‘Amante Por Um Dia’, de Philippe Garrel

Por Fernando Oriente

A fugacidade e a brevidade de um gesto, de um olhar, de um afeto. A duração efêmera de relacionamentos que ressoa a fragilidade e a instabilidade do estar com o outro. ‘Amante Por Um Dia’, novo longa de Philippe Garrel, se funda nesses elementos para que o diretor possa novamente desenvolver um discurso sobre os deslocamentos do amor e do desejo em um mundo em que a desilusão e a fragmentação das relações surgem como horizonte comum a todos. Um pouco menos cético, mas não menos melancólico, do que não grande maioria de seus filmes, Garrel aqui vislumbra breves possibilidades de esperança e de trocas afetivas que podem ser renovadas ou surgirem onde antes só havia desalento e fracasso.

Amante Por Um Dia

‘Amante Por Dia’ é um recorte temporal na vida de três personagens. Jeanne, após um rompimento amoroso deixa o apartamento do namorado e vai morar com o pai, o professor universitário Gilles. Ele, por sua vez, divide a casa com sua nova amante, Ariane, uma jovem aluna da mesma idade que sua filha. Os três passam a conviver e a compartilhar descobertas, medos, segredos, desejos e sentimentos, o que permite encontrarem novas características em cada um que, ao mesmo tempo, refletem e possibilitam novas formas de se verem. As trocas, a cumplicidade, o carinho e o estranhamento que um provoca no outro fazem dessas relações um tecido de novas experiências que alimentam renovadas e antigas expectativas em relação ao viver em companhia de alguém.

Embora seja Gilles que aproxime Jeanne de Ariane, são as ações, reações e anseios das garotas que movem todo o discurso e a evolução dramática, tanto naquilo que fazem de suas vidas como na maneira como reagem às situações provocadas pelo professor. A relação das duas jovens é construída em um espelhamento em que semelhanças e diferenças convivem lado a lado. O afeto, a cumplicidade assim como as desconfianças que ligam as duas, ao mesmo tempo jogam luz sobre aquilo que têm em comum – a juventude, o desejo de viver as emoções com intensidade, as incertezas sobre o amor, as possibilidades de se auto definirem subjetivamente – bem como sobre o que as afastam – Ariane se entrega às pulsões e quer viver intensamente seus desejos enquanto Jeanne associa o estar com alguém à autenticidade de seus sentimentos. Duas visões do amor e do sexo, mas que por mais que possam parecer antagônicas, se completam e se interligam.

Como é comum no cinema de Garrel, fidelidade, possessividade, insegurança e traição são temas centrais em ‘Amante Por Um Dia’. Em um mundo onde relações são sempre efêmeras e frágeis, estando sempre na iminência de serem desfeitas, se entregar apenas a uma pessoa e abrir mão de pulsões eróticas e fantasias amorosas é uma forma precária de sustentar, mesmo que na ilusão, a ideia de que um relacionamento pode ser algo que ele nunca será: completo e duradouro. Como se já cientes da proximidade do fim, esse estar com o outro na vivência real de um amor é uma interrupção temporária da condenação à viverem sós. Essa entrega intensa e fugaz ao outro, de corpo e de alma, nada mais é do que um adiamento da solidão inevitável. Mas é exatamente nesses breves períodos de entrega, que o amor e o desejo encontram possibilidades materialistas de concretude.  E para Garrel, “viver sem ter amor não é viver”.

Construído em elipses e recheado de situações dramáticas breves, ‘Amante Por Um Dia’ recorta a diegese em uma sucessão de instantes no dia-a-dia de seus três personagens centrais. Um filme que manipula a temporalidade como se promovesse a suspensão e o alargamento das sensações, emoções e conflitos de Jeanne, Ariane e Gilles no espaço-tempo discursivo do filme. Mediadas sempre pela palavra – pela força significante dos diálogos e frases, além da lacônica narração em off – e pela potência significante das imagens, as relações entre os personagens e desses com o universo que os cercam ganham dimensões, texturas e nuances que fazem seu estar no mundo uma aguda reflexão sobre as incertezas, possibilidades e impossibilidades de viver em meio a uma existência em que o amor é mais idealização do que concretude e o abrir mão de si para se doar a outro (ou ao menos a uma ideia desse outro) nada mais é do que um idílio poético em meio à prosa do viver cotidiano.

'Amante Por Um Dia'Novamente Philippe Garrel nos introduz em seu universo cinematográfico em que as representações de uma realidade recriada na encenação são apenas simulacros de vida totalmente mediados pela poética das imagens e da evolução dramática. O mundo retratado por Garrel só existe dentro do seu cinema ímpar, no seu preto e branco transcendente de luzes, reflexos e sombras, na cadência reflexiva dos planos, nos espaços potencializados pela mediação da câmera, nos travellings que acompanham personagens em deslocamento – caminhando sozinhos ou lado a lado em meio à conversas –  e nos closes que revelam rostos através dos quais podemos penetrar nas profundidades existenciais que eles abrigam – uma profundeza de incertezas, afetos, dores, desejos, frustrações, esperanças e alegrias. Um cinema em que o interior das personagens é um tecido dramático vivo que determina as sensações, ações e projeções dos tipos, da mesma forma como se lançam ao exterior e refratam o mundo que os cerca.

Em ‘Amante Por Um Dia’, a melancolia, a incapacidade de sustentar uma relação com o outro, a frustração de tentar em vão domar os conflitos do desejo e a fugacidade do amor em um mundo de pulsões em constante movimento dividem espaço com uma ternura do olhar que permite que seus personagens vislumbrem sutis possibilidades de uma maior autodeterminação subjetiva, recortes temporais em que suas paixões se materializam.  Sem abdicar da crença na efemeridade das relações dadas pelo desejo, Garrel sinaliza novas probabilidades de uma vivência materialista dos afetos.

Seguir vivendo, experimentar prazeres efêmeros, desejar, amar, gozar, se doar, frustrar-se, iludir-se e tentar se preservar são processos inevitáveis, mecanismos existências aos quais é impossível escapar. No mundo desencantado de Garrel, o seguir em frente só é interrompido pela morte – daí a presença tão marcante do suicídio em seu cinema. Como seres desejantes e incompletos, as personagens de ‘Amante Por Um Dia’ (bem como de todos seus filmes) são incapazes de não estarem constantemente sujeitos à necessidade do outro, ao mesmo tempo em que esse processo traz sempre a possibilidade real da dor. Uma vida sem dor é uma existência alienada, incompleta, irreal. O que fazer e o que pensar para tentar se adequar à inevitável angústia do ser envolve um turbilhão de possibilidades conflitantes e a ausência absoluta de certezas. É por meio desse discurso que a vida no cinema de Philippe Garrel transborda uma radiante beleza amarga impressa a cada fotograma.

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