Por Fernando Oriente
Existe no cinema de Garrel um elemento que é sensível ao longo de todos os planos, presente em cada sequência e matéria fundadora de seus temas, histórias e discursos: uma melancolia profunda e uma desilusão permanente em relação aos fracassos de sua geração em alcançar as mudanças sociais, políticas e existências que foram sonhadas e transformadas em lutas por eles nos anos 60. Esse sentimento amargo, Garrel transmite por meio da incapacidade de seus personagens se relacionarem, na fragilidade dos afetos, na incompletude e instabilidade dos relacionamentos que seus tipos vivem, na inevitabilidade dos afastamentos. Seus filmes são sobre rupturas, amores fugazes que se diluem e terminam em meio a uma melancolia que impede as pessoas de se auto-determinarem. Essa ferida que a geração de Garrel carrega é transmitida a todas as gerações seguintes.
Nos filmes de Garrel, os tipos são sempre condenados a uma solidão que não tem remédio. O outro nunca é suficiente para completar esse vazio que corrói corações e mentes de pessoas presas em um mundo já há muito desencantado, a existência é feita de desencontros, o eu de cada um nunca poderá ser completado. A inconstância da vida, a presença constante da possibilidade da morte (física e simbólica) tornam seus tipos ainda mais frágeis. Mas sobreviver pode ser ainda mais amargurante.
Garrel constrói tudo isso com uma elegância poética assombrosa. Seus planos isolados contêm um universo. Olhares, silêncios, diálogos fragmentados, tudo mostra a fragilidade dos tipos no momento da ação (ou inação) registrada, mas remetem a um enorme extra-campo onde as angústias do homem incompleto e fracassado existencialmente são o condicionante da existência. A câmera do diretor está sempre na posição precisa para o peso sensorial que ele extrai de cada tomada. Os travellings laterais, comuns em seus filmes, pontuam a movimentação constante de personagens que caminham sem um destino certo, que fazem do movimento (da câmera, do cinema) mais uma expressão desse deslocamento existencial sem sentido.
Esse universo de texturas múltiplas está presente de maneira preciosa em ‘O Ciúme’, um longa em que Garrel eleva seu discurso e seu forma fílmica a um potencial de sensibilidade estética assombroso. A decupagem de Garrel em ‘O Ciúme’ injeta uma força desconcertante nas cenas, reduz à essência os fragmentos de narrativa (as sequências isoladas unidas por elipses bem demarcadas) que compões a força do filme. Sequências em que três ou quatro planos trazem inúmeros significados, expõem as entranhas do que duas pessoas viveram e que termina diante da amarga leveza de frases interrompidas, lágrimas e a certeza de que rupturas são inevitáveis. Closes que traduzem todo o estado de espírito do personagem; suas almas são trazidas à tona nos ângulos de câmera fechados de Garrel. O tempo, o peso do tempo vivido, da incoerência do presente e da dúvida em relação ao futuro são elementos que contaminam cada imagem do longa.
A dor dos tipos é exposta em seu íntimo por meio de ações banais (o apagar de um abajur, os punhos cerrados do personagem de Louis Garrel sentado, uma porta que se fecha, mas que insiste em ficar entreaberta), olhares perdidos, silêncios pesados, diálogos interrompidos. Em ‘O Ciúme’ temos a força independente de cada sequência isolada se relacionando o tempo todo com aquilo que está fora do quadro: a vida, o não pertencimento, as angústias, a dor de existir. A paixão tão fugaz quanto o próprio existir.
Não são apenas os relacionamentos entre homens e mulheres (que se conhecem, se apaixonam – ou acreditam que se apaixonam -, se relacionam e se separam) que pontuam o filme. As dificuldades no convívio e nos diálogos com os filhos, a impossibilidade de encontrar no trabalho um espaço de segurança, as precariedades de se montar uma casa (algo minimamente próximo a um lar), tudo pesa para que os personagens de Garrel sejam apenas fantasmas em meio a um mundo em preto e branco.
Philippe Garrel se confessa herdeiro dos cineastas da Nouvelle Vague, o que se percebe em seus filmes, mas ele usa essas referências para construir seus longas com elementos extremamente particulares. Seu cinema é ímpar. Uma imagem ou um plano de Garrel são sempre inconfundíveis.
Garrel coloca em primeiro plano toda a poética do desencanto de viver, mas nunca cai em sentimentalismos. Suas cenas são de uma elegância espantosa, de uma contenção que condensa tudo na beleza amarga do que é visto (e principalmente sugerido) na tela e como isso se relaciona a um mundo imenso em que os personagens e as ações estão inseridos apenas como fragmentos. As angústias são retratadas por meio das sugestões, o interior de seus tipos é explorado e dissecado nas texturas poéticas de imagens ricas em significado, em construções de cena que buscam esses significados por meio da força dos significantes (os planos em si). Garrel é um cineasta da potência das imagens, das multiplicidades de leitura dos planos, de frases isoladas, daquilo que não é dito, da força significativa dos rostos, do que é sentido no olhar, nas expressões de seus personagens.
Entrei em uma onda de assistir aos filmes que tem o Garrel no elenco, mais ainda não vi nada dele como diretor. Gostei muito do texto, vou procurar o filme!
o Philippe é pai do Louis
Gente, me confundi aqui. Fui procurar o filme e aí que notei que é do Philippe e não do próprio Louis, haha! Tudo bem, assistirei do mesmo jeito.
Muito boa a crítica. Descreveu meu sentimento ao ver o filme.
Assim como em “Um Verão Escaldante”, Garrel parece captar os efeitos da modernidade líquida sobre os indivíduos e as relações sociais: a efemeridade das relações amorosas e familiares, a insegurança quanto ao futuro, a angústia, o tédio, a imobilidade diante de uma bomba-relógio que parece explodir.