‘A Vizinhança do Tigre’, de Affonso Uchoa

Por Fernando Oriente

A Vizinhança do TigreO longa de Affonso Uchoa é um dos melhores filmes brasileiros dos últimos anos. É bom deixar isso claro logo de cara. ‘A Vizinhança do Tigre’ trata de construção de identidade, auto-afirmação, solidificação de personalidades e resistência em meio a um ambiente hostil e a limitações geográficas e materiais, bem como faz um registro minucioso de uma comunidade periférica do Sudeste brasileiro – e opera tudo isso de uma maneira criativa, original e intensa. É um filme em que os personagens buscam dentro de si e no outro – seus amigos, seus vizinhos, seus familiares, seus semelhantes – o reconhecimento, o companheirismo, o afeto e a força para seguirem adiante e juntar os cacos de existências calcadas na precariedade a que estão inseridos. Esse afeto não é esse que contamina muitos dos filmes independentes contemporâneos feitos no país, um afeto estéril e forçado que serve para encobrir a ausência de construções cinematográficas sólidas. É um afeto genuíno, em que Uchoa filme seus personagens de maneira horizontal, está entre eles, nunca acima. Os olha de igual para igual, procura sempre entender ou tentar traduzir suas existências, pensamentos e ações. Tem sobre eles uma visão sincera, humana e isenta de julgamentos morais e teorias sociologizantes.

‘A Vizinhança do Tigre’ não se preocupa com esse debate já infértil sobre as fronteiras entre o que é ficção e o que é documentário. O filme mostra personagens interpretando um roteiro escrito por Uchoa, seus parceiros e por alguns dos próprios tipos que vemos na tela. É um argumento composto coletivamente baseado em experiências reais de vida. Um longa em que pessoas interpretam e improvisam a si mesmas em situações ficcionais que são extraídas ou criadas a patir da realidade de suas vidas. Existe todo um processo de encenação, decupagem, montagem e evolução narrativa construído por Affonso Uchoa que é concebido desde esse roteiro coletivo. A ficcionalização do real a partir da recriação desse real pelo dispositivo cinematográfico. Um filme em que a captação orgânica do mundo e do meio retratado atinge potências imensas. As imagens, as inter-relações, os conflitos, o registro dos personagens e dos espaços seguem uma mise-en-scéne que é totalmente contaminada e concebida em função do caráter orgânico de um mundo que é transposto para a tela com uma sinceridade uma honestidade artística tocantes. O filme é composto dos encontros entre os personagens, seus diálogos (em que discutem assuntos banais, usam sua linguagem e suas gírias características, tiram sarro um do outro ao mesmo tempo em que deixam claro as dificuldades e os problemas em que estão inseridos), seus momentos de diversão, os instantes em que se abrem e se desnudam emocionalmente e pelo registro dos tipos isolados dentro do confinamento dos espaços – sejam suas casas, as ruas e arredores de um bairro pobre do município de Contagem, parte pulsante da Grande Belo Horizonte. Esses momentos em que os vemos sozinhos têm tanto poder significativo e traduz tanto de suas realidades quanto as cenas em que estão em duplas ou grupos. Todos os personagens centrais (Juninho, Menor, Eldo e Adilson) são homens, garotos que se encontram no fim da adolescência ou no início de suas juventudes como adultos.

'A Vizinhança do Tigre'‘A Vizinhança do Tigre’ é um filme em que a violência e a revolta estão presentes constantemente no interior desses jovens e no meio que os cercam. Ela é extrapolada pelas constantes brincadeiras com armas, pela valorização fantasiada que esses jovens fazem de um mundo de criminalidade que nada mais é do que uma forma de resistência e afirmação pessoal diante de uma sociedade que nunca irá incluí-los e que eles fazem questão de rejeitar (as músicas, os raps, funks e o rock hardcore ou metal que escutam constantemente, cantam junto e criam letras em cima dessas melodias é outra maneira de transbordarem a violência e a revolta que carregam dentro deles). Mas é uma violência contida, reprimida, uma revolta que busca escape nas suas brincadeiras agressivas, nos detalhes e gestos mínimos de cada uma de suas ações, nos pequenos prazeres que experimentam, na maneira como se ofendem ao brincarem um com o outro ou mesmo em que se protegem, na forma como expressam seus desejos e o que pensam sobre o mundo ao seu redor. As pulsões violentas são rebatidas nos afetos que se tornam possíveis pelo encontro com o outro e pela possibilidade de se projetar fora do cotidiano brutal.

Eles vivem dentro de um universo em que a ir à escola para alguns e os pequenos bicos que arrumam como trabalho não lhes dá nada, não lhes garantem oportunidades nem esperança em um futuro melhor. Juninho é um ex-detento, tem que prestar contas constantemente à justiça após sua libertação em regime de condicional, ao mesmo tempo ele deve dinheiro a membros do crime; como seu trabalho como pedreiro (nada além de bicos de fim de semana) não lhe dá o suficiente, precisa voltar a vender droga para poder pagar os traficantes, seus credores. Neguinho e Menor teriam que frequentar a escola, mas não se interessam e praticamente não comparecem às aulas. Eles vivem de suas rotinas de jovens largados ao meio, soltos na vida e sem nada que os motive a não serem eles próprios. Se encontram, fumam, usam drogas, escutam muitas músicas, picham muros, destroem construções em ruínas e perambulam pelo bairro, entre brincadeiras, conversas e instantes de imobilidade. É um tempo presente que se estende na repetição e na falta de objetivos concretos, dias em que as ações se repetem e os prendem ainda mais a uma existência castradora e limitada, mas que nunca retira suas energias, suas resiliências, suas alegrias e suas vontades de viver e interagir com os outros e com o mundo. Uchoa não cria situações que transformam personagens em vítimas passivas, não cria sentimentalismos, muito pelo contrário, ele os retrata cheios de vigor, de vida, de vontades e pulsões. Existe alegria em suas vidas, uma alegria retirada pela complexidade na construção subjetiva desses personagens.

A grande força de ‘A Vizinhança do Tigre’ está em Affonso Uchoa retratar tudo isso de maneira natural, por meio de uma mise-en-scéne orgânica e aberta aos tipos, ações, gestos e espaços. O diretor faz isso sem querer elaborar discursos políticos pré-fabricados e sociologizar sobre uma realidade (e ao fazer isso constrói um longa político de primeira grandeza e atualíssimo). Ele entende seus personagens e sabe traduzi-los, reforça o valor identitário de suas individualidades, sentimentos e ações, por mais banais que essas possam parecer; dá valor aos seus encontros, as sua interações, conversas e diversões precárias que encontram para “encher o dia”, como diz um dos personagens em certo ponto do filme. Cada gesto, cada expressão facial dos personagens tem peso imenso no filme. É por meio desses gestos, dessas ações e inações, dos diálogos, do registro detalhado que a câmera faz da materialidade e da presença física de seus corpos na relação espaço-tempo criada pela encenação de Uchoa que temos personagens extremamente densos, complexos em suas imperfeições e inseguranças, na natural composição dos paradoxos de suas personalidades – frágeis e fortes ao mesmo tempo -, cheios de texturas e que transbordam suas limitações e qualidades, suas características mais humanas, suas alegrias, medos e desejos. Raramente um cineasta tratou seus personagens com tamanho respeito, equidade e consideração afetuosa sincera como Affonso Uchoa faz em ‘A Vizinhança do Tigre’. Cada gesto, cada ação, expressão, olhar e fala dos jovens que vemos na tela são afirmações contundentes da complexidade de suas existências e do valor de suas identidades sendo reafirmado constantemente.

A Vizinhaça do Tigre de Affonso UchoaOutra escolha eficaz de Uchoa é intercalar as cenas entre os personagens, pular de um para o outro sem esquematismos, para depois retomá-los. Esse processo ganha mais força ainda pela inserção de planos estáticos que registram com esmero e de maneira direta e documental recortes dos espaços e ambientes onde eles vivem – sejam fachadas de casas, interiores de residências e seus cômodos precários, construções em ruínas, muros, ruas desertas, personagens anônimos que habitam na vizinhança, planos abertos do bairro tanto durante o dia quanto a noite. A cadência na evolução do filme, sua montagem, é calcada no ritmo natural da rotina e da vida dos personagens, desse microcosmo da periferia brasileira. É um filme de observação minuciosa, de detalhamento dos tipos, ambientes, ações e de um desenrolar próprio do tempo em função das realidades subjetivas retratadas. Não existe um plano descuidado no filme. Todas as construções de quadro são precisas, tanto quanto os posicionamento e movimentos de câmera, os cortes, as modulações da luz na direção de fotografia e a duração dos planos e o que se desenrola no interior do quadro. Uchoa tem total domínio do filme, desde a forma até a evolução discursiva e narrativa.

Voltando a questão do afeto, da procura pela empatia e a identificação no outro, é importante ressaltar novamente como Affonso Uchoa desenvolve isso com uma integridade tocante e uma naturalidade orgânica de encenação, uma cumplicidade total com seus personagens e com o meio que registra. As cenas em que os jovens conversam, brincam como se estivessem brigando ou duelando, se imaginam como criminosos que enfrentam o sistema bem como os momentos em que dão apoio um ao outro, muitas vezes apenas por estarem lado a lado, compartilhando os momentos vividos e ainda em diversas cenas belas e singelas, como duas sequências que envolvem Juninho. Na primeira (a cena que abre o filme) ele lê uma carta que acabou de escrever para um amigo preso (em que busca consolá-lo, aconselhando e a dando força motivacional para o jovem preso), na segunda ele pinta as unhas da mãe com carinho e ternura para que ela fique bonita para ir a um culto religioso. Tudo no filme transborda o que de mais humano e autêntico esses personagens têm. ‘A Vizinhança do Tigre’ é um filme que marca um jeito novo, um frescor e um desejo imenso por novas potências do fazer cinema. Não só um dos melhores filmes brasileiros dos últimos anos, como um verdadeiro farol para novos cineastas e para o espectador. Potente e honesto demais. Filmaço.

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