Por Fernando Oriente
O cinema do húngaro Béla Tarr, desde a metade de sua carreira como cineasta, tornou-se baseado em estruturas formais e dramáticas que o diretor leva à perfeição e elabora até a exaustão, com exatidão e meticulosidade: a construção do tempo como uma presença material e sensitiva, a composição e constante reconfiguração dos quadros pelo uso do plano-sequência, a relação entre os personagens e os espaços e um trabalho cuidadoso em recriar a realidade (o real) a partir do prolongamento das ações e prostrações de seus personagens dentro de um tempo presente que é estendido ao extremo, entre uma espécie de paralisia dos instantes e uma sensação de torpor meditativo e analítico (bem como filosófico e existencialista) que leva o espectador a uma imersão em suas imagens, a um estado de hipnose que contamina não só o publico como as imagens que emanam da tela. ‘O Cavalo de Turim’, seu ultimo longa, realizado em 2011 é um de seus melhores trabalhos e todo universo particularíssimo do cinema de Béla Tarr se encontra no filme em seu melhor estado. O cineasta trabalha dentro de uma paradoxal reconstrução e interpretação o mundo, uma dialética entre o formalismo extremo e os maneirismos de suas construções formais com as questões dramático-históricas do realismo que o diretor usa para compor seu discurso e sua visão de mundo.
Em ‘O Cavalo de Turim’, assim como em seus melhores filmes como a obra-prima ‘Satantango’ (1994), ‘Danação’(1988) e ‘Harmonias de Werckmeister’ (2000) tudo parte da mise en scène primorosa de Béla Tarr. Seu estilo e a densidade de suas imagens bem como a força dramática de seu discurso são estruturados na encenação, que de maneira funcional potencializa e dá razão de ser ao filme (tudo, desde as pessoas, os espaços, a dramaturgia surgem a partir do universo imagético e o tratamento maneirista da imagem e do tempo criado pelo diretor. Tudo é fruto, tudo é originário da mise en scène, não ao contrário), sem cair no vazio, na inércia ou num formalismo raso. É da rigidez e da beleza hipnótica da mise en scène de Tarr que se iniciam todas as qualidades e potências de seus filmes, como fica claro nesse exuberante ‘O Cavalo de Turim’. Béla Tarr constrói seus filmes em longos planos-sequência (em sua grande maioria captados por steadycams, o que dá mais mobilidade às imagens e ações dentro do quadro e às estruturações dos planos), elaborados com um rigor e uma construção e reorganização do quadro assombrosa. Esses planos-sequência não só estendem as ações e o tempo presente de seus dramas como dão força (impressa em cada fotograma) aos acontecimentos, prostrações, fluxos emocionais e conflitos entre seus personagens e os cenários. Seus tipos estão sempre mergulhados em dramas e questões existenciais, bem como em confronto com uma realidade agressiva, um cotidiano banal e uma natureza inóspita. Eles têm que se adaptarem a si mesmos, a suas ideias, suas limitações, desejos e pensamentos bem como enfrentar a força violenta e as impossibilidades impostas pelos espaços, pelas tarefas diárias e pela natureza que os cercam.
Esses longos planos e a forma com que Tarr os desenvolve já são motivo suficiente pra o maravilhamento do espectador; raros cineastas construíram (ou constroem) tão belas sequências e imagens como esses extensos planos do diretor húngaro. ‘O Cavalo de Turim’ se passa todo em uma casa isolada no meio do campo em alguma região remota da Hungria. Os cenários são o interior da casa e a parte externa, o estábulo, o poço, e um gramado que sobe até um pequeno morro onde uma árvore desfolhada marca os limites do campo de visão, tanto do espectador quanto dos dois únicos moradores da casa, um pai idoso e sua filha. Esse espaço delimitado da ação que contrapõe a simplicidade rústica, pobre e claustrofóbica do interior do casebre de pedra com a vastidão da natureza que a cerca é o universo dos dois personagens do filme, mas além desse espaço existe todo o mundo, todo um fora de campo infinito, que tanto público quanto personagens não veem, mas sentem e imaginam a amplitude daquilo que está além do campo de visão. Confinados entre as limitações da casa e seu entorno, presos a uma rotina entediante, desgastante, repetitiva, formada por pequenas ações cíclicas que se repetem dia após dia, pai e filha vivem em um estado de prostração. O velho carrega em seu olhar e seus gestos o fracasso e o rancor, a jovem uma resignação melancólica.
Béla Tarr filma várias vezes as mesmas situações, sempre em planos-sequência, que se repetem a cada dia na vida de pai e filha. A garota veste e despe o pai, ela cozinha batatas que os dois comem com as mãos, sentados à mesa e em silêncio, ela acorda cedo e sempre vai buscar água no poço, os dois vão ao estábulo para alimentar a égua e retirar o esterco. Tudo se repete no filme, mas as cenas são captadas sempre em enquadramentos e movimentos de câmera diferentes, respeitando os fluxos do plano-sequência. A mudança no posicionamento da câmera para registrar os mesmos gestos e ações, a mesma repetição física diária reafirma o caráter recorrente e mecânico dessas ações ao mesmo tempo em que possibilitam Tarr explorar os mesmos gestos sob pontos de vista diferentes, mudando os referenciais de enquadramento, distância e altura da câmera e a relação dessas ações cíclicas com o espaço por meio de diferentes abordagens na relação entre primeiros planos e profundidade de campo, o dentro e o fora de quadro. É uma solução pictórica de se ampliar o registro espaço-temporal de uma série de ações dentro dos mesmos cenários. Por mais que se mude o referencial de visão, as ações e banalidade cotidiana serão sempre as mesmas.
Durante os seis dias em que se passa o filme, a casa e a região onde se encontram está no centro de uma intensa tempestade de vento e um frio seco que faz com que a terra se transforme em poeira que se mistura com as folhas secas que juntas ficam voando ao redor da casa e dos personagens carregadas pela violência do vento que não cessa nunca. Béla Tarr registra o embate de seus personagens com esse ambiente hostil de maneira primorosa. Em longos planos-sequência vemos a filha ou o pai abrirem a porta de casa e saírem diretamente para o confronto com a ventania gelada, a poeira que é atirada em seus rostos e corpos. A câmera os acompanha em travellings, registrando as ações em seus mínimos detalhes. Lentamente acompanhamos seus passos, a dificuldade com que a menina retira água do poço, o esforço com que o velho abre as portas do estábulo e tenta fazer, sem sucesso, que sua égua extenuada puxe a carroça. A dureza de caminhar contra a fúria do vento, o desgaste físico nos gestos, seja tirar o esterco do cavalo ou juntar feno e servir como ração para o animal, seja simplesmente abrir a porta de casa.
Uma das cenas que se repetem constantemente no filme é o pai ou a filha sentados em uma cadeira em frente a uma janela de vidro fechada observando o mundo através dela. De dentro da casa fechada, protegida contra a fúria da natureza, eles observam um pedaço do mundo e se projetam nele, bem como naquilo que imaginam que está além de seus campos de visão. Os personagens, ao sentarem-se em frente à janela e observarem o balé do vento, a árvore solitária balançando no alto do morro em frente à casa, a poeira e a terra a girar no ar, as modulações da luz, a passagem do tempo, o dia lentamente se tornar noite, a escuridão tomar conta do horizonte é o máximo de contato que eles têm com alguma forma de vida que não seja o tédio e a aspereza de seus cotidianos, são seus momentos de fuga, suas aproximações existenciais com algo maior, com uma força pulsante e inexplicável que os fascina ao mesmo tempo que escancara suas limitações. Esse universo que eles vêem projetado através da janela nunca será conhecido totalmente por eles, mas é imaginado e sentido, pode ser no máximo ilusões de uma outra realidade que nunca será a deles. Pai e filha assistindo e se imaginado num mundo que se projeta para eles através de uma janela é como um espectador de cinema que senta em frente a uma tela em branco e se deixa levar, se evade nas imagens que são projetadas nessa tela. Aqui Béla Tarr faz uma das mais lindas alusões ao poder de ver, de assistir e se projetar que o cinema tem.
Raras vezes o cinema captou de maneira tão sensorial e material a força inóspita da natureza. A violência dessa natureza está impregnada nas imagens de Béla Tarr. Ele capta as texturas do vento, da poeira, do frio e do embate de seus protagonistas contra essa fúria incontrolável. A beleza dessas imagens, a força visual que arrebata pelo registro magistral que Tarr faz encanta o espectador ao mesmo tempo em que transmite o sofrimento e a dureza da realidade em que pai e filha vivem. Béla Tarr extrai beleza do colapso de seus tipos, mostra a complexidade do mundo, em que o que pode parecer uma sinfonia belíssima de imagens em movimento não passam de tormentos para aqueles que vivem inseridos nessa realidade recriada. Existe claramente dois papeis: aquele que observa à distância e aquele que vive inserido no meio. Mas o cinema do diretor húngaro atinge tamanho grau de sensorialidade que provoca uma catarse hipnótica em que espectador passivo e personagens ativos passam a dividir os mesmos sentimentos. Projetamo-nos na tela, somos envolvidos pela dureza das situações em meio à beleza das imagens. Sentimos o desconforto ao mesmo tempo em que admiramos a beleza formal magnífica das imagens de Béla Tarr.
Mas ‘O Cavalo de Turim’ tem muito mais em seu discurso. Estamos diante de um filme que aborda o processo de desencantamento do mundo. A realidade repetitiva da rotina cíclica de pai e filha, suas limitações materiais e existências, suas dores e a sensação de imobilidade que os consome são consequências de um mundo em que a reconciliação, a esperança e a redenção estão fora de cogitação. Não existe para os dois protagonistas – bem como para o vizinho que vem buscar bebida na casa deles e faz um longo discurso sobre a degradação de um mundo em ruínas em que estão todos inseridos – a possibilidade de uma real reconciliação, já que essa reconciliação passaria por uma mediação divina; mas o divino está morto. A rotina asfixiante do velho e de sua filha não os levará a lugar nenhum; dia após dia tudo se tornará mais difícil. A égua irá adoecer, parar de comer e de beber e não puxara mais a carroça, o poço irá secar e quanto eles tentarem fugir a estrada estará destruída restando a eles apenas retornar para o casebre e esperar pelo fim dentro da mesma rotina de sempre. Resta aguardar pela interrupção do ciclo de vida, mas sem a promessa de redenção.
Aqui fica claro que o breve prólogo do filme (em que uma voz em off narra quando Nietzsche, em sua passagem por Turim, salvou um cavalo do açoitamento de seu dono e logo em seguida, ao voltar para casa, o filósofo viveu seus últimos instantes de lucidez antes de passar seus dez últimos anos de vida em estado catatônico devido a um colapso mental sofrido logo após salvar o cavalo) é um prenúncio do enunciado que irá conceber o discurso de Béla Tarr em ‘O Cavalo de Turim’. A vida do pai e da filha está condenada a uma eterna repetição (ao ‘Eterno-Retorno’ nietzschiano) sem sentido de uma rotina banal que irá levá-los lentamente até a morte, em meio a um mundo desencantado onde Deus está morto, em que o bem e o mal perderam seus significantes metafísicos e não existe a possibilidade de reconciliação e redenção pelo sagrado. Isso é Nietzsche. Esse discurso de Béla Tarr em ‘O Cavalo de Turim’ nada mais é do que uma leitura de Nietzsche transposta ao cinema pela força de uma mise en scène meticulosamente planejada que materializam em imagens e sequências belíssimas algumas das principais teorias nietzschianas, bem como dão corpo a visão de mundo desse que é um dos maiores cineastas do cinema contemporâneo.
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