‘A Felicidade das Coisas’, de Thais Fujinaga

Por Fernando Oriente

Em seu primeiro longa, a cineasta paulistana Thais Fujinaga consegue atingir uma contundente potência realista. A partir de situações dramáticas corriqueiras, o filme apresenta reflexos que remetem à realidade social e econômica do Brasil nos anos 2010, bem como as determinações com que essa realidade afeta a subjetividade de seus personagens. “A Felicidade das Coisas’, dentro de sua evolução narrativa e sua construção discursiva, oferece pontuais arestas para o espectador relacionar o que vê na tela com mundo concreto em que ele próprio vive. A relação, e seu conjunto de mediações, ente o particular e o universal, entre a evolução diegética do discurso fílmico e a totalidade dentro da qual estas relações se dão, compõem subsídios daquilo que Lukács considerava como elementos determinantes para a verdadeira força contida na ficção realista.

O longa acompanha Paula, uma mulher de 40 anos, grávida de sete meses e que passa uma temporada com seus dois filhos e sua mãe na modesta casa de praia da família em Caraguatatuba, litoral norte de São Paulo. O principal objetivo de Paula, durante esses dias, é instalar uma piscina no jardim da casa. Essa tarefa se torna quase uma obsessão para a protagonista, que vê nesse ato de consumo – a piscina – um escape para os problemas de sua rotina. Um dos grandes méritos de Thais Fujinaga é introduzir esses problemas de forma natural e progressiva no interior do cotidiano banal da família em férias, que surge na tela em cenas isoladas, intercaladas por pequenas elipses.

Gradualmente o espectador passa a perceber que a família passa por problemas econômicos, que a relação entre Paula e o marido (que se encontra em São Paulo e não aprece no filme) está distante e fria, que seu filho pré-adolescente sente falta do pai e deseja, cada vez mais, se descolar do núcleo familiar e experimentar a vida por conta própria, bem como a mãe de Paula se mostra ausente e alienada dos problemas da vida filha.

A piscina, e sua trajetória ao longo do filme, assume um papel dramático tanto material quanto simbólico. Ela canaliza os desejos e as contradições que Paula enfrenta em sua vida. Vai de promessa de felicidade e diversão à consumação da impossibilidade de se obter isso. As determinações concretas da situação econômica do país são muito mais determinantes e condicionantes da realidade objetiva em que Paula e sua família estão inseridas do que qualquer desejo subjetivo.

Por meio de uma construção discursiva coesa e uma mise-en-scéne que apreende nas cenas elementos das relações materiais imantes que se dão no interior da realidade concreta de seus personagens, Fujinaga consegue remeter os dramas nucleares de uma família de classe média à totalidade da conjuntura socioeconômica do país. A crise financeira da família faz com que Paula não tenha dinheiro para comprar os materiais básicos para que a piscina seja instalada e, pior ainda, não possa terminar de quitar o valor pago em prestações por essa piscina – devido ao fato que seu marido, em São Paulo, usou esse dinheiro reservado para pagar dívidas mais urgentes.

Thais Fujinaga não concentra todo o discurso fílmico nesses problemas financeiros de Paula, eles simplesmente aparecem recorrentemente na diegese como uma força exteriorizada que vai minando aos poucos a precária estabilidade emocional dessa mulher, uma típica representante da classe média remediada do Brasil, que sente cada vez mais os efeitos das crise do capital que passou a determinar a existência da imensa maioria da população brasileira a partir do inicio da década de 2010, mas que tem suas raízes bem anteriores a este período.  

As cenas diretamente ligadas aos problemas financeiros da família não estão ausentes do filme, elas apenas surgem como sequências de mesmo valor diegético que as demais, e são sempre intercaladas pelos momentos em que o dia a dia corriqueiro dos personagens ocupa a tela. Mas o peso crescente da falta de dinheiro constantemente contamina e cria novas tensões latentes que se incorporam ao cotidiano desses personagens. A construção progressiva das dificuldades econômicas que oprimem Paula surgem em cenas em que a vemos discutindo com os instaladores de piscina, tentando negociar mais barato os materiais para a fixação da piscina no jardim, pedindo mais tempo ao vendedor para quitar as parcelas que deve e conversando com o marido por celular (ou via troca de mensagens) – em que cada uma dessas conversas mostra, por um lado, a falta de dinheiro e as dívidas do casal, e, de outro, como a relação entre eles está apartada e conflituosa.

Outo ponto alto do filme é a forma como a diretora consegue, em todas as cenas do longa, por meio de sua encenação precisa, impregnar as situações dramático-narrativas de um realismo objetivo-imanente – em que percebemos a total naturalidade destas situações e a interação orgânica dos personagens com os ambientes em que estão inseridos. Por outo lado – por meio de olhares, frases esparsas, fragmentos de diálogos ouvidos no extracampo (uma recorrência constante ao longo de todo o discurso fílmico) – o filme expande a atomicidade do cotidiano da família em direção dialética aos elementos externos e totalizantes que determinam uma ameaça ao equilíbrio familiar.

As opções de mise-en-scéne de Thais Fujinaga – como a ótima escolha pela predominância de planos de conjunto e planos de situação (com a câmera afastada à distância média dos personagens e suas ações), intercalados com eventuais closes e planos gerais -, uma abordagem direta e frontal das situações dramáticas, a boa direção de atores, o domínio da evolução dramático-narrativa na construção da enunciação, o compromisso com a materialidade dos personagens e dos espaços, entre outros elementos formais-discursivos muito bem utilizados, deixam claro o talento da diretora para imprimir realismo e densidade em seu filme, bem como, a partir desse realismo, englobar camadas e mais camadas que extrapolam as questões presentes na narrativa.

E não é nenhum clichê afirmar que ‘A Felicidade das Coisas’ é um belo longa de estreia que aponta para um futuro muito promissor para a carreira da cineasta.

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