Por Fernando Oriente
O fato de ‘Quebranto’, terceiro longa do diretor Jose Sette em quatro décadas, chegar agora às telas com sessões na Mostra do Filme Livre (MFL) de 2018 revela muito do descaso do cinema e da cultura brasileira com artistas de uma geração que, após o Cinema Novo e o Cinema Marginal/de Invenção, foram impedidos de filmar. Autores radicais (que sem dúvida são parte e extensão desse cinema de invenção que surgiu como potência desestabilizadora da arte brasileira em meados dos anos 1960) que foram relegados a um ostracismo imposto, mas jamais deixaram de pensar o cinema e o Brasil de maneira muito particular. Questionador de obviedades, inimigo da banalidade da imagem e do texto, alheio a tendências de mercado e sempre com um vigor pulsante em tentar traduzir e questionar nossa realidade por meio de suas imperfeições e fracassos, Sette escreveu de forma indelével seu nome na história com o seminal ‘Bandalheira Infernal’, filme de 1976 que segue até hoje como uma das preciosidades da nossa filmografia. Assistir a ‘Quebranto’ é ver na tela como um veterano autor consegue instigar o espectador com um frescor e uma originalidade incapazes de serem atingidos pela maioria de jovens diretores e, principalmente, por alguns nomes já estabelecidos dentro de certo “cinema médio respeitável pós retomada”.
‘Quebranto’ não segue nenhuma convergência ou cacoete do cinema contemporâneo brasileiro. É um filme de um diretor que pensa e representa em imagens e texto sua visão subjetiva sem nenhuma concessão. Imperfeito, fragmentado, o novo longa de Sette se fortalece na precariedade e ganha potência pela inventividade e o radicalismo como trabalha os ruídos provocados por uma dialética entre imagens incapazes de dar todo seu sentido e por uma presença constante do texto – seja em off ou falado de maneira anti-naturalista por seus personagens. Fiapos de narrativa, situações dramáticas que apenas se esboçam e se fazem ecoar nos planos seguintes, tipos que habitam um mundo onde o realismo foi mandado às favas e a constante sobreposições de tempos em que personagens se ressignificam, se desdobram em múltiplas representações e trazem à tona o conflito entre o universo idealizado da vontade de fazer e ser com as impossibilidades de traduzir esses impulsos. É esse o registro que Sette almeja, provocando constantemente o espectador a sair da zona de conforto da absorção alienada de discursos ocos e publicitários. É expondo seus próprios mecanismos imperfeitos que o filme se oferece como uma obra aberta e em constante construção.
Existem eixos pelos quais Jose Sette nos conduz ao longo de ‘Quebranto’. Em primeiro lugar a paralisia que aprisiona seus tipos, presente na vontade de João em escrever, no desejo de Maria em amar e se auto constituir como sujeito, nas memórias difusas de personagens que surgem como espectros e tentam interpretar a vida e a existência dos outros e ainda naquele que é o elemento mais materialista do filme: a impossibilidade da história de amor entre João e Maria. Como consequência dessa paralisia (do existir, do interpretar e do criar) está a morte. Morte dos sonhos do escritor, morte das pulsões artísticas, eróticas e metafísicas. É a anulação do sujeito, o retorno como imagem-simulacro de figuras do passado com seus discursos fragmentados entre empáfia, dogmas, moralismos familiares e religiosos – espectros transfigurados como impotência do devir. A ironia de Sette ao introduzir esses fantasmas como comentaristas da vida material e existencial de João e Maria é dos pontos fortes da construção dramática, elemento que projeta ainda mais as presenças de paralisia e da morte.
Mas se o lado materialista está em situações isoladas vividas por Maria e João, essa materialidade desvanece nas constantes ressignificações e forclusão desses personagens. Vivendo entre um real idealizado e um limbo pós-morte, João está preso em meio àquilo que é, o que deseja ser e o que os outros vêm nele. Nos resta apenas Maria. Mesmo incapaz de evitar a morte, é ela que se materializa na tela com mais potência, tanto pelo simbolismo que carrega como vetor de amor, inspiração, criação e desejo, como pela presença física. É a beleza do rosto e do corpo da atriz Karine Barros (e a forma como Sette a filma) e o que essa beleza carrega de possibilidade de ressignificação dramática-discursiva que faz Maria se descolar da imagem idealizada e tornar-se energia de vida criativa e subjetivante impressa na carne.
Jose Sette compõe tudo com uma encenação aberta aos acasos que exprime as contradições desencantadas, a ironia, a tensão e os anseios utópicos que dominam o tecido da dramaturgia. Sequências com câmera na mão são montadas ao lado de tableaux compostos por planos estáticos que evocam a teatralidade da mise-en-scéne. A variação de luz dentro das construções de quadro, os cortes secos, as entradas e saídas de cena dos personagens, a temporalidade cíclica e a recusa da linearidade narrativa reforçam ainda mais a condução auto reflexiva e fragmentária do discurso. A sobreposição do texto às imagens conduz o filme nesse sentido, fazendo das imperfeições e incapacidades do significado pleno ser atingido (ele sequer é almejado) possibilidades de leitura e questionamento que levam à inquietação de um mundo incodificável que Sette recria dentro de uma representação que se dobra sobre si mesma para escoar pelas bordas daquilo que a imagem apreende dentro da tela. Sobra desejo – desejo de imagem, desejo de escritura, desejo de expressão – ao mesmo tempo em que a banalidade racional do mundo é dinamitada na poética de um cinema que assume sua impotência como força propositora de significantes.