‘História da Minha Morte’, de Albert Serra

Por Fernando Oriente

História da Minha morteDesde seus primeiros instantes, na bela sequência da refeição noturna no jardim de um castelo na Suíça, ‘História da Minha Morte’ já inicia o deslocamento em direção ao seu tema central, que será trabalho em camadas, multifacetado, escrutinado e transfigurado em imagens de diversos significantes por Albert Serra. O filme é sobre a morte. Morte de um personagem, de um período histórico, de dogmas religiosos, de estruturas sociais, dos valores da família, de uma classe, da razão, de uma forma de ver e traduzir o mundo. O filme todo é impregnado pelo decadentismo. Ao acompanharmos os últimos dias de vida de Casanova, estamos diante da corporificação em imagens, signos e palavras da decadência como proposta estética bem como agente provocador do aniquilamento do ideário, do espírito e da carne. Um decadentismo que fica exposto na materialidade de ‘História da Minha Morte’ pelo uso da imagem digital de baixa resolução, que Serra trabalha com precisão e como agente diegético de seu filme. A imagem suja traz as impurezas, o surgimento do mal, a ação violenta dos impulsos e o afloramento de um desejo torpe que se nutre da aniquilação do outro.

Assim como havia feito em suas duas principais obras anteriores, Albert Serra se utiliza de personagens clássicos mitificados solidamente no imaginário da sociedade ocidental. Foi assim com Don Quixote e Sancho Pança em ‘Honra de Cavalaria’ (2006) e com os Reis Magos e a Sagrada Família em ‘O Canto dos Pássaros’ (2008). Em ‘História da Minha Morte’ temos não só Casanova (o célebre nobre sedutor, libertino, anticlerical e pró revolução) como também o Conde Drácula, que será figura central na última parte do longa. Serra trabalha esses personagens clássicos de maneira totalmente desglamourizada, evita absolutamente os aspectos épicos de suas personalidades e atos, bem como as explosões dramáticas e se concentra em registrá-los em seus instantes de ações banais, em deslocamentos simples, em diálogos corriqueiros, em falas e pensamentos isolados, em silêncios e em seus tempos mortos. Se bem que o tratamento que Drácula terá na parte final do longa fuja dessa simplificação e se materialize em ações diretas e potências dramáticas muito mais intensas. Para Serra valem os gestos, as expressões dos rostos, o tom das falas. Vale a presença física de seus corpos em cena e as simbologias que carregam e como essas materialidades simbólicas se relacionam com o extra-campo e com as construções imaginárias do espectador. Albert Serra trabalha seus personagens a partir de uma desdramatização de suas presenças e ações em cena relacionada sempre com a mitologia que carregam Ele imprime uma condução e uma cadência anti-naturalistas ao filme, dando por meio de modulações dramáticas minimalistas à beleza seca e cheia de texturas que impregnam suas imagens.

Na primeira parte do filme vemos Casanova em um castelo, com outros nobres e criados, onde discute sobre o valor da escrita, o poder das palavras, a desmistificação do cristianismo, a atração e os encantos das mulheres e a proximidade de uma revolução. Ele encara o nobre decadente, que sente as mudanças, a morte de uma era, o fim de sua classe e dos valores que regeram a sociedade por séculos. Serra prolonga as sequências em que os personagens interagem de maneira fria, se deslocam com lentidão ou se deixam prostrar entre divagações e longos instantes de silêncios. A mise-en-scéne é composta por um registro que varia o distanciamento analítico da câmera diante da matéria filmada, em planos praticamente estáticos em que Serra oscila entre a imagem aberta em plano médio ou em closes que extraem o máximo dos rostos e dos gestos de seus tipos. A evolução é em elipses, a todo custo o diretor evita os arroubos dramáticos. A secura, o sarcasmo e a observação dão o tom às sequências. Serra trabalha a força das imagens pelo que elas revelam dos personagens e espaços dentro da composição dos quadros bem como sempre remete essas imagens ao fora de campo, aquilo que sabemos, imaginamos, mas nunca vemos. O minimalismo de Albert Serra serve para fortalecer a presença carnal e material de seus personagens e suas ações na tela e relacioná-las a um universo gigantesco que está sempre no extra-campo.

História da Minha Morte_Albert SerraA sujeira da imagem, a impureza que anuncia a proximidade da morte – ou das muitas mortes – é transposta para o registro direto de ações, sejam escatológicas, como a longa cena em que Casanova se deleita ao defecar, ou na constante presença do personagem comendo sem parar, sempre com as mãos. Frutas ou biscoitos, a câmera registra minuciosamente Casanova comendo com prazer, existe uma relação direta da maneira como a comida é transfigurada em significante do desejo e das pulsões do personagem. A merda, a comida, o vinho, os livros, o mobiliário, as roupas, perucas, maquiagens e adereços tudo é trazido para a superfície das imagens. Serra funde as ideias e os objetos numa mesma frontalidade de registro. Tudo isso compõe a construção de seus personagens, suas personalidades e a relação que eles têm com os espaços que interagem e com as situações dramáticas propostas.

Após abandonar o castelo, Casanova e seu criado Pompeu seguem para o sul da região dos Cárpatos, e acabam se hospedando numa casa camponesa onde mora uma família com o pai, a mãe e três belas filhas jovens. Nessa parte o filme vai claramente de deslocando e se abrindo em direção à exploração dos desejos, da sexualidade, da crueldade e da presença de forças maiores escondidas numa natureza perversa que cerca o local. Aqui temos a corporificação sensorial cada vez maior da fusão entre pulsão, sexo, rancor e morte tomando conta de cada plano. As três meninas transpiram erotismo, sentem-se presas em suas rotinas camponesas banais e nas obrigações e restrições da vida em família. O pai e a mãe são figuras amargas, vivem e personificam o desencantamento do mundo. A presença de Casanova, com sua figura aristocrática, com as histórias de vida que conta e com seu desafiador e cínico desejo expresso em gestos e olhares pelas jovens desestabilizam o ambiente e a vida do local. Novamente Albert Serra usa a força das construções imagéticas para conferir sensorialidade e guiar dramaticamente o filme. A baixa resolução e as texturas sujas e imperfeitas das imagens, aliada a uma luz sempre sub-exposta criam sequências onde os desfocamentos, a ausência de nitidez e o embaçamento esfumaçante tomam conta das cenas. Esses recursos formais trazem o filme para a superfície do plano, fundindo personagens e cenários, tornando os planos de fundo próximos do abstrato e concentrando a dramaticidade do quadro nos primeiros planos. É a construção formal de Serra que amplia as sensações de desconforto, a onipresença das ameaças, a confusão e a violência de desejos próximos a se materializarem. É a base da composição de seu discurso fílmico.

'História da Minha Morte'Nesse momento, após conduzir precisamente o filme em direção a decomposição física e espiritual dos personagens e do mundo que representam e estão inseridos, é que surge o Conde Drácula. Como um agente direto do mal, do desejo, do poder, do erotismo e da expiação, ele entra em cena como uma presença fortíssima, uma figura composta dentro dos conceitos típicos do anti-naturalismo de Serra, mas com potências mais fortes. O Drácula do diretor catalão tem uma presença física e uma materialidade fascinante, assustadora e sedutora. Com ele em cena, Albert Serra introduz de vez o pesadelo e o horror na estrutura dramática do filme. Esses elementos tornam-se a matéria central diegética e ao mesmo tempo simbólica do longa.

Drácula trará não só a morte para Casanova e a estrutura familiar dos camponeses como irá liberar de maneira animalesca o desejo e o erotismo nas três irmãs, que por meio de sua sujeição a Drácula transformam suas pulsões e rancores em ações eróticas, cruéis, violentas e vingativas. Ele as liberta pelo mal, pela abjeção e pela entrega aos desígnios da carne, do espírito e do sangue. O conde transforma as três jovens na clássica mitologia das três noivas vampiras de Drácula, mulheres altamente sexualizadas e poderosas. É por meio de Drácula e suas significações simbólicas e pela força destruidora, erótica e vingativa das três jovens transmutadas em desejo aniquilador pelo sobrenatural horror vampiresco que Casanova irá encontrar de frente sua morte. A matá-lo, Albert Serra mata toda uma casta européia, toda uma ideia de sociedade estruturada em valores iluministas e na razão. Mas a morte (decadência, finitude e decomposição) se estende para todos os lados; morrem os valores familiares, morrem os dogmas cristãos, morrem a clareza e a limpidez do ver o mundo. Essas mortes estão nas ações encenadas, na sujeira da imagem, na impureza que contamina a dramaturgia e na sensorialidade erótica da pulsão de morte que Albert Serra usa para construir seu filme. E no final, tudo se personifica num grito, um urro que é misto de orgasmo, crueldade e desejo incontrolável. ‘História da Minha Morte’ é muito mais atual do que uma visão desatenta pode sugerir.

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