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Cinema do maravilhamento: ‘A Forma da Água’ e ‘Sem Fôlego’ (Wonderstruck)

Por Fernando Oriente

É curioso como dois longas lançados em 2017 e que entraram em cartaz no Brasil no início de 2018 sejam representantes tão evidentes de um tipo de cinema que está entre o que de melhor temos na produção atual, mas que muitas vezes é relegado ao segundo plano ou tachado de infantil e maniqueísta por grande parte da crítica e da cinefilia. ‘A Forma da Água’, de Guillermo Del Toro e ‘Sem Fôlego’ (Wonderstruck), de Todd Haynes, são filmes que existem em função de seu caráter espetacular, na sua forma depurada e carregada de tinturas e virtuosismos e na intensidade da reação que provocam no espectador: o maravilhamento. São duas obras que só podem existir como e pelo meio cinematográfico. É do universo exclusivo da linguagem, gramática ou elementos estruturantes do cinema que esses dois filmes conseguem ser tão potentes, encantar e carregarem um discurso cheio de intertextualidade e possibilidades de apreensão. Tanto Del Toro quanto Haynes se dirigem ao emocional, ao reativo do público. Filmes de sensações, vibrações e emoção, que enaltecem a força das tensões e conflitos na diegese, que carregam em sua estrutura a importância fundamental que a mise-en-scène tem para o devir cinema. ‘A Forma da Água’ e ‘Sem Fôlego’ existem unicamente dentro daquilo que a encenação cria e impulsiona.

A Forma da Água

A Forma da Água

A honestidade com que Haynes e Del Toro trabalham a matéria de seus filmes, respeitando e ao mesmo tempo sendo ousados ao manipularem os códigos do cinema de fantasia, fazem ‘Sem Fôlego’ e ‘A Forma da Água’ atingirem todos os níveis de eficiência que deles se podia esperar. Os realizadores não têm medo de mergulhar na fábula, no artifício, no âmbito moral que a própria evolução narrativa de seus filmes engendra. São longas que operam dentro de códigos de valores: o bem contra o mal, a jornada de seus protagonistas para se autodenominarem, a luta pela liberdade de existir em meio a um mundo opressor, a pureza e nobreza de valores éticos, sacrifícios e heroísmos. Uma ética da moral que pede que os diretores assumam um lado, defendam valores que acreditam e não tenham medo de retratar a dualidade de conflitos posta na sociedade. Não se trata aqui de impor um mundo binário, maniqueísta. Tanto Del Toro quanto Haynes sabem que não podemos reduzir a existência a apenas dois lados, que nem todo mal é mau e nem todo bem é bom. O que eles fazem por meio desses dois longas é recortar a realidade, implodi-la de suas aspirações de realismo ou naturalismo e operarem dentro do mundo do simulacro, dos arquétipos e da simbologia. Como o próprio título original em inglês de ‘Sem Fôlego’ já indica, o “maravilhar-se” está na gênese de tudo aqui envolvido – e dessa definição ampla, podemos trabalhar como toda uma noção de maravilhamento também é um dos pilares estruturantes do dispositivo cinematográfico desde o surgimento das imagens em movimento.

‘Sem Fôlego’, por mais que seja a adaptação do livro de enorme sucesso, consegue fazer com que a enunciação proposta pela literatura seja totalmente recriada pela gramática do cinema e torne-se um discurso de cinema puro. Um filme que dialoga com a história do cinema americano, particularmente o cinema mudo dos anos 1920 e o universo fílmico riquíssimo da década de 1970 nos Estados Unidos. A divisão da narrativa em dois momentos distintos de evolução e ambientação, interligados pela energia pulsante da mise-en-scène de Haynes, faz com que o diretor use características estruturais de um fazer cinematográfico de períodos passados (anos 20 e 70) e os redimensione com o que de mais atual as tecnologias digitais permitem hoje. Ele não copia um fazer antigo, ele atualiza esses códigos e entrega um longa com o frescor daquilo que de melhor o bom uso das técnicas e construções atuais podem oferecer. Toda a obra de Haynes tem esse diálogo com outros cinemas, seja na revisão e atualização dos melodramas clássicos em ‘Longe do Paraíso’ (2002) e ‘Carol’ (2015), na releitura do cinema underground em ‘Veneno’ (1991) ou na apropriação do universo glam dos anos 1970 em ‘Velvet Goldmine’ (1998), sem contar o desbunde estético-discursivo do delicioso ‘Não Estou Lá’ (2007).

Wonderstruck

Sem Fôlego

‘Sem Fôlego’ é um tour de force de encenação, com uma câmera inquieta que, em constante movimento, aprisiona os dois protagonistas na claustrofobia de ângulos fechados que são sempre intercalados por planos abertos furiosos de multidão, de espaços superlotados de gente, ambientes amplos em que a tensão da cidade grande primeiramente oprime seus personagens, mas sempre se abrindo e se oferecendo como local de possibilidades de libertação e acolhimento de suas individualidades. A tudo isso junta-se uma direção de arte impressionante e uma fotografia primorosa, cada elemento soma-se a outro para dar forma a esse caldeirão de potência visual e arrebatamento.

No filme de Haynes tudo é construído em função dos deslocamentos, do movimento vertical, da busca incessante da menina e do garoto por aquilo que seus desejos pedem. Mas, antes de tudo, é um longa que trabalha o encontro desses protagonistas – marginalizados, órfãos e solitários – que somente quanto estiverem frente a frente entenderão suas histórias de vida e desse encontro não descobrirão soluções, mas sim novas possibilidades de existir de maneira mais plena, no afeto, na cumplicidade e no entendimento mútuo de seus vínculos. ‘Sem Fôlego’ se realiza e se torna grande pelo universo cinematográfico posto e materializado, que só existe em função daquilo que a mise-en-scène cria. Todd Haynes é o autor de um mundo ficcional vibrante, que se materializa nas imagens e naquilo que as imagens propõem existir em torno delas mesmas e para além delas. O tom fabular, os aspectos que sugerem a existência do fantástico em meio a vida ordinária são a matéria propulsora dos dramas, da intensidade narrativa e do discurso que desses processos surgem. Cinema potente, que reverbera, que joga o espectador no interior de seu universo frenético e o conduz lado a lado com seus protagonistas e com eles se depara com o maravilhamento do viver dentro de um mundo expandido, que só pode existir dentro do núcleo daquilo que a encenação de Haynes cria de maneira tão especial, com paixão e entrega.

‘A Forma da Água’ é mais um belíssimo mergulho de Guillermo Del Toro na fábula. Uma jornada de libertação metafísica da protagonista que só se torna possível pelo fantástico, por destruir qualquer tentativa de se pensar o mundo por meio de uma mentalidade racionalista ou do naturalismo, pela crença do diretor (a mesma crença que move suas heroínas e heróis) em que existe um lado mágico em meio a dor e a tristeza do mundo oficial que não só nos encanta, mas opera como espaço de possibilidade, de libertação e materialização dos desejos mais intensos. Del Toro não esconde o lado sórdido do mundo, não tranca seus filmes na fabulação estreita, ele mostra e carrega nas tintas do lado abjeto da vida, para a partir daí potencializar a fantasia no interior da dramaturgia. Tudo o que vemos na tela em ‘A Forma da Água’ – dentro de um primor do décor, do virtuosismo da direção de fotografia, dos criativos planos que Del Toro compõem usando os mais diferentes enquadramentos de uma câmera que não se furta a mudanças de eixo radicais – é a afirmação material daquilo que os valores morais intrínsecos aos conflitos propostos pelos códigos da fantasia promovem na dramaturgia e principalmente na forma como o espectador é arrebatado pelo maravilhamento desse mundo fantástico confeccionado pelo cineasta mexicano. Assim como em seus dois melhores trabalhos – ‘A Espinha do Diabo’ (2001) e ‘O Labirinto do Fauno’ (2006), aos quais ‘A Forma da Água’ agora se junta, o novo filme de Del Toro engrandece os elementos fabulares e oníricos por meio de uma constante variação entre o esplendor poético do fantástico com sequências em que a ferocidade do mundo “real” desencantado irrompe na tela com  aspereza e brutalidade, aqui representadas pelo agente do governo americano vivido por Michael Shannon, todos aqueles que o cercam, bem como pelo espiões soviéticos e por qualquer personagem que não divida com a protagonista a crença e o desejo de se ir além, de se acreditar no impossível, um impossível tornado realidade por aquilo que a mise-en-scène de Del Toro cria com tanta precisão e beleza visual.

Como Todd Haynes, Del Toro faz uso primoroso das possibilidades do digital, que, com criatividade e elegância, confeccionam esse refúgio fantástico em que personagens podem sempre superar suas limitações e encontrar as autodeterminações que libertem seus desejos e sonhos e materializem suas fantasias. ‘A Forma da Água’, bem como toda a obra de Guillermo Del Toro, transcende o aspecto pueril das fábulas infantilizadas. Temos cenas de violência gráfica intensa, crueldade e um erotismo que conferem texturas muito mais intensas aos personagens e dramas. O romance impossível entre a faxineira Elisa Esposito (Sally Hawkins) e a criatura aquática torna-se muito mais forte pelo fato de não se restringir à idealização, ao metafórico ou a um platonismo romântico. O casal consuma sua paixão em sexo, no gozo erótico e aí Del Toro insere elementos que energizam e solidificam essa união impossível entre o humano e o ser fantástico. “A Forma da Água’ é mais um filme em que Del Toro, ao criar um universo dramático-narrativo de encantamento e estilização formal, promove o enfrentamento da dureza fria do viver na banalidade cotidiana com as possibilidades que se abrem pelo maravilhamento do fantástico. Uma negação da resignação e um ato moral de fé nos valores mais nobres que a fábula clássica enaltece. Se seus personagens maus podem ser vistos como representações maniqueístas dessa maldade, esse maniqueísmo é dado como apenas mais um elemento estruturante do desencanto de um mundo sem fé na transcendência, uma transcendência que só o cinema pode oferecer. É ao vencer esse arquétipo do mal, que os personagens de Del Toro são elevados pelo maravilhamento (compartilhado passionalmente pelo espectador) a um exercício de tornar-se aquilo que desejam, a viver o impossível tornado real pela fantasia, uma fantasia política de resistência que os levam a agir e vencer suas pequenas grandes batalhas.

The Shape of Water

A Forma da Água

Em meio a um impasse que toma conta dos filmes que se pretendem sérios, de obras que evitam as intensidades dramáticas e os conflitos, ao universo fílmico “arthouse” engessado em discursos ocos de boas intenções realistas, é esse cinema do maravilhamento de ‘A Forma da Água’ e ‘Sem Fôlego’ que apresenta um verdadeiro frescor, cheio de vida e originalidade, que encanta e levanta questões, que reverbera na intensidade das tensões dramáticas e situações narrativas, que discute política e socialmente a vida contemporânea. Que faz sonhar com algo a mais, um cinema de resistência e fé no que de mais humano a fantasia pode significar com suas simbologias e possibilidades de leitura. É também, como sempre foi, pelo encantamento que os filmes nos tocam, ao nos arrebatar no e pelo espetáculo, que traz reflexão em meio ao maravilhoso recriado e tornado matéria em imagens, sombras e sons. É o que nos permite mergulhar nessas histórias fantásticas que nos arrebatam pela força de seus discursos cheios de camadas e intertextos e pelo acreditar no esplendor do impossível tornado possível exclusivamente pelo cinema.