desfecho em que os personagens se encontram diante da vida que resta a cada um, ao mesmo tempo em que são postos frente aos dilemas de como levar essa vida em meio às dores e as cicatrizes das perdas e desilusões. Essa complexa estrutura é solidificada na construção dramática de André Novais, que tem na sensibilidade e na frontalidade seus fios condutores.
No filme, Novais cria uma ficção sobre um casal que enfrenta uma crise no relacionamento, desgastado após 38 anos de vida em comum e com a doença da mãe e uma relação extraconjugal do pai como elementos agravantes. Isso se reflete na forma com a situação afeta toda a família, os dois filhos do casal e suas namoradas. Novais utiliza membros de sua própria família (seu pai, sua mãe, irmão, cunhada e namorada, além dele mesmo) como atores de uma história inventada, o que cria um dispositivo que permite uma maior integração entre o elenco e seu envolvimento com os dramas encenados. Não é mero capricho de Novais, e sim uma escolha que regula o trabalho no set e aprofunda a potência da encenação exatamente por utilizar pessoas que já carregam uma história de vida e intensas relações em comum. Isso faz com que diretor e elenco projetem na ficção um alto teor de intertextualidade, veracidade e intimidade que já trazem incrustadas em suas personalidades, e assim legitimam a ternura, os conflitos e os afetos encenados por meio da própria afetuosidade que já existe entre eles mesmos. E é bom frisar que todo o elenco está ótimo dentro de seus papéis.
O filme é tão em tico em possibilidades de interpretação, na quantidade de situações e em como cada personagem é construído com complexidade, que é impossível escrever nesse texto sobre tudo o que ‘Ela Volta na Quinta’ traz. Poderíamos escrever um texto só sobre os filhos, André e seu irmão, suas vidas, suas relações, as tensões, esperanças e dificuldades em que se encontram. Mas essa crítica segue uma das muitas leituras possíveis do filme e tenta dialogar com ele, analisá-lo e interpretá-lo sob alguns poucos de seus muitos vieses.
‘Ela Volta na Quinta’ é construído em planos longos – que potencializam ao máximo aquilo que é registrado, cada ação, gesto ou expressão que vemos na tela -, a câmera quase sempre estática, algumas poucas panorâmicas, closes e enquadramentos que respeitam o tempo das ações e das modulações dramáticas dentro do quadro. Um quadro que é trabalhado para valorizar a presença dos tipos em cena. Novais evita posicionar seus personagens apenas no centro dos planos (embora use muito bem esse recurso durante todo o filme), os coloca nas laterais e bordas do quadro, em plano de fundo, os filma de lado ou de costas ou mesmo enfatiza suas presenças e falas no fora de campo, os faz entrar e sair de cena e valoriza muito os diálogos e a força do que dito por raramente usar uma montagem em campo e contra-campo ou filmar as conversas de frente (recurso que força o espectador a escutar com mais atenção o que é dito). Sua câmera é como um personagem, que registra de diferentes ângulos aquilo que vê, capta a naturalidade das presenças, dos espaços, dos deslocamentos.
André Novais compõe uma mise-en-scène que prioriza a densidade por meio de uma aproximação total entre o diretor, seus personagens e o meio em que estão inseridos. As relações entre eles, com todo o peso que o passado e a vida em comum lhes deixaram, é matéria viva da evolução narrativa, conduzida sempre para retirar o máximo de significação dos diálogos, gestos e muitos silêncios que existem entre os personagens. A ternura, o mal estar, o amor ou a reprovação que os personagens sentem um pelo outro surgem desse registro próximo, sincero e terno que o diretor extrai das situações por meio dos dispositivos de encenação e decupagem. Todo um universo de sentimentos, expectativas, frustrações e tensões nas inter-relações vêm à tona, tomam conta da superfície dramática por meio do desse registro minucioso do cotidiano. A força disso fica clara em cenas primorosas como na conversa do personagem de André com sua mãe – ele confere sua pressão, ela se deita na cama o ouvindo contar sobre sua viagem e participação em um festival de cinema e começa a fazer um paralelo entre a realidade do filho, que busca se consolidar como diretor de cinema, seguir fazendo aquilo que gosta e acredita com as lembranças que tem de seu pai, que ela diz ser muito parecido com André, por sempre ter sido fiel em se dedicar a fazer aquilo que acreditava e que gostava (cena que é um longo plano sequência com mãe e filho sentados na cama e evolui até a câmera fechar em close no rosto da mãe deitada enquanto ela continua a falar e ouvir seu filho, já fora de quadro) – ou na já clássica cena em que os pais, com o casamento em crise, em meio às mágoas e ressentimentos que carregam em relação um ao outro, dançam no meio da sala como jovens enamorados enquanto escutam uma música que ela quer ouvir e, com ajuda do marido encontra a canção na internet, e os dois dançam em meio à música que saí do laptop ligado sobre a mesa de jantar.
Nessa dança, que a mãe demora em aceitar, vemos aflorar por meio de um registro direto em um plano estático e com a câmera distante dos personagens todo um caleidoscópio de emoções conflituosas que o casal carrega dentro de si. Dançando meio sem jeito, num misto de tentativa de se (re)aproximarem um do outro, de reviver um amor que já foi intenso e que foi sendo corroído pelo tempo e um mal estar por saberem da real situação em que sua relação se encontra (o que faz com que seus gestos sejam meio descompassados e a atração e retração de seus corpos durante a dança seja constante), André Novais cria uma profunda, melancólica e extremamente significativa representação dos efeitos do tempo numa relação amorosa. Existe amor, existe ternura, existe carinho, mas a idéia, a utopia do amor para sempre nunca resiste às marcas do tempo, aos imprevistos da vida e ao desgaste do convívio. “O amor não acaba, ele vai embora” essa frase presente em mais de um filme de Godard talvez seja a melhor definição para o que vemos na tela. O amor idealizado como puro e eterno não existe. Para viver o amor o ser humano precisa constantemente recriar o objeto amado, buscar ressignificações para o que seja amar o outro dentro dos fluxos do tempo, fazer concessões, se deixar anular em muitas de suas convicções, controlar e realocar o desejo e se deslocar e deixar ser deslocado para outras formas de sentimento, para diferentes maneiras de se manterem próximos e conservar viva uma relação. Passar por esse processo, enfrentar essas situações para manter o outro próximo ou investir nos rearranjos dos sentimentos e nas formas de se colocar no mundo e perante o outro não é fácil, muitos não querem, não acham que os sacrifícios valem à pena, desistem ou simplesmente não conseguem.
Lacan dizia que tanto o amor como a verdade têm uma estrutura de ficção. Quando se ama, um outro é inventado. Continua- se a reinventar constantemente esse outro quando o amor se estende no tempo e sofre seus naturais desgastes. Essa talvez seja a única forma de manter uma relação amorosa duradoura. A cena da dança, bem como toda a relação do casal no filme, carrega todas essas possibilidades de leitura, mas em nenhum momento Novais introduz elementos que quebrem a simplicidade e o registro seco (mas extremamente terno) que faz das ações. Não existem diálogos filosóficos, discussões psicanalíticas. Toda essa riqueza de textura interpretativa surge do registro direto e sensorial que o diretor retira da aparente simplicidade do cotidiano de seus personagens, recriado na sinceridade e singeleza da encenação. Essa tensão de um relacionamento desgastado no tempo em que vive o casal dos pais, se projeta em seus filhos e nas suas próprias relações com suas namoradas. Eles estão no início do amor, fazem planos para viver juntos com as mulheres que amam e construir suas famílias, mas o outro lado desse amor jovem e cheio de esperanças (a situação da relação de seus pais e como eles absorvem a dor dessa relação corroída) surge como uma ameaça, uma possibilidade que eles podem vir a encontrar em suas vidas de casal em um futuro não muito distante.
O cinema de André Novais, principalmente nesse ‘Ela Volta na Quinta’, tem uma aproximação com seus personagens, seus sentimentos e seus espaços tão orgânica, que seus filmes atingem momentos mágicos, no sentido em que a simplicidade singela e frontal daquela realidade recriada torna-se tão cativante e honesta que o espectador sente-se em uma espécie de contato com o sublime do caráter mundano da existência. Do esplendor que existe no simples estar no mundo, com tudo bom e de ruim que isso traz. É um cinema que é feito de dentro de sua matéria, da cumplicidade total entre o realizador, seus tipos e a forma com que se projetam no centro de um universo onde a sinceridade e a entrega mútua se unem para formar um tecido dramático original e complexo.
‘Ela Volta na Quinta’ confirma plenamente o talento que o diretor havia mostrado em seus curtas ‘Fantasmas’, Domingo’ e ‘Pouco Mais de Um Mês’, bem como em seu curta-metragem mais recente, ‘Quintal’, de 2016. ‘Ela Volta na Quinta’, ao lado de outro filme mineiro, também filmado em Contagem, ‘A Vizinhança do Tigre’ de Affonso Uchoa (que coincidentemente estreou nos cinemas no mesmo dia do longa de André Novais) são dois dos melhores filmes brasileiros dos últimos anos. Ambos são extremante originais e singulares, mas trazem muitos elementos em comum.
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