Por Fernando Oriente
Embora presentes de forma marcante e incontornável, não são a metamorfose, nem a reconfiguração das identidades, bem como tampouco é a impossibilidade de auto-definição existencial que caracterizam o núcleo do cinema de João Pedro Rodrigues. A essência de seus filmes é o tornar-se, o vir a ser; é o devir. Devir dos personagens, de seus desejos e impulsos materializados na superfície da tela pelo devir das imagens, pelo devir do quadro. Um devir onipresente na composição, na evolução espacial e temporal de seus planos e sequências, na fluidez ímpar de suas construções; na frontalidade da mise-en-scéne que constituí seus discursos. Um devir que impõe jornadas, tanto interiores quanto exteriores, que coloca seus personagens em deslocamentos, em movimento; que os faz seguir adiante conduzidos por sentimentos, de busca, de não-pertencimento e por pulsões de transformação. São apenas a partir desse princípio do devir que surgem em cena as metamorfoses e reconfigurações identitárias e existenciais. Mais do que em todos os seus longas anteriores – incluindo aí a obra-prima ‘Morrer Como Um Homem’ (2009) – é em seu mais recente filme ‘O Ornitólogo’ que esse processo pode ser percebido de maneira mais intensa.
Vemos nas primeiras cenas Fernando, o protagonista do filme, solitário em meio à natureza. Acampado à beira do Rio Douro, deslocado em uma região ao norte de Portugal, esse ornitólogo nada tranquilamente nas águas do rio enquanto é observado pelo espaço que o cerca, detém-se longamente a observar pássaros pelo seu binóculo, desce o rio em um caiaque procurando captar e registrar o ambiente e as espécies animais presentes no entorno, grava anotações em seu pequeno gravador portátil. Mas Fernando não é só observado por essa natureza, seus espaços e espécimes. Eles também o observam. As primeiras sequências do filme já sugerem uma suspensão do tempo em que o protagonista se encontra. Após algum tempo de aparente serenidade, o caiaque cai em uma correnteza forte e Fernando sofre um acidente. A partir desse ponto, João Pedro Rodrigues promove uma ruptura total e o mundo representado na tela perde sua linearidade e uma nova inteligibilidade é posta ao espectador. Ao acordar do acidente até o final de sua jornada, o ornitólogo irá trilhar um caminho de encontros que o levarão a descobertas e mutações.
É na construção e na forma como são encenados esses encontros, bem como os deslocamentos de Fernando pelos espaços, que o filme adquire cada vez mais seu caráter transcendente e metafísico. Por meio da composição dos elementos dramáticos, pelos climas criados por João Pedro Rodrigues para cada plano, por meio da tensão instaurada a cada nova cena, das surpresas e dos acasos que cruzam o caminho de Fernando, dos seus impulsos que se misturam com a sensação paradoxal de deslocamento e pertencimento que vão dominando-o que o diretor português faz de ‘O Ornitólogo’ um filme em que a essência existencial de seu personagem central assume um papel cada vez mais forte quanto mais forte é a relação com que o exterior (material e imaterial) se manifesta não só em seu interior, mas também em seu corpo. A metamorfose existencial, o vir a ser de Fernando é dado pelo devir dos elementos que o cercam, em suma, pela potência das imagens e das situações que elas evocam e sugerem.
‘O Ornitólogo’ tem muito de sua força na relação complexa que João Pedro Rodrigues faz do campo e contra-campo. A dramaturgia é oferecida tanto por meio daquilo que ele vê (e como ele vê) – as imagens que a câmera nos fornece de sua visão – bem como da maneira com que ele é constantemente visto e notado por um espaço que transcende a lógica racional e o campo material – as imagens que a câmera nos fornece das múltiplas possibilidades de como o personagem é visto, notado, enxergado. É o aspecto ambivalente, sensorial e misterioso da floresta por onde Fernando se desloca (um espaço reconfigurado e ressignificado por meio da adulteração promovida na significação das imagens em uma nova ordem de apresentação de signos que transcendem uma visão aparentemente realista dos espaços) que começa a promover a jornada do personagem e do espectador por um universo cada vez mais fantástico, simbólico. O filme se abre às possibilidades de Fernando impender o processo de tornar-se já presente no enunciado do filme e que irá solidificar-se como o discurso central do filme.
João Pedro Rodrigues vai gradativamente preenchendo o caminho de Fernando por encontros com tipos que seguem essa mesma composição simbólica, confrontos que irão dar início ao incontornável processo de transformação a que ele está destinado (aqui voltamos a um dos elementos chaves do cinema desse realizador português, mas que como já foi dito, só é possível dentro do devir que condiciona seu discurso e sua estética). Desde as peregrinas chinesas a caminho de São Tiago de Compostela, passando pelo pastor de ovelhas surdo-mudo chamado Jesus, um estranho grupo de mascarados que realiza rituais pagãos à noite em meio à floresta (encontro esse que oferece uma das mais fortes cenas do filme – o banho de urina que Fernando recebe na cabeça de um membro desse grupo enquanto se esconde em baixo de uma rocha), até um trio de amazonas com seus corpos nus exalando força e poder; todos os personagens que cruzam seu caminho interagem com ele no sentido de causar choques, alterar os estados de espírito e lucidez e promover no personagem o afloramento de seus sentimento e impulsos, desde o deslocamento existencial até a eclosão do desejo e do erotismo. E é o erotismo uma das chaves existenciais no cinema de João Pedro Rodrigues. Um erotismo que mais do simples pulsão é agente transformador, algo que promove o vir a ser de seus personagens, o núcleo das metamorfoses.
O erótico surge tanto do desejo da carne quando do espírito, tanto no gozo quanto na dor e na morte. Um erotismo que João Pedro Rodrigues associa ao metafísico, no caso de seu cinema, um metafísico cristão, católico. O desejo sexual é um reverso e ao mesmo tempo uma afirmação na carne da ascesse cristã, um elemento herético de força incontrolável, um desejo latente que flagela e “santifica” o corpo. Esse erotismo onipresente deixa-se aflorar de maneira mais intensa ao longo de ‘O Ornitólogo’ na iconografia de imagens sacras que Fernando encontra nas casas em ruínas escondidas em meio à floresta por que passa em sua jornada, na forma como seus dedos penetram a ferida de um cadáver como se estivessem penetrando um orifício erógeno de um corpo vivo. Mas é principalmente na relação que se estabelece entre Fernando e o pastor Jesus que o erótico transcende a narrativa. Num primeiro momento eles se entregam ao sexo, com seus corpos nus rolando pela areia à beira do rio. No momento seguinte, após o gozo, temos um novo embate entre os dois corpos, só que agora tomado pela violência, e um assassinato emula os mesmos movimentos que antes tínhamos visto como trepada.
Dentro dessa chave do desejo, da pulsão erótica, da dor e do prazer, de uma mortificação católica redentora (que santifica pela dor) que a metamorfose acontece e que a reordenação das identidades é imposta na matéria corpórea e na alma por meio da superação de uma morte alegórica numa ressurreição simbólica. Após Fernando ter suas pulsões trazidas à tona devido à jornada, aos esforços físicos do corpo em meio ao desgaste dos deslocamentos por espaços inóspitos, ao choque dos encontros com os diferentes personagens, à exposição erótica a uma metafísica cristã, mas principalmente após as materializações do desejo na carne e no espírito, no gozo e na morte que João Pedro Rodrigues promove, no interior da dramaturgia, na superfície dos planos, no desenrolar narrativo, um processo que irá fazer com que Fernando se torne Antonio, Santo Antonio. Completa-se, por meio do devir, o arco dramático do personagem; fecha-se, em aberto, o discurso notável que faz de ‘O Ornitólogo’ um filme enorme.
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