cinema francês

‘É o Amor’, de Paul Vecchiali

Por Fernando Oriente

'É o Amor'A instabilidade do presente, a fugacidade, a tensão implícita e reprimida (mas sempre prestes a se manifestar em diferentes formas) e a impossibilidade de se viver na plenitude do que se deseja; uma realidade tensa que faz com que todos existam em meio a expectativas confusas, mentiras, idealizações, desconfianças, incertezas e presos na nostalgia amarga de suas recordações, na tristeza resignada pelo que foi vivido e acabou, ficou distante no tempo e só se fixa na memória, muitas vezes idealizada e carregada de ressentimentos. Um tempo presente em que é impossível se auto-determinar plenamente pela sua fugacidade, instabilidade e pela própria violência que implica a tentativa de consumação dos desejos e a preservação dos sentimentos em meio à desordem e as instabilidades emocionais. Relações construídas ou em construção em confronto com a dissimulação e a desilusão estão na base do relacionar-se e lidar com o outro. Tudo isso está no centro de novo filme de Paul Vecchiali, que como o próprio diretor apresenta literalmente no início do filme, esse centro e todos os desdobramentos do longa são sobre o mais forte e idealizado de todos os sentimentos: o amor.

Vecchiali constrói um filme que mistura o anti-naturalismo das representações e da encenação, usa tanto da farsa, da tragicomédia e da fabulação para discutir de maneira frontal, mesmo que multifacetada, o amor e todas as suas complicações, formas de representação, estados de manifestação e como esse sentimento constitui o indivíduo em sua essência, cada tipo trabalhado em suas individualidades, em suas subjetividades. Mas ao compor esse mosaico, Vecchiali fala do universalismo do amor e seus muitos desdobramentos. Vecchiali constrói um filme amargo, direto, ao mesmo tempo em que usa da ironia para ampliar os estados de espírito de seus personagens e as modulações dos dramas e ainda injetar leveza e beleza às cenas. Compõe um universo cheio de cores, muita luz e um espaço onde o que mais vemos são os desencontros entre os tipos, tanto em relação ao outro, ao que sentem bem como em relação a si mesmos e a suas expectativas.

Paul Vecchiali trabalha todas essas questões com uma leveza irônica de encenação (que em nenhum momento evita se aprofundar nas estruturas formais das composições de personagens ao mesmo tempo em que essa encenação extrai densidade das situações dramáticas, dos tipos e da própria narrativa), uma evolução dramática direta (mesmo que tortuosa) e cheia de frescor e uma criatividade pulsante, tudo aliado ao sarcasmo muitas vezes ligado diretamente ao piegas da construção visual e do artificialismo dos cenários, da estranheza aparente dos tipos e das situações narrativas que flertam com o fabulesco e com a farsa. Um filme de ternura e secura, em que a melancolia é tratada de forma tanto poética quanto amargamente patética. Um longa construído em elipses, cenas que isoladamente já trazem uma infinidade de possibilidades dramáticas e de interpretação. Cada personagem, desde os centrais até aqueles que entram e saem da narrativa, tem papel fundamental nos tecidos do discurso de Vecchiali. Cada um acrescenta uma história, representa um lado, às vezes mais de um, da complexidade de como amor se manifesta, se constrói, surge como força avassaladora, em que esperança, desilusão, alegria e dor se misturam.

É o AmorÉ como se para falar do amor, Vecchiali precise de vários personagens e personas, de muitas individualidades, de suas história e vivências, que se projetam na experiência do outro, se completam, se assemelham e se distanciam Um tecido dramático complexo, mas direto; o diretor não esconde nada, coloca todas as experiências vividas (ou desejadas) na superfície material do filme, as põem em cada uma da falas, dos relatos, recordações, gestos e expressões de todos os seus personagens. Muitas vezes o amor é comparado à guerra, ao conflito e a morte; é trabalhado sempre dentro de suas tensões máximas, nunca é apresentado de maneira idílica e sim como um campo de batalha, um terreno de conflitos e incertezas. A fragilidade humana perante a vida é permeada e conduzida por esse sentimento sem explicação, bruto, mas onipresente que é o amor.

Os personagens se apresentam de maneira frontal, direto para a câmera, seus rostos e expressões são destacados pela composição de cena de Vecchiali, encaram a câmera, falam para ela, são filmados em close. ‘É o Amor’ dá grande destaque a presença física dos tipos, seus rostos, seus corpos, seu estar no mundo. Dentro do anti-naturalismo, das situações farsescas, da ironia ou da melancolia com que Vecchiali registra os dramas ele potencializa seu discurso, deixa explícitos seus conceitos e escancara os dramas por meio anti-convencionais, mas que surgem na tela na plenitude se seus significados e possibilidades interpretativas. Filme direto, sem ilações ou discursos metafóricos. O que é e foi vivido, bem como o que é desejado ou idealizado é o que importa para o diretor para compor esse processo de escrutinação do amor, dos sentimentos e das relações humanas.

A presença física dos personagens é tão importante quanto suas falas, quanto o que dizem sobre o presente ou como rememoram o passado. Isso fica claro em dois momentos específicos em que Vecchiali usa um recurso primoroso de encenação e decupagem. Dois diálogos centrais de ‘É o Amor’ nos é apresentado duas vezes. No primeiro, Jean e sua esposa Odile têm uma discussão de relação, em que a suspeita que ela tem de estar sendo traída e a defesa que Jean faz das acusações leva o casal a um diálogo longo, em que discutem seu momento atual lembrando o passado, expondo suas expectativas um em relação ao outro e como a vida fez com que a relação chegasse ao ponto em que está após quase onze anos de casamento. Primeiro Vecchiali filma toda cena, toda a conversa ente os dois num plano sequência em que a câmera acompanha a uma distância média apenas Jean e a voz de Odile vem do fora de quadro. Após um corte, vemos a mesma cena com um novo plano sequência que acompanha da mesma distância apenas Odile em cena e é a voz de Jean que vem do extra-campo. Isso reforça não só o texto do diálogo, como a presença física, as expressões, gestos e reações de cada um dos personagens isoladamente durante a cena. Esse recurso é usado novamente na parte final do filme, quando um diálogo entre Daniel (que se tornou amante de Odile e dessa nova relação que surge entre eles ambos encaram como a representação do que seria o amor em seu estado bruto de intensidade, uma atração que foge do controle, um desejo capaz de fazê-los largar tudo um pelo outro) e Albert, até então o namorado pouco valorizado por Daniel, já que este se encontra em meio a uma crise existencial. O diálogo, que marca a separação do casal de namorados é pontuado pela melancolia misturada à ternura típica das despedidas e carregado de ternura. Na conversa, ambos fazem alusões ao que viveram juntos, às suas histórias de vida e discorrem sobre o amor. Novamente vemos parte desse diálogo com a câmera fechada em close em Albert e Daniel fora de quadro, deitado no colo do namorado. Sem cortes, apenas com um movimento de câmera, Vecchiali desce o enquadramento do rosto de Albert e reenquadra o plano em um novo close com o a cara de Daniel ocupando toda a tela e o diálogo recua do ponto em que estava antes do movimento de câmera e ouvimos as falas se repetirem com Daniel em cena e Albert no extra-campo. Novamente, e no momento exato da evolução narrativa, esse recurso de repetir o diálogo, a cena, alcança as mesmas potências dramáticas que Vecchiali tinha conseguido com a primeira vez que isso aparece no filme, no diálogo entre Odile e Jean e logo no início.

É o Amor, de Paul VecchialiOs ambientes e cenários onde se desenrolam o filme, a cidade balneária desglamourizada, meio vazia, o interior das casas e as decorações, suas fachadas e ruelas, a praia, o deck onde acontece uma estranha festa, todos esses ambientes são compostos por Vecchiali carregados de um mau-gosto cafona, de um acentuado uso de cores fortes mesclado a tons pastéis. Tudo parece forçado, caricato, a força e a complexidade da abordagem que o diretor faz de seus temas centrais são ampliadas por essa inusitada composição cênica que cria um desconforto, um descompasso e um conflito com a intensidade do discurso dramático. A imagem digital e sua captação e exposição limitadas, límpida, com ausência de contrastes e de texturas restringidas, reforçam as cores berrantes, a luz chapada e incômoda que parece onipresente. Tudo é calcado no artificialismo e o uso do digital por Vecchiali em ‘É O Amor’ é primoroso por ressaltar aquilo de mais artificialista e limitado a imagem digital pode carregar como registro. Esse cenário farsesco, grosseiro serve para potencializar a tom irônico com que o diretor irá discutir as questões do amor, seus desdobramentos, conflitos, potências violentas e limitações, mas em nenhum momento tira a força discursiva do filme ou diminui o vigor dos dramas.

As situações dramáticas e a narrativa trabalham de forma criativa toda a abordagem que Vecchiali faz sobre as relações amorosas, o desejo, os receios e dúvidas que surgem quando o ser humano se confronta com um outro no terreno do amor, tanto idealizado, quanto vivido e tornado relação, sexo, convivência, rotina, ciúme e possessividade. É um conflito entre um discurso direto sobre o amor e uma farsa que domina os cenários, as ações, os tipos e a própria encenação. Vecchiali discute um dos temas mais clássicos do cinema, o amor, por meio desse conflito, desse choque entre a forma e a matéria do drama, o enunciado e como ele é transformado em discurso por meio do uso dos dispositivos. Carrega na força objetiva do discurso (direto, seco), do tema e contrapõe tudo com a ironia da mise-en-scéne, da composição dos tipos e suas personalidades, das ações e das modulações narrativas e das intensidades das situações dramáticas. De maneira primorosa, original e pulsante, Vecchiali faz um tratado sobre o amor, despretensioso e profundo, em que parece afirmar que o amor é onipresente em todos os corações e mentes, mas só existe como idealização, possibilidade, fabulação, conflito ou memória reconstruída.

‘As Testemunhas’, de André Téchiné (2007)

Por Fernando Oriente

As Testemunhas‘As Testemunhas’ talvez seja o último bom filme realizado por André Techiné, embora não atinja o nível de seus melhores trabalhos como ‘Hotel das Américas’ (1981), ‘Rendez-Vous’ (1985), ‘J’Embrasse Pas’ (1991), ‘Rosas Selvagens’ (1994) ou ‘Os Ladrões’ (1996), ‘As Testemunhas’ é repleto de qualidades, energia, vigor narrativo e uma intensidade dramática que vem da própria estrutura do argumento, potencializada pela qualidade da encenação e pelo ritmo vertiginoso da montagem. Os longas realizados pelo diretor nos anos seguintes vão de medianos a medíocres, o que pode indicar um sério problema dentro do cinema recente de Téchiné, mas seu currículo ainda é muito bom para o descartamos de vez.

Realizado em 2007, o filme concentra seu poder na narrativa, cuja evolução está no centro de tudo. Construção de planos, montagem, mise-en-scéne e os demais elementos da linguagem cinematográfica são os suportes para que Techiné desenvolva um longa visceral em que o espectador é mais do que um observador impassível; ele torna-se um cúmplice e também uma testemunha de tudo aquilo que vê na tela, do jorro narrativo criado por Téchiné. O recorte de tempo de um ano na vida do grupo de personagens centrais (1984) e a complexidade e as reviravoltas dos acontecimentos em suas vidas são potencializados pela energia que o diretor retira da história que narra. A força das situações é o núcleo da dramaturgia que Techiné usa para consolidar seu discurso. Os personagens não têm como se manterem impassíveis diante da velocidade de transformações que os acontecimentos provocam em seu meio. Eles tomam partidos, acertam, erram ficam inseguros, temem, mas agem e suas ações são o motor do longa. O diretor extrai o máximo dos dramas e das experiências vividas por e por meio desse processo constrói a solidez e a densidade da narrativa.

Todas as pessoas que vemos na tela carregam o peso de suas experiências vividas, são personagens de construção sólida, multifacetados e de texturas complexas. Não é necessário à Techiné entrar em particularidades nem explicitar o que ou de que modo eles são o que são. O seu agir, suas manifestações e suas reações a tudo aquilo que os cercam são mais do que suficientes para testemunharmos sua complexidade. A força deles vem de suas limitações e potencialidades, do caráter essencialmente humano de suas personalidades.

‘As Testemunhas’ é dividido em três partes. Em um primeiro momento, Techiné explora a liberdade de ação de seus personagens e certa inconsequência (positiva) em viver os prazeres e a consumação dos desejos de forma quase plena. São tipos ágeis, irrequietos e a velocidade da montagem e o trabalho de câmera contextualizam bem o ritmo de suas vidas. Na segunda parte a tragédia assume o primeiro plano, com a presença da AIDS modificando tudo no cotidiano dos personagens no ano de 1984, quando a doença ainda era um mistério, pouco conhecida, sem possibilidades de cura ou tratamentos eficazes e cercada de preconceitos que tornavam a vida de suas vítimas ainda mais complicadas. A velocidade na fruição do longa se mantém e até se potencializa, acompanhando a incerteza, o medo e a incapacidade de reação diante de uma nova realidade castradora das subjetividades libertárias; que embora limite o alcance das ações dos protagonistas, não os impedem de continuar agindo, desejando, vivendo. Esse medo, que é como uma supressão do desejo puro, os impulsiona ainda mais no sentido de tornarem-se agentes do presente que os envolve. Na parte final, após o impacto da inevitável perda, as testemunhas que sobreviveram encontram-se feridas, abaladas e tristes, mas prontas para seguirem na ciranda cíclica e inevitável da sucessão do tempo. O que viram, sentiram e fizeram são os alicerces do testemunho da história em construção. É a história dos indivíduos que sempre compõe a história da coletividade.

Não existe em ‘As Testemunhas’ a banalização das emoções encenadas e dos dramas vivenciados, Techiné é direto, cru e visceral; não usa muletas sentimentalistas para amplificar os dramas. As situações falam por si. Os acontecimentos externos, as tragédias e as perdas que elas trazem penetram o interior dos personagens. Mesmo sem a intenção explícita ou o controle sobre o que acontece, eles têm suas condutas, suas referências e até seus gestos cotidianos alterados por esses fortes elementos externos.

Essa narrativa poderosa de ‘As Testemunhas’ é centrada no impacto dos eventos, dos acontecimentos e as consequências que têm sobre a vida dos personagens. O vigor dos tipos é o centro de um cinema calcado no valor, no potencial e nas possibilidades dialéticas desses personagens. O poder de se contar uma história aglutinando os conflitos, a aproximação e o refluxo entre pessoas comuns (os agentes dessa história) é o elemento primordial do cinema que interessa a Techiné. O cineasta francês trabalha em cima de sensações e sentimentos reais; abomina a caricatura e o gestual falsificado.

André Techiné empresta seu olhar ansioso e inquieto para a câmera que, em constante movimento, registra a velocidade dos acontecimentos em planos ágeis unidos pela montagem vertiginosa de elipses bruscas. Todo esse ritmo não dilui a intensidade das relações entre os personagens; a objetividade na construção das inter-relações é ponto forte no longa. Um pequeno parêntese é necessário: a impressionante presença física e a beleza estonteante de Emmanuelle Béart roubam a cena – afinal de contas trata-se de uma das mais belas atrizes que o cinema já teve. Uma atriz cuja simples presença dentro do quadro já mexe com as emoções do espectador, dos mais diversos modos.

Techiné filma homens e mulheres comuns e seus papeis dentro do desenrolar da vida cotidiana, de seus destinos. Filma o constante movimento da aventura humana. Da experiência de alguns, o diretor traça os paralelos entre a pequena e a grande história. Os eventos que atingem essas pessoas comuns são aqueles que vão deixar suas marcas na história da evolução do mundo. André Téchiné transforma em prazer (recheado de tensão e incertezas) o ato de se assistir a um filme construído em cima da força da narrativa. Pelo menos para aquele espectador que ainda vê no cinema uma experiência totalizante e demasiadamente humana.

Cobertura da 39ª Mostra de Cinema em São Paulo: breves críticas

Por Fernando Oriente

‘Um Dia Quente de Verão’ (A Brighter Summer Day) de Edward Yang – Taiwan, 1991

A Brighter Summer DayFilme monumento de Edward Yang exibido em uma linda cópia restaurada em 35 mm na Sala Cinemateca em uma das sessões que entram para a galeria das exibições antológicas na história da Mostra internacional de Cinema em São Paulo. Yang é um dos maiores cineastas do cinema contemporâneo, autor de apenas oito filmes (o primeiro em 1982) em uma carreira brilhante interrompida por sua morte precoce aos 59 anos em 2007. Diretor de Taiwan, que ao lado Hou Hsiao-Hsien e um pouco antes de Tsai Ming-Liang, realizou nos anos 80 uma verdadeira injeção de talento e esplendor no cinema mundial e influenciou toda uma geração de cineastas pelos quatro cantos do mundo.

‘Um Dia Quente de Verão’ é um filme em que tudo funciona com perfeição. Uma mise-en-scéne arrebatadora no apuro com que cada um de seus detalhes é confeccionado, desde a composição dos quadros, a construção dos planos, a decupagem, o posicionamento e a movimentação de câmera, os cortes, tudo funciona no ritmo certo, sempre em função das modulações dramáticas, da evolução narrativa e na alta carga de sensorialidade no tratamento das texturas dos personagens sempre organicamente entrosados com as construções do tempo e do espaço e suas relações internas. Um filme que trabalha com naturalismo as cenas, os espaços, as emoções dos personagens e insere tudo isso dentro de um tempo preciso, o tempo da memória de Edward Yang e sua adolescência nos anos 60 em Taipei.

‘A Brighter Summer Day’ é um filme que faz do tempo passado não só uma reconstrução simbólica de um processo de formação de personagens e de uma nação em turbulência, mas que faz essa experiência do tempo vivido servir como comentários precisos sobre a condição humana, a melancolia, o amadurecimento, as frustrações e as impossibilidades que levam o ser humano a atos extremos ou a resignação angustiada sentida sob o peso do passar de um tempo implacável. Uma obra-prima monumental.

‘É o Amor’, de Paul Vecchiali – França, 2015

É o AmorA instabilidade do instante presente, a fugacidade e impossibilidade do sentimento e da existência no presente que faz com que todos vivam da nostalgia amarga de suas recordações, da tristeza resignada pelo que foi vivido e acabou, ficou distante no tempo, só se fixa na memória. Um presente em que é impossível de se viver plenamente pela sua fugacidade e instabilidade. Tudo isso está no centro de novo filmaço de Paul Vecchiali, que trabalha todas essas questões com uma leveza de encenação e evolução dramática de um frescor e uma criatividade pulsantes. Um filme de ternura, em que a melancolia é tratada de forma poética. Um longa construído em elipses, cenas que isoladamente já trazem uma infinidade de possibilidades dramáticas e de interpretação.

Paul Vecchiali, um dos grandes cineastas vivos, um veterano de 85 anos autor de um cinema de primeiríssima qualidade e originalidade, um encenador radical, que oscila entre a visceralidade de seus primeiros trabalhos nos anos 60 e 70, o radicalismo de seus filmes da década de 80 e agora chega a uma fase em que potencializa as sensações, a força da palavra e a poética do amor em suas incertezas, breves instantes de esperança e na resignação de sua não consumação.

Com seus mais de 80 anos de idade, Vecchiali mostra ousadia, inventividade, energia e talento cheios de pulsões de vida. Um velho mestre que filma com paixão e segurança, que arrisca, procura novos caminhos e se opõe radicalmente a esse cinema anódino de muitos jovens diretores arrogantes e incompetentes com seus filminhos medíocres, cheios de vícios modistas, cópias mal feitas de outros cineastas, um bando de moleques que buscam a poesia barata da inércia, o choque fácil, a dramaturgia rasa, a encenação engessada de uma geração de jovens que faz um cinema moribundo, enquanto um autor octogenário como Paul Vecchiali, a cada novo filme, não cansa de nos mostrar como o cinema pode ser cheio de vida e complexidade.

‘As Mil e Uma Noites’ (Volumes 1, 2 e 3), de Miguel Gomes – Portugal, 2015

As Mil e Uma NoitesNos três filmes que compõe as ‘As Mil e Uma Noites’ Miguel Gomes mescla documentário, fantasia, crítica social, narrativas ficcionais naturalistas, meta-cinema, drama, comédia, falso documentário tudo de maneira orgânica, indo de um registro ao outro, fundindo os diversos dispositivos e estruturas formais com uma fruição impressionante. Os três filmes são marcados pela quase onipresença da melancolia e da crítica social cética, mas sempre com irrupções de sarcasmo, ironia, humor negro, autocrítica. Uma obra que se desdobra em diversos fragmentos isolados, em narrativas autônomas que se relacionam e comentam umas as outras.

O conflito entre narrativas em que a paleta de cores desbotada e tendendo para o monocromático se intercalam com histórias onde as cores fortes e a claridade dominam o quadro. Todos os elementos são pensados para a composição máxima dos planos dentro de uma potencialização do que vemos na tela. O uso do scope amplia a força dos dramas, das narrativas, e do registro dos ambientes e espaços. O som, por meio da captação dos ruídos, das intensidades das falas, das músicas diegéticas ou não são fator que tornam mais forte a intensidade sensitiva com que o espectador recebe o filme.

No volume 1, ‘O Inquieto’, o filme começa com um impressionante travelling com a câmera em um barco a registrar um estaleiro que acaba de fechar, deixando inúmeros funcionários desempregados. O plano é acompanhado por depoimentos em off desses trabalhadores recém demitidos narrando suas experiências como trabalhadores do estaleiro e comentando o desemprego a que foram jogados. Miguel Gomes inicia seu ‘As Mil e Uma Noites’ de dentro da imensa crise social e econômica que assola Portugal. Esse pequeno documentário que abre o filme é interrompido pela presença do próprio Miguel Gomes e sua equipe em cena. Gomes diz que a crise, o caos e a miséria em que seu país foi jogado pelas medidas de austeridade impostas a Portugal pela União Européia tornam impossível seu trabalho como realizador de fazer um filme tanto documental sobre a crise quanto uma ficção em que possa construir histórias. Ele está em crise, ele reflete a crise de seu país e de seu povo em um bloqueio criativo. Desesperado Miguel Gomes/o realizador foge e abandona a equipe. Preso por um órgão do governo que o acusa de desperdiçar dinheiro destinado à produção de um filme em meio a um país em crise, Miguel e sua equipe pedem clemência e o diretor tem a ideia de dar lugar a Xerazade, que saída direto do clássico ‘As Mil e Uma Noites’, irá narrar histórias para o rei (o espectador) no seu lugar. As histórias, que irão se desenrolar nos três volumes do filme irão abordar direta e indiretamente a situação da crise portuguesa, contextualizando os dias de hoje com os processos históricos que levaram Portugal ao seu atual momento de colapso.

Esse recurso ousado de Miguel Gomes, que se diz incapaz de fazer um filme, mas que realiza uma obra em três partes, audaciosa e complexa por meio dos relatos Xerazade (ele mesmo, ou seja, o realizador) é um gesto ambicioso do diretor, que em mãos menos talentosas poderiam resultar em um enorme gesto de comiseração e pretensão, mas do qual ele se sai muito bem. O que poderia parecer ambicioso e arrogante se transforma em um filme belíssimo e complexo. Miguel joga um desafio, faz uma aposta arriscada, mas se dá muito bem. Seu talento é muito grande e tudo nos três volumes de ‘As Mil e Uma Noites’ funcionam perfeitamente para que ao final tenhamos um dos grandes filmes do ano, ou três grandes filmes do ano. (em breve o Tudo Vai Bem terá uma crítica longa que contemplará os três volumes de ‘As Mil e Uma noites).

‘Ralé’, de Helena Ignez – Brasil – 2015

RaléO novo longa de Helena Ignez é, antes de tudo, uma celebração, uma cerimônia de afirmação da vida pelas diferenças, pela arte, pelo desejo, pela força dos corpos, da Natureza, dos gestos e dos sentidos e pela utopia de uma realidade possível no deslocamento físico de sues personagens. Um filme libertário, construído de cenas isoladas, com autonomia de significação, que se ligam pelo discurso festivo de rejeição do mundo como espaço castrador e pela busca da autodeterminação dos sujeitos como corpos, mentes e espíritos livres. Um filme de movimentos, de cores, com muitas músicas e textos que propõem constantemente a reflexão, que procura situar o sujeito como agente de seu próprio destino, em comunhão com o espaço, as sensações e os desejos.

Helena se concentra na força da palavra, na presença pulsante dos corpos e na constante celebração da existência fora das regras, na negação dos valores morais conservadores. ‘Ralé’ começa e termina em São Paulo, com uma presença fortíssima do concreto, dos espaços urbanos e da relação entre eles e os personagens e de lá se desloca para uma fazenda no meio da Amazônia, onde um vasto grupo de personagens de diversos tipos participam da gravação de um filme manifesto, se encontram para conversar e discutir a vida, onde se unem para criar um espaço utópico de liberdade. Na fazenda mora o personagem de Ney Matogrosso, o Barão, que vai se casar com Marcelo, um dançarino. ‘Ralé’ usa da força simbólica dos atores, temos em cena verdadeiros ícones da arte no Brasil, que além de interpretarem personagens, trazem suas próprias histórias de vida como elemento de força simbólica ao longa. Temos mitos como a própria Helena Ignez, Ney Matogrosso e Zé Celso Martinez Corrêa. Ao lados deles, temos a força física, agressivamente libertária e auto determinante da mulher por meio da presença poderosa em cena das belíssimas Simone Spoladore, Djin Sganzerla e Barbara Vida, entre várias outras mulheres visualmente e conceitualmente fortes. Helena também promove uma celebração da diversidade sexual, colocando em cena personagens gays, trans e naturalizando com muita leveza a libertária presença simbólica da auto-afirmação das orientações sexuais como algo atávico ao ser humano. O prazer dos corpos e o desejo não podem jamais seguir regras, ‘Ralé’ aborda com muita leveza e organicamente o potencial revolucionário das liberdades sexuais.

A câmera de Helena é leve, sempre em movimentos ritmados se aproximado, contornando, recuando e reenquadrando personagens e suas relações entre si e com o espaço que os cercam. A imagem em digital cristalino potencializa a clareza dos movimentos internos do quadro, ressaltando gestos e cores em uma transparência de texturas que tornam o filme ágil, colorido, musical, em que tudo está claro para ser visto e sentido. ‘Ralé’ dialoga constantemente com elementos e movimentos fundamentais para arte brasileira. Temos trechos de filmes de Rogério Sganzerla, mais precisamente duas obras-primas do diretor feitas na época da Belair: ‘Sem Essa Aranha’ e ‘Copacabana Mon Amour’. Vemos Helena Ignez como Sonia Silk no filme de 1970 e ao mesmo tempo vemos Helena hoje. Ela usa as referências dos anos 60 e 70, mas as atualiza para o mundo de hoje, Helena Ignez traz ao mesmo tempo todo um repertório encravado no melhor da arte feita no Brasil e se mostra coerente com os dias de hoje, sabe aproximar épocas e referências para discutir o presente com o peso das referências do passado. Textos de Brecht lidos por Zé Celso, Ney Matogrosso cantando com todo o peso simbólico que sua presença em cena representa, são esses fatores icônicos que Helena mescla com as questões atuais, com a presença dos jovens, das mulheres que exalam poder na beleza de seus corpos e mentes, na força de seus olhares e gestos, nos casais gays, na juíza trans que celebra o casamento.

‘Ralé’, com sua liberdade de encanação e sua estrutura dramática fragmentada na montagem de cenas independentes (mas que dialogam constantemente entre si) mantém-se sempre no campo do simbólico, nas forças significantes de suas cenas, seus tipos e na frontalidade transparente das imagens. Um filme leve, despojado em sua complexidade e que busca sempre “descolonizar o pensamento”, como é dito pela própria personagem de Helena numa das cenas fundamentais do longa.

‘La Sapienza’, de Eugène Green

Por Fernando Oriente

La SapienzaConstruir espaços em torno do vazio para que esse vazio seja preenchido pela luz e por pessoas. Essa definição que um dos personagens de ‘La Sapienza’ dá para a função da arquitetura pode muito bem ser usada para definir o trabalho do diretor Eugène Green no filme, bem como em toda sua obra. Green pega a tela vazia, em branco, e a preenche com luz, pessoas, gestos, construções, movimentos e textos. Por meio desse processo, tanto a arquitetura quanto o cinema permitem que a beleza e a sabedoria sejam atingidas. A beleza e o conhecimento são, para Green, um caminho metafísico em direção de algo superior, em que se atinge a sabedoria, uma força maior que representa os mistérios e a salvação equivalentes ao poder de Deus. Nas mãos de qualquer um, trabalhar essas questões poderia ter resultados tenebrosos, mas nas mãos de Eugène Green, um dos maiores realizadores do cinema contemporâneo, o que temos é um filme sublime como ‘La Sapienza’, que vem se somar aos demais trabalhos do diretor num processo contínuo de construção de uma filmografia ímpar que busca sempre a integração dos espaços com o ser humano e a palavra, e dessa relação promove conflitos dialéticos em que as imagens e o texto estão em constante pulsão em direção aos questionamentos existências e sua relação com o tempo, com o passado e o presente e como nos colocamos no mundo mediante uma beleza e uma sabedoria que somos incapazes de absorver e compreender em sua totalidade.

Em ‘La Sapienza’ acompanhamos a viagem do arquiteto Alexandre e sua mulher Aliénor à Itália, onde Alexandre pretende revisitar as obras do arquiteto barroco Francesco Borromini, bem como de contemporâneos de Borromini como Guarini e Bernini, desde a cidade de Stresa até Roma, onde ele trabalhou até sua morte em meados do século 17. A viagem serve para Alexandre e Aliénor tentarem se encontrar existencialmente, em meio às crises que vivem em suas carreiras profissionais, a angústia que se instalou no relacionamento do casal bem como à melancolia com que os dois se posicionam diante das dúvidas do presente, os medos e traumas que carregam do passado. Eugène Green trabalha a questão das texturas emocionais dos personagens sempre na relação entre o passado e seus fantasmas e o presente e suas incertezas. Logo em Stresa, eles conhecem dois irmãos adolescentes, Goffredo e Lavinia. A menina sofre de uma estranha doença que a faz desmaiar e passar dias reclusos, sem forças, em seu quarto. Já o jovem recém saído do colegial, se prepara para ir a Veneza iniciar seus estudos na faculdade de arquitetura.

A partir desse momento, Green divide o filme em dois focos narrativos. Aliénor fica em Stresa para acompanhar a recuperação de Lavinia e Alexandre e Goffredo seguem viagem, de Turim até Roma (sempre visitando construções barrocas clássicas de Guarini, Bernini e principalmente Borromini), num processo que a principio serviria de aprendizado ao aspirante de arquitetura, já que será acompanhado por um arquiteto renomado.

Mas é partir das relações complexas que irão surgir entre os personagens, tanto a mulher mais velha com a menina quanto o experiente arquiteto cético com o jovem aspirante a aprendiz, cheio de vida e fome de conhecimento, que Green irá discutir questões existenciais que evolvem os personagens; seus traumas do passado (fantasmas como isso é dito no filme) que carregam com eles como feridas não cicatrizadas e as incertezas, medos e o vazio espiritual com que lidam com o presente, numa ausência de lógica, um sentimento de deslocamento temporal e uma falta de rumo para seguirem adiante. Eugène Green contextualiza sempre o interior conflitante dos personagens com os espaços, as construções barrocas e os monumentos que visitam. Green impregna esses ambientes e principalmente as construções barrocas com um peso temporal e significativo imensos, como se as pedras, o cimento, os vidros e adornos que constituem a base, a matéria dessas construções carregassem todo um legado, toda uma possibilidade de leitura por meio de seu peso histórico, seus significados projetados no interior dos homens ao longo dos séculos. Ser humano e construções materiais se relacionam dialeticamente num processo em que o homem é refletido, questionado e confrontado com o significado e o peso do tempo que essas construções projetam em seu interior, em suas essências e características existenciais.

'La Sapienza'A viagem dos personagens se transforma em uma jornada de autoconhecimento, de reflexão, aprendizado, de trocas de experiência de vida, de abertura e desnudamento diante do outro. Eles passam por um processo em que o exterior, as construções e seus significados transcendentes dentro de uma relação complexa entre a fusão de tempos passados com o presente e o efeito que esse ambiente externo, essas obras clássicas da arquitetura barroca dialogam diretamente com as essências dos personagens, fazem com que passem a encarar seus fantasmas, seus passados para reorganizar suas percepções sobre o presente, sobre si mesmos e como se redefinem como indivíduos em um processo de reordenamento de suas subjetividades. Eles se abrem para trocas com um com o outro, para a fragilidade de suas próprias vivências e (in)certezas, bem como para a influência que a história e seus saberes acumulados, cheio de possibilidades de beleza e sabedoria exercem sobre eles. Green é um cineasta sofisticado, introduz essas relações de maneira complexa, gradual em que as texturas dramáticas dos personagens estão sempre se reorganizando pelo movimento interior e exterior dessa jornada em que se encontram.

Eugène Green é um autor que acredita na força transgressora da beleza, no poder simbólico e transformador da absorção dos valores do passado pelo ser humano de hoje, ele acha que a salvação existe dentro de um processo de ascese que é atingido pela busca constante do conhecimento, tanto de si mesmo, quanto do mundo que nos cerca. É a sabedoria, o amor e a beleza que irá levar seus quatro personagens centrais a salvação. Tanto que numa das cenas finais do filme, após tudo o que passaram, Alexandre acorda no meio da noite e, aliviado e sereno, diz “estamos salvos”.

Tudo o que Green constrói é potencializado pelas escolhas extremante originais de encenação, que são ao mesmo tempo fieis ao rigor com que conduz sua mise-en-scéne, mas simples, diretas (mesmo em suas complexidades) e sem arroubos estéticos desnecessários. Green trabalha na contenção dramática de sua encenação. Seus diálogos são falados de maneira lenta, quase recitados pelos personagens. O diretor dá valor e peso a cada palavra dita, isso nos remete muito ao cinema de Straub e Huillet e de Robert Bresson e a forma como esses cineastas davam ênfase ao texto falado por meio do anti-naturalismo dos diálogos e da encenação do gesto. Esse processo visa destacar o peso do texto e da palavra em meio à força das imagens. Green compõe suas sequências de diálogos quase todas em campo e contracampo. Filma quem está falando e corta para o interlocutor quando esse toma a palavra. Muitas vezes nesse jogo entre campo e contracampo, Green posiciona seus personagens de frente para a câmera, encarando com o olhar o antecampo, aquilo que está à frente da imagem (da tela), ou mais diretamente, o próprio espectador. Esse processo de filmagem, de encenação valoriza e destaca o texto, a palavra falada e sua relação que transborda os diálogos entre os personagens, que passam a se dirigir diretamente para nós. Os gestos dos atores, bem como seus olhares e deslocamentos no quadro também são compassados, fogem do naturalismo. Todo movimento, cada fala, todos os gestos e expressões são cadenciados e potencializam sua presença material significante na tela.

Os planos de Green são compostos com muita precisão, enquadramentos sóbrios, movimentos de câmera sempre lentos, aproximação e recuo em relação aos espaços, personagens e ações extremante calculados. Tudo na mise-en-scéne do diretor busca a multiplicidade e as texturas significativas das imagens, a contextualização entre personagens, ambientes, ações, texto e movimentos sempre em função dos significados que quer atingir em cada sequência. Em ‘La Sapienza’, tanto pelas questões da busca de ascese em direção a forças superiores (sabedoria, beleza) quanto por filmar detalhadamente construções barrocas imponentes, a câmera de Green constantemente se move para cima e segue lentamente até atingir o topo das igrejas e palácios e em muitas ocasiões segue ainda mais em direção ao alto para focalizar o céu, como o destino final da busca metafísica pelo conhecimento. A amplidão do firmamento que reserva as possibilidades de acesso ao sublime.

O uso da luz é fator constituinte de cada plano de ‘La Sapienza’. O trabalho de fotografia que busca dar peso sensorial e simbólico à luz é percebido pelos tons de luminosidade que invadem e preenchem o quadro, envolvendo de maneira densa os personagens e os espaços. Uma luz clara, que evoca sensações de conforto, funciona como catalisador dramático, como se a luminosidade pautasse tudo o que acontece na tela e guiasse o olhar dos personagens, conferisse novas formas e possibilidades de ver (perceber) os espaços e as construções e projetasse no espectador as sensações de transcendência que Green busca em suas cenas.

O barroco, influência marcante em toda a obra do diretor, ganha ainda mais potência dramática e força de condução narrativa em ‘La Sapienza’. Green é um artesão da imagem e do texto, um cineasta que constrói seus filmes a partir do esmero com que elabora cada plano em seus mínimos detalhes, dentro de sua visão extremamente particular do mundo, da história e do papel complexo e paradoxal de mulheres e homens no meio em que vivem e dentro dos processos históricos que carregam na construção de suas subjetividades. Trabalha o valor da palavra e do texto de maneira intensa e relaciona tudo com a força subjetiva e sensorial de suas imagens e da luz que ilumina suas cenas e apontam um caminho a ser segundo na busca pelo sublime, pela beleza e pela sabedoria (Sapienza) no que ela tem de mais transformador e potente.

‘Party Girl’, de Marie Amachoukeli, Claire Burger e Samuel Theis

Por Fernando Oriente

Party GirlÉ raro em um primeiro longa que cineastas acertem de maneira contundente na junção correta entre forma e matéria, que consigam que discurso e narrativa atinjam pontos de densidade sem cair em maneirismos, emulações de alguns estilos de cinema já consagrados ou em muletas estéticas e narrativas. Marie Amachoukeli, Claire Burger e Samuel Theis (os três diretores que co-assinam a realização do filme) conseguem esse feito em ‘Party Girl, longa de 2014 e uma das boas estreias do ano em nossos cinemas. Apesar de certa irregularidade (presente em raros momentos em que algumas situações dramáticas poderiam ser exploradas de maneira mais longa e elaboradas, mas que não prejudicada em nada o desenvolvimento da obra), o longa de estreia do trio de realizadores resulta em um filme forte, com momentos realmente impactantes e uma relação muito sólida entre a câmera e a protagonista Angélique. ‘Party Girl’ é um filme totalmente voltado a sua protagonista, ao que ela sente, ao que ela carrega de seu passado (o que a coloca em um constante limbo existencial diante aos fatos novos que a envolvem no presente) e a maneira como Angélique se tornou, com seus mais de 60 anos de vida, uma pessoa cética, que procura esconder sua melancolia em uma rotina de constante movimento, cercado pelos espaços e as pessoas que a mantém segura dos receios de uma vida que ela não sabe como viver fora de todos os códigos e maneiras de defesa que encontrou para se proteger daquilo que possa ameaçar as redomas de auto-proteção que ela ergueu em torno si ao longo dos anos.

A encenação de Amachoukeli, Burger e Theis é toda baseada em uma decupagem ágil, planos curtos, pequenas e constantes elipses, enquadramentos fechados e uma câmera ágil, na mão. O trabalho de câmera é notável, mesmo em constante movimento – movimento que também está presente o tempo todo dentro do quadro – a câmera dos diretores sabe exatamente por onde se deslocar, quais personagens procurar, quais ações ressaltar. É quase sempre Angélique que a câmera procura, sejam seus gestos e, principalmente seu rosto, seus olhares e a variação de sentimentos que ela exprime por meio desses olhares.

Angélique trabalhou a vida toda em cabarés e mesmo com mais de 60 anos ainda vive e trabalha em um, na fronteira entre França e Alemanha. Nesse ambiente ela se sente segura, embora não exista uma simplicidade na construção de sua personalidade, os diretores deixam sempre evidente que se trata de uma mulher melancólica, que embora sinta certa segurança em estar dentro do cabaré, em beber e sair com as amigas e colegas pela cidadezinha onde mora, carrega dentro de si uma dor reprimida pelas frustrações e perdas que a vida lhe impôs. O filme não cai em sentimentalismos, em situações de dramas piegas, não perde tempo explicando ou revelando as tristezas e dores do passado de sua protagonista. Sentimos o peso daquilo que Angélique viveu apenas por meio de seus olhares, seus gestos, seus silêncios, algumas de suas falas, seus sorrisos reprimidos. Sua entrega à bebida, as danças, ao movimento constante que preenchem seus dias e suas noites.

A virada dramática de ‘Party Girl’ acontece quando Angélique aceita casar com um de seus clientes mais fiéis, Michel, um homem da sua idade, que já não quer mais se relacionar com ela no cabaré, que sonha construir uma vida de companheirismo dentro de padrões mais normais segundo os códigos sociais. Aposentado, dono de uma casa confortável, ele quer construir ao lado dela uma vida serena, pacata, um refúgio de tranquilidade para alguém que se sente velho demais para manter uma rotina de noitadas, bebedeiras, cabarés; alguém que idealiza em Angélique uma parceira, uma mulher que supra sua solidão em meio ao pouco de conforto que conquistou ao longo da vida. Michel é carinhoso, compreensivo, dedicado. Trata Angélique com respeito, sabe e aceita todo seu passado, mas quer construir algo novo, uma situação em que a rotina em que ela está acostumada a viver (sobreviver) não terá mais espaço.

Mesmo reticente Angélique aceita o casamento, com isso se aproxima de seus filhos e netos mais próximos, retoma o contato com seu outro filho que mora em Paris e parte em busca de uma reaproximação com sua filha caçula, que lhe foi tirada pela justiça ainda criança e entregue a uma família adotiva. Todas essas novas relações que surgem no filme, a relação da protagonista com filhos e netos, a reaproximação da filha caçula que ela não vê há anos, o convívio do casal com seus amigos (tanto os de Michel quanto as de Angélique) e a maneira como Michel participa dessas novas convivências na vida de Angélique são trabalhadas com complexidade e naturalidade por Amachoukeli, Burger e Theis, que fazem desses encontros, dessas descobertas e dos novos conflitos dramáticos que surgem junto com os novos personagens em cena momentos dramaticamente consistentes em que as texturas das relações, a evolução narrativa e as camadas dramáticas dos personagens em constante interação sejam expostas ao espectador de maneira objetiva e autêntica. Estamos diante de um filme que trabalha bem cada personagem, cada relação entre eles, que constrói os vínculos entre os tipos de maneira sincera, que deixa de maneira sóbria e consciente muitas tensões e dramas apenas sugeridas ou restritas ao extracampo, que ressalta os aspectos e limitações humanos de pessoas comuns em meio a situações bem construídas dentro de um naturalismo vigoroso no interior de situações banais e corriqueiras.

'Party Girl'Mas o centro do filme é Angélique, seus sentimentos, suas limitações, sua melancolia reprimida, sua tristeza suspensa. Por mais tentadora que a nova vida pareça, ela, embora se esforce e reconheça o valor daqueles que a cercam, parece não conseguir de adaptar ao lado normatizante da sociedade. Sabemos que ela é uma sobrevivente, que passou décadas construindo pequenos mecanismos de defesa para uma vida de limitações e renúncias. Ela nunca irá pertencer ao mundo das pessoas normais. Ela é uma funcionária de cabaré, ela encontra segurança na noite, em casas noturnas com suas luzes artificiais, seus encontros fugazes, nos porres e na amizade com mulheres que são como ela, marginalizadas do mundo pequeno burguês e suas migalhas de conforto e alegria institucionalizada.

Angélique é fruto do meio em que sempre viveu, das marcas desse meio e do estilo de vida que isso impôs a ela, que fez com que encontrasse formas precárias de segurança, proteção e autodeterminação como mulher marginalizada, que aprendeu a aceitar todas as renúncias a que foi forçada, que se sente muito mais viva no movimento constante, nas bebedeiras, nos ambientes de cabaré, na alienação discreta de um dia a dia sem regras, na companhia de suas pares. Ela sabe que a solidão em que vive é o que a vida reservou para ela. São tantas marcas, tanto foi vivido por essa mulher, que qualquer forma de normalidade, de aproximação e troca mais intensa com outro ser humano a faz mais consciente de sua melancólica e de sua vida de sofrimentos. É mais seguro e cômodo continuar sua rotina de instantes fugazes, relações distantes. Ela precisa dessa solidão discreta, não existe mais tempo para que fuja daquilo que a sua existência forjou para ela.

Isso tudo, que não é pouco, nos é passado de maneira sólida, ágil, reflexiva, com força e intensidade por Amachoukeli, Burger e Theis, tanto pelas escolhas corretas no desenvolvimento narrativo, na construção e evolução dos personagens e suas relações, nas modulações dramáticas, na edição vigorosa (com seus cortes abruptos e secos) e num trabalho ótimo de câmera, totalmente ancorado numa belíssima decupagem. Belo filme, que ainda reserva uma conclusão com direito aos lindos planos, cheios de significação, que fecham o filme.

‘Adeus à Linguagem’, de Jean-Luc Godard

Por Fernando Oriente

Adeus à LinguagemPara Jean-Luc Godard, em toda sua obra e demasiadamente em ‘Adeus à Linguagem’, é por meio do conceito amplo da estética, ou seja, de um conjunto inter-relacionado das imagens, sons, ruídos, colagens, textos, ações, discursos, sobreposições, músicas, questões e idéias que pode haver uma possibilidade (nunca a certeza ou a garantia, mas as probabilidades contidas nos signos e significantes) para a existência do discurso – da linguagem, do cinema como expressão artística, filosófica, estética, política e existencial. Mesmo que esse discurso seja desconstruído constantemente pelo próprio Godard. Todo o ensaio poético que é ‘Adeus à Linguagem’ – com suas narrativas fragmentadas, com a sobreposição de imagens e textos, de seus muitos diálogos, de sons e movimento, por meio da própria composição dessas imagens em camadas (ampliadas aqui pelos efeitos do 3D) – é uma construção simbólica e sensorial de um conjunto de idéias, de enunciados, de questões, de afirmações (sempre contrapostas, reafirmadas ou questionadas) que configuram a percepção de mundo, o recorte pessoal de Godard sobre o atual estado das coisas, bem como um retrato das inquietações e da visão complexa e criticamente melancólica de um cineasta de 84 anos que mantém a pulsão e o vigor artístico no auge de sua potência criativa (muito mais ousado, radical e original do que qualquer jovem artista).

‘Adeus à Linguagem’ é um filme político, filosófico, antropológico, semiológico ao mesmo tempo em que se trata de uma obra próxima a uma sinfonia minimalista, densa em sua simplicidade, expressiva em cada um de seus detalhes e impressionista pela abertura porosa com que se entrega ao espectador com uma gama enorme de possibilidades interpretativas e sensoriais.

Se Godard sempre trabalhou numa constante construção estética em que imagens eram compostas sempre para gerar conflitos com as ações, com as palavras e com o uso radical da banda sonora, em ‘Adeus à Linguagem’, JLG faz um uso primoroso das possibilidades do 3D. Em alguns momentos, ele usa o 3D dentro de sua função primeira, que é potencializar de maneira límpida a profundidade de campo e com isso intensificar as relações entre os primeiríssimos e primeiros planos, os planos médios e os planos de fundo. Quando Godard usa o 3D dessa maneira mais tradicional, ele o faz por meio de uma construção de quadro exuberante, em que o posicionamento de câmera, as angulações, a mise-en-scéne, as ações e a movimentação dos personagens e as relações entre eles e os objetos de cena ganham um sentido de desordem e movimento constante que ampliam o discurso do filme em relação às camadas conflitantes das múltiplas representações nas formulações da linguagem e ao deslocamento existencial do homem no espaço, no mundo. Nessas cenas, personagens entram e saem de campo, interagem entre si, dialogam, ou apenas observam as ações de outros, quando não apenas passeiam dento do quadro para logo em seguida saírem de cena.

Mas o uso mais radical e constante que Godard faz do 3D em ‘Adeus à Linguagem’ é quando ele distorce os efeitos do 3D para explorar as múltiplas camadas das imagens e faz com que elas entrem em conflito intenso entre si ao mesmo tempo em que são radicalizadas cada vez mais. JLG usa efeitos que tornam as imagens tridimensionais difusas, borradas, onde o foco e a limpidez se dissolvem em planos cujas camadas da imagem se desprendem umas das outras, se sobrepõem e criam uma sensação de desordem sensorial, em que o olho do espectador é provocado pela não clareza das cenas, pelas distorções visuais que o conflito radical das imagens em texturas de 3D fragmentadas provoca. É um experimentalismo visual e estético que gera desconforto e acentua ainda mais o discurso de desarranjo imagético e discursivo do mundo e do indivíduo. Um desarranjo, um desconforto que parte destas distorções das imagens em camadas conflitantes dentro do uso fraturado do 3D e passam a se relacionar de maneira mais agressiva aos textos, aos sons e a todo o conteúdo discursivo do filme. A instabilidade da imagem provocada pelo uso desses recursos por Godard em ‘Adeus à Linguagem’ pode ser compreendida como a tentativa de criação de um espaço-tempo através do qual detalhes específicos podem ser percebidos, problematizados e aprofundados.

Novamente Godard utiliza a constante variação de diferentes captações de imagem e das múltiplas texturas com que essas imagens surgem na tela. Imagens de arquivo, passagens de filmes antigos, cenas filmadas em digital de alta resolução, sequências com cores estouradas e saturadas, imagens de baixa resolução, um uso primoroso da luz e das variações de luminosidade dentro do quadro, redução na velocidade dos planos e as distorções imagéticas do uso radical do 3D são parte fundamental da composição estética de ‘Adeus à Linguagem’ e potencializam ainda mais a provocação dos sentidos que o diretor causa no espectador pelo uso radical e criativo da fusão frenética de diversas formas de representação do mundo por distintas composições imagéticas.

Toda esta construção do discurso estético do filme é sobreposta ao texto. Muitas vezes os diálogos são diegéticos (estão sendo proferidos pelos tipos que vemos na tela), em outros momentos o texto e a palavra vêm do extracampo; frases (idéias, questões) que são repetidas em momentos distintos ao longo do filme. Tudo isso aliado a um uso radical do som, que por meio de frases, citações e discursos dispersos, diálogos recortados, interrompidos e novamente retomados, ruídos e músicas formam um bloco sonoro que se desdobra em múltiplas texturas sonoras, que comentam, reafirmam, negam e potencializam as imagens em que estão inseridos, com as quais dialogam dialeticamente. Godard é, a cada novo filme, mais dialético, mais aberto aos conflitos estéticos que servem de suporte para os confrontos ideológicos de seu discurso.

'Adeus à Linguagem'‘Adeus à Linguagem’ é composto por inúmeras citações, textos, fragmentos de pensamento de nomes como Walter Benjamim, Dostoievski, Jacques Derrida, Freud, William Faulkner, Alan Badiou, Flaubert, Proust, Beckett e Sartre, entre muitos outros. Godard costura esses textos, em meio aos seus próprios textos, às suas idéias e falas de uma maneira orgânica que o permite criar um discurso totalmente novo e autônomo, em que todos esses autores, filósofos, e pensadores se fundem ao texto de JLG em um discurso original que re-significa e atualiza todos esses conceitos e idéias sob a ótica e a formulação discursiva dialética de JLG. Cada plano é um devir em si.

Se Godard aborda no filme a crise, o iminente fim ou saturação da linguagem (representação) da sociedade ocidental, ele o faz ao preencher seu filme com diálogos e textos (sempre ancorados nas potencialidades e instabilidades das imagens) em que se discutem a morte, a representação dos indivíduos, o amor, a guerra, o papel do Estado, as limitações do indivíduo, as questões político-econômicas, as possibilidades de duas ou mais pessoas estarem realmente juntas e em sintonia, a solidão, a busca metafísica por Deus e o colapso de um modelo de sociedade que claramente está em seu crepúsculo. A linguagem e o discurso e seu possível esgotamento é um reflexo, bem como um sintoma desse mundo europeu, ocidental que está à beira de uma exaustão real e, principalmente simbólica. O filme é uma elegia à imagem, a uma representação esfacelada do que restou para tentar se aproximar dessa sociedade à deriva.

‘Adeus à Linguagem’ trabalha dentro do conceito do filósofo e psicanalista Félix Guattari sobre uma abordagem complexa e plural das construções dialéticas da linguagem que seja capaz de ir em direção à representação heterogênea das subjetividades. Uma representação que fuja da construção mercantilizada pela alienação de uma indústria cultural e simbólica que inunda a sociedade com visões pré-fabricadas de uma subjetividade única, baseada em padrões ocidentais capitalistas de uniformização castradora do indivíduo. Godard aborda as possibilidades de construções da linguagem, das imagens, da fala, dos textos, dos sons e dos conceitos teóricos (tanto políticos, quanto sociológicos, filosóficos, históricos, estéticos e antropológicos) de maneira que seja possível uma visão/construção da linguagem como representação da pluralidade dos indivíduos e de suas subjetividades heterogêneas, sempre em processo de constituição, em contradição. Uma construção coletiva e aberta dessa subjetividade heterogênea proposta por Guattari.

É dentro desse processo que aproxima Godard de Guattari, que JLG usa constantes menções a sociedades arcaicas ou simplesmente ignoradas pela visão eurocêntrica. Temos no filme referências à construção simbólica do mundo feita pelos índios, uma busca constante de uma personagem sobre como se compreender a África e suas organizações simbólicas e sua ignorada construção subjetiva. E temos uma permanente aproximação (uma observação crítica através da câmera), por meio de imagens, planos inteiros, sons e ruídos da Natureza, sejam em imagens de plantas, do solo, rios, do mar, de rochas, da terra, da água e de espaços abertos em que o homem nunca está em cena. Aqui, é um cachorro quem faz o elo entre a linguagem primeira contida na Natureza e o mundo construído das cidades urbanas em que homens e mulheres habitam e se deslocam, como espectros, em constante movimento, mas um movimento ilógico, mecanizado, desprovido de percepção dos espaços e da relação que eles têm com esses ambientes. Esse mundo urbano é representado por Godard em cenas que registram a movimentação e os ruídos de bares, estações de metrô, ruas, avenidas, estradas, postos de gasolina, faróis de trânsito, um píer onde turistas entram e saem de um barco que passeia em círculos por um lago, imagens filmadas de dentro de carros em movimento e sequências no interior de um apartamento de um casal, esses os responsáveis pela maioria dos diálogos e textos do filme. As cenas nos vários cômodos do apartamento trazem algumas das mais belas imagens do filme e impressionam pela maneira orgânica como Godard filma os corpos em suas ações mais banais, em movimento ou estáticos e a beleza que Godard extrai do registro da materialidade desses corpos nus.

A subjetividade animal, as teorias de como um cachorro percebe o mundo e se insere nele, é um dos principais comentários do discurso de Godard em ‘Adeus à Linguagem’, porque é justamente na oposição entre a capacidade de observação, a relação física e simbólica que o cão tem com o espaço que os homens perderam.

A obra de Godard sempre teve como centro motor uma busca estética, formal e de discurso por problemas, angústias, feridas e inquietudes do presente, mas sempre em relação ao passado e seus efeitos. É por isso que ‘Adeus à Linguagem’ é entrecortado por imagens de filmes clássicos, por cenas documentais de arquivo em que vemos guerras e personagens históricos, representações imagéticas de um tempo passado que ecoa na desordem do mundo contemporâneo.

Esse processo se torna elemento cada vez mais central no cinema de JLG desde os anos 80 e se radicaliza em sua fase mais ensaística, a partir dos anos 90, após o diretor concluir suas ‘Histoire(s) du Cinema’. Nunca oferecendo soluções, e sim problematizando essas questões dentro de um paroxismo que contamina seus enunciados, situações dramáticas e a própria mise-en-scéne de seus filmes. Essa construção está em cada fotograma de ‘Adeus à Linguagem’.

‘Adeus à Linguagem’ é mais uma reafirmação de JLG de que o cinema para ele – seu cinema, sua arte – é algo que problematiza, gera conflitos internos e externos a sua própria matéria, abusa de digressões e da dialética constante entre imagem, textos e sons; uma obra que trabalha nas contradições, nas incertezas, no levantamento constante de questões, nas arestas, no confronto de idéias, numa encenação em camadas e fragmentada e nas aberturas para inúmeras leituras, interpretações e reinterpretações. Seu cinema não é dotado de esclarecimentos prontos, de certezas, de dogmas que entregam experiências acabadas para o espectador. ‘Adeus à Linguagem’ e toda a obra de Godard permitem ao público uma contemplação crítica e reflexiva em que podem e são convidados a buscar interpretações múltiplas do mundo e de si mesmos.

Adieu au LangageA linguagem é o processo pelo qual as representações são concebidas, absorvidas e codificadas. Se o desejo, para Freud, é uma representação, é a linguagem que vai pautar as relações de construção entre o sujeito e a concepção de seus desejos e suas vontades. Em ‘Adeus à Linguagem’ Godard trabalha em cima da crise dessa relação da construção do desejo e de ordenamento interno das vontades, um desejo frustrado, muitas vezes incapaz de se materializar em discurso e impossível de ser satisfeito, mas que se mantém em processo de formação e reconfiguração constante de suas representações por meio das imagens, suas camadas e significações, por meio do texto, por meio dos sons e ruídos, por meio das múltiplas possibilidades de absorção do mundo e de como elas nos conduzem de maneira conflituosa a construções de absorção interpretativas dos espaços, dos indivíduos e das macro e micro relações que se constituem e se dissolvem num movimento perpétuo de re-significação do mundo e das múltiplas subjetividades em conflito constante com esse mundo, não só material, mas também imaterial, aquilo que transcende a própria razão lógica e material da vida. ‘Adeus à Linguagem’ é uma obra-prima, um filme melancólico, crepuscular, mas nunca resignado. Uma frase dita em determinado momento do longa pode servir de farol para um aproximação sintética do discurso godardiano no filme: “Em breve todos precisaremos de intérpretes. Precisaremos de intérpretes para entendermos aquilo que sai das nossas bocas”

Há séculos, um gênio como Mozart, entre as inúmeras realizações que deixou para o mundo, compôs o seu réquiem, mesmo que de maneira involuntária. Hoje, outro gênio, Jean-Luc Godard, parece ter feito exatamente a mesma coisa, porque ao realizar ‘Adeus à Linguagem’, Godard pode ter composto o seu próprio réquiem, só que de forma total e melancolicamente voluntária. Para sempre Godard.

Mostra Nicolas Klotz no CineSesc em SP e ‘Rua Secreta’, de Vivian Qu nos cinemas

Por Fernando Oriente

Mostra Klotz e PercevalO cinema do diretor francês Nicolas Klotz vai muito além de seu longa mais famoso, o belíssimo ‘Questão Humana’ (2007), que chegou a ser lançado nos cinemas brasileiros e também em DVD. Os filmes de Klotz, sempre em parceria com sua mulher Elisabeth Perceval – tanto as ficções como os documentários e filmes experimentais -, trabalham dentro de uma constante pesquisa de linguagem e discurso, buscam sempre expressar tanto questões sociais, políticas e existenciais do homem contemporâneo quanto discutir o valor e as representações das questões que envolvem a imagem, sua construção e como essas imagens se relacionam com a arte, a história, as representações de mundo e a própria evolução do cinema na sociedade.

A Ferida

‘A Ferida’

Klotz e Perceval têm seus longas, médias e curtas exibidos pelo CineSesc em São Paulo, de 15 a 22 de julho, dentro da mostra ‘O Cinema de Klotz e Perceval: A França dos Excluídos’. São filmes raros, em diversos formatos e que dialogam constantemente entre si e com o mundo em que vivemos. Entre suas ficções, além do já consagrado ‘Questão Humana’, os destaques são ‘Paria’ (2000), ‘A Ferida’ (2004) – o melhor filme de Klotz – e ‘Low Life’ (2011). Esses dois últimos foram exibidos na Mostra Internacional de Cinema em São Paulo.

Uma sessão imperdível na mostra do CineSesc é que a reúne os curtas e médias de Klotz e Perceval, filmes que podem ser lidos como estudos, alegorias, ensaios e experiências visuais e sonoras sobre o próprio cinema, seus mecanismos, seus dispositivos e suas relações diretas com a história como arte e linguagem (todos extremamente cinematográficos, cinema puro e visceral). São filmes em que, apesar da desconstrução estético-narrativa, Klotz e Perceval não deixam de elaborar e desenvolver como parte de seu discurso político no cinema e destacar o papel dos marginalizados e excluídos dentro da composição do tecido social contemporâneo.

Dois outros destaques estão na programação da mostra no CineSesc. A estreia mundial do novo filme de Klotz e Perceval, ‘Zombies’, recém finalizado pelo casal e a primeira exibição do documentário ‘NK + EP’, dirigido pelo curador e produtor da mostra Leonardo Luiz Ferreira (autor do belo ‘Chantal Akerman, De Cá’ (2010), co-dirigido por Gustavo Beck). ‘NK + EP’ faz um registro sentimental da  passagem de Klotz e Perceval pelo Brasil em 2014 e a visita que o casal fez ao Morro do Vidigal no Rio de Janeiro na procura por uma atriz para um teste de elenco.

Veja aqui a programação completa da Mostra ‘O Cinema de Klotz e Perceval: A França dos Excluídos’ no CineSesc. 

 ‘Rua Secreta’, de Vivian Qu

Rua SecretaO primeiro longa como diretora da produtora chinesa Vivian Qu, ‘Rua Secreta’, tem dois blocos bem distintos, duas partes claras. Entre esses dois blocos existe uma grande diferença de intensidade. Tudo de positivo que existe na segunda metade do longa – um discurso forte com situações dramáticas bem exploradas que compõem um ácido painel da China dos dias de hoje como um Estado opressor, invasivo e que controla seus cidadãos como marionetes em meio a um crescimento econômico e tecnológico que fazem do país cada vez mais uma potência ocidentalizada – não se vê na primeira parte do filme.

Todos os primeiros 50 minutos de ‘Rua Secreta’ são construídos para criar uma situação de estranhamento no cotidiano dos personagens que vemos em cena. A partir de um registro seco, com uma narrativa dividida em fragmentos que acompanham o protagonista (um jovem que se divide entre o trabalho catalogando ruas para a confecção de um mapa digital da cidade e seus bicos como instalador de câmeras de segurança) e seu envolvimento com uma jovem que trabalha numa misteriosa empresa localizada em uma rua sem saída que não consta nos mapas, Vivian Qu tenta inserir os elementos de suspense a e a construção do estranhamento que irão ganhar força dramática e se constituir como discurso apenas na segunda metade do filme. O problema da primeira parte do filme é exatamente o fato da diretora não se aprofundar nas texturas das situações que ela indica e não assumir as características de cinema de gênero (no caso o suspense psicológico e as alegorias político-sociais). Vivian tenta fazer tudo ser natural demais, esconder o estranhamento através da aparente normalidade das ações, dos personagens e da realidade em que estão inseridos, o que é um ótimo recurso, mas que exige mais potência cênica e uma maior entrega dramática à força das situações sugeridas. Vivian se preocupa demais em manter o aparente controle narrativo quando poderia ter se arriscado mais, se entregado mais às imperfeições e aquilo que escapa pelas arestas das situações dramáticas, faltou dar mais força às sugestões e ter menos necessidade de manter a narrativa sob controle rígido.

Mas ao mesmo tempo, a cineasta deixa claro que existe muito mais do que a inocência do protagonista é capaz de perceber. Se ela faz questão (e é necessário que faça para o filme se consolidar como um todo a partir da reviravolta que dá início a parte final) de introduzir esses elementos de deslocamento e de mistério desde início, ela peca ao não se aprofundar por meio de uma encenação que potencialize a estranheza em meio à normalidade. Tudo na primeira metade é leve demais, fragmentado demais; falta o vigor e as texturas da própria mise-en-scéne que estarão presentes no segundo bloco.

‘Rua Secreta’ é um bom filme em seu todo, se consolida como discurso a partir da segunda metade e caminha sólido até o final. Vivian Qu acerta em cheio ao não dar explicações, em não criar nada que tire os personagens da sua situação de impotência e de sua incapacidade de perceber a força do todo que os esmaga. Ela consolida sua alegorias sobre a China contemporânea, deixa claro os processos brutais de transformação e controle que o Estado chinês impõe aos seus cidadão tratando-os como marionetes, objetos dentro de uma máquina gigantesca que tritura as subjetividades em prol de uma pujança da nação.

O problema do filme esta na construção do enunciado, que poderia ser mais densa e caminhar de maneira mais potente dentro do desenvolvimento dramático da narrativa. O longa é irregular exatamente por termos uma parte final com as exigências de texturas dramáticas exploradas com força de encenação e uma primeira metade mais frouxa. Isso prejudica o todo do filme, mas não o impede de ter suas qualidades, não tira as possibilidades de leitura do discurso de Vivian Qu, mas priva o espectador de se projetar com mais potência dentro das construções dramáticas desde o início. Para um primeiro longa, Vivian se sai bem e faz um filme com mais qualidades que defeitos, que se mantêm fiel a sua proposta dramático-discursiva, deixa clara a força da cineasta como encenadora e que merece ser visto.

‘O Pequeno Quinquin’, de Bruno Dumont

Por Fernando Oriente

O Pequeno QuinquinExiste uma presença constante nos filmes de Bruno Dumont: o mal. Um mal metafísico, que manipula personagens e ambientes, que comanda as ações e condena todos a uma letargia estática, a uma prostração sufocante. Essa força esmagadora não tem rosto, nem origem, ele é onipresente e faz-se sentir a cada plano dos longas do diretor, ela é naturalizada dentro dos mecanismos e opções de encenação de Dumont. Manifesta-se como uma doença contagiosa, que impele personagens a ações violentas, a explosões de ódio, à apatia, a relações mecanizadas desprovidas de qualquer manifestação sensível de sentimentos e a um vazio existencial aprisionante.

O mal em Dumont é diferente daquele presente no cinema de Fritz Lang ou de Alfred Hitchcock, que era a maldade que irrompia de dentro do homem e das situações para levar diretamente a ações de violência e crueldade, um mal que era uma das partes constituintes do caráter humano e que por vezes aflorava sem controle, revelando a complexidade existencial humana. Em Bruno Dumont, o mal é presença constante e força maior que rege a natureza, sendo o homem apenas uma pequena parte dessa natureza, totalmente manipulado por esse mal e incapaz sequer de percebê-lo, por isso um mal metafísico, que foge de razões psicanalíticas para se instalar como força natural (até mesmo banal) e condicionante do mundo e das pessoas. O mal de Dumont é próximo aquele que contamina os filmes de Robert Bresson, que também via a onipresença da maldade como força fundadora do mundo. Em Bresson, esse processo tinha um caráter mais religioso (embora totalmente depurado de efeitos dramáticos e sensoriais, encenados dentro de um rigor frontal, seco e objetivo), que sugeria uma dialética mística entre o real e aquilo que não se pode compreender pela razão. Em Dumont, esse aspecto místico-religioso não existe. Tudo é naturalizado e parte constituinte da matéria básica do mundo, de onde o diretor inicia e funda toda sua construção dramática e seu discurso epidérmico e direto. Tanto Bresson quanto Dumont não julgam, apenas expõem.

No cinema de Bruno Dumont, esse mal naturaliza os preconceitos, o racismo, a xenofobia, a violência, banaliza agressões e mesmo assassinatos brutais e afasta qualquer possibilidade de afeto real entre as pessoas. Os sintomas estão presentes na apatia dos tipos, na presença constante de personagens com problemas mentais, no peso dos tempos mortos em que as pessoas perambulam movidas por inércia, sem objetivos ou se largam prostradas em meio à vastidão dos espaços. Não é a toa que o cenário perfeito para os filmes de Dumont seja o interior da França, com suas cidadezinhas decadentes, habitadas por tipo rudes, ignorantes, em que a falta de ter o que fazer se funde a poeira e ao barro, às casas desgastadas pelas marcas do tempo, a estradinhas onde os personagens se deslocam em mobiletes barulhentas ou em bicicletas velhas. É uma França profunda, um apêndice apodrecido daquela nação do conhecimento, das artes e da intelectualidade.

‘O Pequeno Quinquin’, concebido como uma mini-série para a TV, mas exibido nos festivais e na versão que chega agora aos cinemas brasileiros como um longa de 3h20, é um filme em que Bruno Dumont trabalha todos os elementos que caracterizaram o melhor de sua obra até agora. É um filme que dialoga diretamente com seus melhores trabalhos, ‘A Vida de Jesus’ (1997), ‘A Humanidade’ (1999) e ‘Fora de Satã’ (2011). ‘O Pequeno Quinquin’, visto como um longa (e não quebrado em capítulos) potencializa a força do filme. Com sua longa duração, Dumont pode acentuar a intensidade que imprime ao peso do tempo que contamina as sequências, dar maior ênfase aos gestos e expressões de seus personagens, aumentar a sensação do arrastar desse tempo, ampliar a relação vazia dos personagens com os espaços abertos, com uma natureza bela, mas sufocante, capaz de camuflar toda a sordidez de um mundo desencantado em que a qualquer momento a abjeção pode surgir e desaparecer como manifestação bruta e plena desse mal que move o universo do filme, bem como a visão de mundo do diretor.

Como em seus melhores filmes, ‘O Pequeno Quinquin’, é composto por planos abertos, em que Dumont destaca a pequenez do homem em meio a um cenário amplo. O uso funcional do scope potencializa esse recurso e permite ao diretor expandir para as bordas do quadro uma amplitude geográfica que se estende para muito além dos planos, dando a sensação sufocante de um mundo incapaz de ser enquadrado em seu todo dentro de uma imagem. As forças metafísicas que regem o cinema de Bruno Dumont, esse mal primordial e atávico, transbordam os limites daquilo que sua câmera pode registrar. O diretor enfatiza que os impulsos que conduzem o destino e as ações humanas são incapazes de serem traduzidos em explicação teóricas e muito menos captados em registros imagéticos. Esse complexo discurso sobre forças metafísicas que conduzem a vida são construídos por Bruno Dumont dentro de códigos naturalistas, sem nenhuma espetacularização. Suas imagens são diretas, secas. Sua decupagem básica e aberta a pequenas elipses. A evolução narrativa não segue a lógica da construção de um clímax e nem busca a explicação lógica para os fatos.

Muitos ressaltaram os aspectos e a presença do humor em ‘O Pequeno Quinquin’. Essa comicidade existe, mas muito mais dentro de um patético, que reduz ainda mais os personagens a suas limitações e incapacidades do que como recursos de comédia. Existe uma ampliação das restrições humanas por meio de situações grotescas que provocam o riso no espectador, mas um riso que remete a uma imediata autocrítica dentro dos movimentos internos do filme.

'O Pequeno Quinquin'Em ‘O Pequeno Quinquin’ temos uma série de crimes que acontecem na cidadezinha onde se passa o filme e são investigados por uma dupla de policiais que beiram a caricatura; aqui mais uma jogada de mestre de Dumont, ao contrapor os tipos idiotizados (que beiram o burlesco) dos policias com a aspereza rude e a apatia dos habitantes da cidade. Os assassinatos são cometidos com requintes de crueldade que nunca são mostrados. Sabemos dos detalhes pelos diálogos entre os personagens. Os primeiros corpos são encontrados picotados no interior de duas vacas. Aqui Dumont aproxima de maneira clara a animalidade do ser humano, de suas ações abjetas e da fragilidade de seus corpos com a própria natureza orgânica dos bichos. Uma metáfora direta, que retorna mais tarde quando uma das personagens assassinadas é devorada por porcos. Dumont não vê grandes diferenças que separem seus personagens dos animais. A natureza corrompida pelo mal onipresente do homem o bestializa a ponto de fundir os restos de suas carnes e entranhas ao corpo físico dos animais. São as bestas humanas que batizam um dos capítulos do longa.

E existe o jovem Quinquin, um pré-adolescente que vive seus primeiros dias de férias quando a onda de crimes tem início. Quinquin é a chave dramática para Dumont ligar os pontos da trama. Ligar, não explicar. O garoto é uma figura onipresente em todos os cantos da cidade, está sempre por perto quando os cadáveres são descobertos, encontra um caminho secreto que explica como uma das vacas foi parar dentro de um abrigo militar da Segunda Guerra abandonado. Ele recebe a notícia dos crimes com a mesma indiferença dos moradores da cidade. A incapacidade de demonstrar emoções é presença marcante nos tipos que protagonizam os filmes de Dumont. Mas Quinquin tem algo a mais, que é captado e sugerido pela câmera de Dumont por meio da variação das expressões de seu rosto, por suas atitudes, pequenos gestos e pela maneira como Quinquin se destoa dos demais personagens. Existe no garoto texturas de personalidade que fogem da simples apatia dos demais personagens e o sorriso dúbio e discreto que ele estampa em seu rosto em dos planos finais o aproximam de uma maneira ambígua e aberta das fontes do onipresente mal que contamina o filme. O diabo personificado que o detetive insiste que está à solta na cidade pode ter alguma relação mais próxima das complexidades de caráter do jovem Quinquin. Nada sobrenatural, mas sim uma relação naturalizada entre um personagem e a abjeção que controla o mundo.

‘Uma Garota Dividida Em Dois’, de Claude Chabrol (2007)

Por Fernando Oriente

Uma Garota Dividida Em DoisEm seu cinema, Claude Chabrol sempre provoca o espectador. Faz propositalmente com que o público espere algo mais de seus filmes (uma explicação, uma conclusão extra, um plano a mais) e, de forma intencional, não inclui nada a mais que dê essa satisfação imediata. Mestre das manipulações sofisticadas, o cineasta usa sutilezas e muito cinismo para evitar qualquer situação fácil; ele expõe os elementos da trama, levanta questões e deixa as conclusões a cargo da platéia. Seu discurso é composto na dialética entre o que se desenvolve na tela e naquilo que acontece fora do quadro, antes ou depois dos planos; na relação do que encena com um entorno que ele faz questão de insinuar e desconstruir, mas sem nunca penetrar em detalhes. O que Chabrol faz é propor um jogo ao seu espectador cujas regras são o cinismo, a ácida crítica ao universo que ele retrata, os paradoxos das situações e as múltiplas possibilidades de leitura que ele impõe aos seus personagens e aos dramas.

Chabrol é um estudioso das relações humanas e um mordaz crítico do mundo burguês, que trabalha sempre nos inter-textos, nos paroxismos e nas sugestões implícitas propostas pelos dramas, e compõe tudo isso com um domínio completo das modulações da encenação e na força da decupagem. ‘Uma Garota Dividida em Dois’ é mais um belíssimo exemplar de como a câmera do cineasta focaliza essas relações com intensidade cirúrgica e expõe as tensões e o patético das paixões humanas sem nunca cair em moralismos ou clichês.

A garota dividida do título é Gabrielle (Ludivine Sagnier, linda como sempre), apresentadora de uma TV a cabo que se apaixona por um escritor 30 anos mais velho e, ao mesmo tempo, é assediada por um jovem milionário, herdeiro de uma tradicional família da alta burguesia francesa. Novamente Chabrol usa esses tipos sociais para discutir o choque de classes, aqui representado pelo antagonismo entre a intelectualidade do escritor e o poder do dinheiro do jovem. Gabrielle é o elemento social que fica entre eles, deseja o escritor, mas encontra abrigo na falsa estabilidade do herdeiro.

Outra dicotomia é abraçada por Chabrol. O escritor é um hedonista, ama todos os prazeres da vida e sua posição de destaque em um país que tanto valoriza o intelectual lhe permite flutuar acima dos limites ético-morais. Essa mesma liberdade é usufruída pelo jovem milionário, já que o poder do dinheiro permite que suas ações não causem as conseqüências que o mundo impõe aos não-afortunados economicamente.

Essa noção de liberdade, que ambos aparentam usufruir, é ambígua, já que tanto um quanto o outro precisam sempre de subterfúgios e mecanismos de proteção para suas ações. Liberdade, em um sentido mais concreto, é o que possui Gabrielle no início do longa. Ela é representante de uma classe intermediária, não sofre cobranças e nem tem que tomar atitudes que legitimem seu papel na sociedade. Mas, ao se envolver com os dois, ela perde sua autonomia e vê o controle que tinha sobre seu destino esfacelar-se.

Para Chabrol, são as paixões humanas e as ambições atávicas dos códigos da sociedade burguesa que levam sua protagonista, e também as outras figuras dramáticas centrais, a se envolverem na seqüência de atos que conduzem ao desfecho trágico de ‘Uma Garota Dividida em Dois’. Gabrielle se apaixona pelo escritor, de forma passional e física, não apenas no plano intelectual, como é costume vermos no cinema, quando uma jovem se envolve com um homem bem mais velho.

As limitações do corpo, como a aproximação da velhice, também assumem caráter particular no longa. É mais para sentir-se ainda dono de todo seu potencial erótico que o escritor de envolve com Gabrielle. Ao tê-la sob total submissão sexual, ela passa a ser descartável para ele. Já para o jovem milionário, devido a sua pouca idade, os prazeres da carne são apenas secundários em seu fascínio pela garota. Ele ainda é preso aos conceitos românticos da juventude. Esse romantismo faz com que abandone sua personalidade cínica, abra mão de seus mecanismos de defesa e realmente se entregue a uma paixão que sabe não ter muito futuro. Tudo isso é construído por Chabrol de forma paradoxal, as arestas que o diretor abre para as motivações e as próprias ações dos personagens fazem com que seus tipos sejam sempre compostos por dilemas, não existem certezas nem convicções de caráter. É o calor do momento, as respostas imediatas aos impulsos e a satisfação individualista dos desejos que conduzem os dramas. Em Chabrol, nenhum personagem age fora das imposições do jogo social, qualquer manifestação de independência emocional é sempre subjugada pelos códigos e restrições da sociedade.

A questão da dependência do outro assume diversas formas no longa. Ninguém é capaz de existir plenamente sem alguém e a possessividade pode levar à perdição do ser humano. Essa interdependência é abordada por Chabrol de maneira complexa dentro da encenação, em um filme onde não existe nenhum personagem que não tenha importância fundamental para a trama. As fragilidades do ser humano, exposta em forma de carência e dependência do outro (dissimuladas ou não), é um dos pontos altos de ‘Uma Garota Dividida em Dois’.

A seqüência final do filme é uma das mais felizes conclusões do cinema recente. Nela Chabrol destila todo seu cinismo e seu poder crítico ao criar uma alegoria ao mesmo tempo complexa e objetiva, em que mostra que o poder das imagens diz muito mais do que qualquer discurso fabricado.

Mais uma vez, Claude Chabrol demonstra todo o apuro que caracteriza o aspecto estético de seus longas. Produz planos depurados e coesos, em que enquadramentos discretos e sofisticados, movimentos elegantes e funcionais da câmera registram a ação com distanciamento crítico e, ao mesmo tempo, ressaltam a densidade da encenação. Não existem imagens banais em seu cinema, todo o aspecto formal de seus filmes trabalha para a unidade da obra.

Para concluir, é impossível deixar de destacar a atuação de Benoît Magimel como o jovem milionário. Em meio a um excelente elenco, o jovem ator cria um personagem que expõe ao longo do filme suas diversas camadas. Ele vai do cinismo ao desespero, da arrogância à carência com notável domínio de interpretação. Pena que o ator tenha passado a se dedicar a filmes irrelevantes.

‘Noites Brancas no Pier’, de Paul Vecchiali

Por Fernando Oriente

Noites Brancas no PierA estreia de um filme de Paul Vecchiali no circuito brasileiro (mesmo em poucas salas) é motivo de celebração para a cinefilia, naquilo que cinefilia pode carregar de mais sincero dentro do que liga o espectador e seu amor pelo que o cinema pode oferecer de melhor. Autor de filmes belíssimos como ‘Femmes Femmes’ (1974), ‘Corps à Coeur’ (1979), ‘Rosa la Rose, Fille Public’ (1986) e ‘Encore’ (1988), Vecchiali é dos grandes diretores da história do cinema, mesmo com uma filmografia pequena, com dificuldades de conseguir orçamento para seus projetos e com uma projeção internacional muito menor do que seu talento merecia. Paul Vecchiali começou sua carreira na França no inicio dos anos 60, em meio à efervescência da Nouvelle Vague realizando curtas metragens e documentários. O cineasta só consolidou seu estilo nos anos 70, uma época em que o cinema francês vivia um grande momento, com cineastas como Jacques Rivette, Maurice Pialat e Jean Eustache trabalhando a abordagem ao real de maneira visceral em seus longas, Godard engajado em filmes radicais dentro de sua fase política mais intensa, Rohmer concluía seus Contos Morais e jovens autores como Philippe Garrel consolidando sua carreira com filmes belíssimos e altamente experimentais.

O cinema de Vecchiali carrega a influência do momento de sua formação como cineasta. O diretor constrói suas sequências de maneira intensa, com uma encenação pulsante e ágil construída de dentro das situações dramáticas, com ácidos comentários sobre o desencanto do mundo pós Maio de 68, constantes reflexões existencialistas, auto-ironia e um profundo sentido de melancolia e fracasso que dominam personagens que vivem à margem de uma sociedade cujas regras eles (bem como o diretor) desprezam.

Como era de se esperar, conhecendo o cinema de Paul Vecchiali, seu novo filme ‘Noites Brancas no Pier’ se confirma como mais um ótimo trabalho na carreira do diretor. Feito com orçamento baixíssimo, essa adaptação da novela curta ‘Noites Brancas’ de Dostoievski usa estruturas básicas de mise-en-scène, uma montagem enxuta feita a partir de cortes precisos e elipses curtas e um impressionante e rigoroso trabalho de composição do quadro, em que a variação do foco, as modulações da luz e o posicionamento dos atores dentro do plano potencializam ao extremo a força e os sentidos diretos e também paradoxais da palavra. Pois ‘Noites Brancas no Pier’ é um filme em que a palavra falada, o texto dito e encenado estão no centro da diegese. O filme mostra como as imagens, quando construídas em harmonia total com a palavra, podem fazer o texto escrito ser altamente cinematográfico.

Esse texto, baseado no livro de Dostoievski, incrementado e tornado contemporâneo pelo roteiro escrito pelo próprio Vecchiali, ganha força por meio dos gestos dos atores, pelas mudanças nas expressões de seus rostos, pela contenção de suas reações, pelos momentos de fuga como na sequência da dança, pela entonação com que dizem cada frase e na maneira como Vecchiali os dispõe dentro do quadro, trabalhando sempre a relação física dos corpos dentro de cena em função das modulações dramáticas propostas pelo texto. É notável como Vecchiali destaca a entrada e a saída dos personagens do quadro ou mesmo utiliza raros, mas marcantes movimentos de câmera sejam sutis aproximações frontais ou suaves travellings de ré.

‘Noites Brancas no Pier’ é composto por várias cenas noturnas (e algumas sequências distintas que interligam e comentam as cenas à noite), em que um casal se conhece, tornam-se amigos e contam fragmentos de suas vidas um para o outro, noite após noite. Ele é um solitário que se encontra em fase de recolhimento, ela é uma jovem que aguarda o retorno do grande amor de sua vida. Na evolução do relacionamento entre os dois, em meio às vivências compartilhadas, ele se apaixona por ela e ela passa ver nele uma salvação para caso seu amado não regresse. O filme vive da relação entre esses encontros, entre um presente diegético e a relação dele com o que cada um dos protagonistas carrega como bagagem de vida, como repertório existencial. O jogo entre o que está aparente dentro da cena e tudo aquilo que ocupa um imenso fora de campo dão a complexidade dialética para a dramaturgia de ‘Noites Brancas no Pier’.

Tudo isso é encenado de maneira epidérmica (com um lirismo onipresente, mas contido) por Vecchiali, com os personagens sempre em primeiro plano, dividindo a tela, ou com apenas um dos dois no quadro, enquanto o outro escuta próximo, mas fora de campo. O diretor trabalha esses primeiros planos pra dar ênfase ao texto falado, por vezes desfoca o ouvinte para deixar a nitidez naquele que fala e em outros momentos deixa quem está proferindo o discurso sob a luz enquanto aquele que ouve fica um passo a trás ou de lado, na penumbra. Os diálogos são ditos em ritmo lento, ressaltando a sonoridade e as significações das palavras. Principalmente o personagem masculino diz seus textos de uma maneira antinaturalista (muito próxima ao estilo de Straub e Huillet) ao mesmo tempo em que ele conter seus sentimentos por meio de gestos recolhidos, expressões ou olhares reprimidos, mas que nunca são capazes de camuflar por completo a intensidade do que ele sente. Os planos de fundo estão sempre fora de foco, aparecem como blocos escuros, luzes em flou, ou meras massas de cores opacas em meio à escuridão.

Trata-se de uma história de encontros e desencontros, recheada por vivências e experiências que os personagens carregam. São tipos frágeis, que vivem na incerteza do presente e nas dúvidas do que está por vir. Pessoas solitárias que projetam em seus sonhos uma variedade de esperanças tímidas, de possibilidades precárias que surgem nos instantes fugazes de um presente instável e imprevisível. O que Vecchiali faz, com sua encenação direta e a força que coloca na palavra é oferecer dois seres humanos que representam toda uma humanidade que sonha, sofre, teme, mas sempre espera por algo que os tire da banalidade. Um verdadeiro banho de humanidade.

‘Um Verão Escaldante’ (Un Été Brûlant), de Philippe Garrel (2011)

Por Fernando Oriente

Um Verão EscaldantePhilippe Garrel traz em seu cinema toda uma bagagem de vida. Carrega seus filmes com a evolução (amarga) de sua percepção de mundo, com as inquietações de um artista que viveu intensamente as esperanças e, hoje, pesa a frustração e o sentimento de fracasso dos ideais que foram a força motora de seu cinema quando começou a carreira nos anos 60. Garrel é o cineasta que melhor filma a desilusão, a melancolia e a impossibilidade de ser do mundo contemporâneo. ‘Um Verão Escaldante’ (Un Été Brûlant), lançado em 2011, é um belo e doloroso retrato da dor de viver e do abandono existencial. A atualidade do filme impressiona. Aos 63 anos de idade, Philippe Garrel mostra uma percepção aguçada do que acontece nas entranhas da existência humana contemporânea. Como pano de fundo dos dramas que encena em “Um Verão Escaldante”, o cineasta tece comentários ácidos sobre a situação política da Europa e seu fracasso social.

Após usar de forma intensa as possibilidades do preto e branco em seus trabalhos anteriores (‘Amantes Constantes’ e ‘A Fronteira da Alvorada’) e em seu último filme, ‘O Ciúme’ (2013), Garrel volta à cor em ‘Um Verão Escaldante’. E volta de maneira arrebatadora. As cores são material sensível na própria encenação do longa. Essas cores pontuam, conduzem e indicam as situações encenadas. Tudo ampliado por um impressionante uso da luz. A forma no cinema de Garrel é fundamental para solidez de seus filmes e para complexidade e as possibilidades abertas dos dramas que encena. Em ‘Um Verão Escaldante’, o diretor reforça a beleza dos enquadramentos dentro da decupagem. Garrel posiciona a câmera de maneira cirúrgica, compõe o quadro com rigor total, se aproximando e se distanciando dos personagens e objetos na medida exata para enaltecer as ações e sensações. O uso da profundidade de campo é notável e a variação entre câmera fixa e planos trêmulos rege a oscilação emocional dos personagens.

Esse minucioso trabalho de construção formal é suporte estético para Garrel encenar com densidade extrema as dores e emoções de seus personagens. Os dois casais centrais de ‘Um Verão Escaldante’ vivem situações opostas, ao mesmo tempo em que a história de um indica os caminhos possíveis (ou não) do outro. Enquanto Fréderick e Angele vivem o desgaste de um amor intenso impossibilitado de se afirmar/confirmar, Paul e Elisabeth estão no início de uma relação terna em que o amor é quase uma salvação de suas almas inocentes e ressentidas em igual proporção. O que os quatro personagens têm em comum é a impossibilidade de existirem sem as dores, medos e inseguranças ante os sentimentos que transcendem suas razões individuais e suas etéreas (quase)certezas. São esses sentimentos, as emoções brutas dos personagens (que flutuam entre explosões e recalcamentos) que constituem a matéria central do filme. As emoções, sentimentos e sensações são a matéria da própria mise-en-scéne de Garrel.

A encenação de dramas tão intensos, que podem ser vistos como significantes de um pathos presente na desolação e no deslocamento do ser humano atual, é conduzida na diegese do filme por meio da intensa exploração visual dos gestos e, principalmente, das expressões nos rostos dos personagens. Garrel extrai o máximo de significados e põe seu próprio discurso fílimico nesses gestos e rostos. Essa construção dramática cria um tempo multifacetado no filme. As cenas se passam em um tempo presente que carrega vários tempos passados. Os personagens agem baseados na presença opressora do que já viveram e sempre receosos do que estão por viver. Essa expectativa pelo que virá a seguir é marcada pela desilusão, por mais que continuem em frente, os personagens sabem que não podem escapar do vazio e, com isso, a presença da morte se torna cada vez mais sentida no filme. Morte que pode ser tangenciada, como no caso de Paul e Elisabeth, mas que também pode ser vivida em forma de destino imediato e irremediável para Fréderick e Angele. É com essa estrutura montada e sustentada na forma e nas texturas dos dramas, que Garrel faz as emoções sensórias se metamosfosearem em presença física na tela.

Por meio dessa construção dramática Garrel se debruça não só sobre os conflitos internos do homem, mas também sobre a situação política da Europa. As ruínas emocionais dos tipos em cena ecoam as ruínas político-sociais de todo o continente (como as ruínas da Roma onde o longa se passa e os escombros do cenário no filme que Angele atua). A Europa da esperança e agitação libertária dos anos 60 deu lugar a um local de repressão e conservadorismo, com a falência de ideais e um sentimento revolucionário que só encontra porta-voz no idealista Paul. Hoje Garrel é um representante amargurado da Europa que não aconteceu. Como em quase todos os seus filmes, o diretor registra um retrato amargo do fracasso de sua geração.

Os tipos de ‘Um Verão Escaldante’ carregam no semblante toda a derrota existencial de que o próprio Garrel é um mensageiro. Louis Garrel, Monica Bellucci, Céline Sallette e Jérôme Robart trazem em seus rostos a mesma melancolia e angústia que estavam presentes nos filmes anteriores do cineasta. Essa tristeza profunda está nas faces de Jean-Piérre Léaud em “O Nascimento do Amor” (1993), de Johanna ter Steege em “Não Escuto a Guitarra” (1989), de Maurice Garrel em “Liberté, La Nuit” (1983), de Jacques Bonnaffé em “Elle a Passé Tant D’heures Sous les Sunlights” (1985), de Nico em “A Cicatriz Anterior” (1972) e em praticamente todo o cinema desse autor singular.

‘Um Verão Escaldante’ é o filme mais linear e direto de Garrel nas últimas décadas, nele o diretor abandona um pouco a densidade e as texturas de planos isolados que caracterizam seu cinema para dar maior ênfase ao desenrolar da dramaticidade na continuidade narrativa do longa. Aqui os planos funcionam mais em detrimento um do outro do que na maioria de seus filmes, em que takes isolados de alguns segundos carregam um universo de significados e possibilidades. Isso não é um problema para o filme, embora o ótimo ‘Um Verão Escaldante’ não alcance a excelência de ‘Amantes Constantes’, ‘A Fronteira da Alvorada’ e o ‘O Ciúme’, só para ficar nos últimos trabalhos de Garrel.

‘Acima das Nuvens’, de Olivier Assayas

Por Fernando Oriente

Acima das NuvensEm seu novo longa, Assayas recupera um pouco a força que tinha perdido em ‘Depois de Maio’, seu irregular trabalho anterior. Em ‘Acima das Nuvens’ temos novamente a encenação visceral do diretor francês, sempre com uma câmera inquieta e uma decupagem ágil. A intensidade narrativa e a carga dramática do filme se relacionam o tempo todo com uma sobreposição entre o tempo presente dos personagens e suas ações e a relação que eles mantêm com o passado e o que trazem desse passado, num jogo entre tempos distintos em que o processo de envelhecer (amadurecer) e encarar as marcas do que foi vivido (e deixado de viver) implica em escolhas e enfrentamentos num presente incerto cujas certezas são postas em dúvida por sensações de incompletude e uma falsa estabilidade emocional.

Esses conflitos são colocados por Assayas dentro da relação entre as cenas que vemos na tela e o peso que o extracampo traz (sejam as memórias, as relações mal resolvidas, as imaturidades e o medo de envelhecer da personagem de Juliette Binoche; bem como o que o diretor apenas sugere, deixando a complexidades dos tipos ainda mais abertas). No filme, a atriz interpretada por Binoche aceita participar de uma peça que fez quando tinha 18 anos. Só que dessa vez, ela interpretará a personagem mais velha do texto (uma mulher de 40 e poucos anos que se destrói por amor e obsessão por uma jovem que a seduz). Aqui Assayas faz da relação da protagonista com as duas mulheres da peça uma projeção sobre suas texturas emocionais: ela é as duas ao mesmo tempo, uma se projeta na outra, e a vivência da personagem de Binoche faz com que sua relação com as duas protagonistas ganhe novos contornos constantemente e se projetem sobre o momento em que vive.

Não esperem de ‘Acima das Nuvens’ um filme da grandeza de outros trabalhos de Assayas, como os ótimos ‘Água Fria’ (1994), ‘Irma Vep’ (1996) e ‘Clean’ (2004), entre outros. Desde meados da primeira década dos anos 2000, o diretor parece ter optado por filmes mais contidos, em que arrisca menos e garante de forma segura (e cômoda) uma qualidade razoável para manter seu cinema acima da média do que se produz hoje. Seus longas continuam bons, muitas vezes irregulares, mas sempre interessantes de se assistir. A sensação que Assayas transmite é de um realizador consciente de seu talento, que aborda temas complexos que consegue desenvolver bem, mas que acaba por fazer concessões em relação a uma dramaturgia mais tímida e convencional (que as vezes flerta de maneira perigosa com o cinema publicitário – caso de ‘Depois de Maio’), em que a força da mise-en-scéne de seus melhores trabalhos dá lugar a uma acomodação apaziguadora que evita os arroubos de encenação pasteuriza as texturas dos dramas para acomodar tudo de maneira mais fácil para ser assimilado por um público mais conservador e genérico.

De volta a ‘Acima das Nuvens’ é interessante notar que Assayas, ao fazer Binoche ensaiar a peça com sua jovem assistente vivida por Kristen Stewart (muito bem no papel), faz a relação entre as personagens da ficção e da vida real se sobreporem e muitos conflitos são sugeridos a partir daí, mas Assayas também os mantém no fora de quadro, seja por elipses ou por cortes bruscos.

Ao lerem o texto, Binoche e Stewart projetam as relações ficcionais do texto no cotidiano em que vivem (na vida real), e as relações de poder que estão na peça são subvertidas em um jogo em que dominadora e dominada invertem papéis. Mas o grande mérito de Assayas é compor toda essa dramaturgia densa de uma maneira sugestiva, evitando excessos emocionais e indicando caminhos muito mais do que os explicitando. A presença sempre ótima de Binoche em cena aumenta a força do filme. Não é o melhor Assayas, mas ‘Acima das Nuvens’ está dentro da lista de bons filmes assinados pelo diretor.

‘O Ciúme’, de Philippe Garrel

Por Fernando Oriente

O CiúmeExiste no cinema de Garrel um elemento que é sensível ao longo de todos os planos, presente em cada sequência e matéria fundadora de seus temas, histórias e discursos: uma melancolia profunda e uma desilusão permanente em relação aos fracassos de sua geração em alcançar as mudanças sociais, políticas e existências que foram sonhadas e transformadas em lutas por eles nos anos 60. Esse sentimento amargo, Garrel transmite por meio da incapacidade de seus personagens se relacionarem, na fragilidade dos afetos, na incompletude e instabilidade dos relacionamentos que seus tipos vivem, na inevitabilidade dos afastamentos. Seus filmes são sobre rupturas, amores fugazes que se diluem e terminam em meio a uma melancolia que impede as pessoas de se auto-determinarem. Essa ferida que a geração de Garrel carrega é transmitida a todas as gerações seguintes.

Nos filmes de Garrel, os tipos são sempre condenados a uma solidão que não tem remédio. O outro nunca é suficiente para completar esse vazio que corrói corações e mentes de pessoas presas em um mundo já há muito desencantado, a existência é feita de desencontros, o eu de cada um nunca poderá ser completado. A inconstância da vida, a presença constante da possibilidade da morte (física e simbólica) tornam seus tipos ainda mais frágeis. Mas sobreviver pode ser ainda mais amargurante.

Garrel constrói tudo isso com uma elegância poética assombrosa. Seus planos isolados contêm um universo. Olhares, silêncios, diálogos fragmentados, tudo mostra a fragilidade dos tipos no momento da ação (ou inação) registrada, mas remetem a um enorme extra-campo onde as angústias do homem incompleto e fracassado existencialmente são o condicionante da existência. A câmera do diretor está sempre na posição precisa para o peso sensorial que ele extrai de cada tomada. Os travellings laterais, comuns em seus filmes, pontuam a movimentação constante de personagens que caminham sem um destino certo, que fazem do movimento (da câmera, do cinema) mais uma expressão desse deslocamento existencial sem sentido.

Esse universo de texturas múltiplas está presente de maneira preciosa em ‘O Ciúme’, um longa em que Garrel eleva seu discurso e seu forma fílmica a um potencial de sensibilidade estética assombroso. A decupagem de Garrel em ‘O Ciúme’ injeta uma força desconcertante nas cenas, reduz à essência os fragmentos de narrativa (as sequências isoladas unidas por elipses bem demarcadas) que compões a força do filme. Sequências em que três ou quatro planos trazem inúmeros significados, expõem as entranhas do que duas pessoas viveram e que termina diante da amarga leveza de frases interrompidas, lágrimas e a certeza de que rupturas são inevitáveis. Closes que traduzem todo o estado de espírito do personagem; suas almas são trazidas à tona nos ângulos de câmera fechados de Garrel. O tempo, o peso do tempo vivido, da incoerência do presente e da dúvida em relação ao futuro são elementos que contaminam cada imagem do longa.

A dor dos tipos é exposta em seu íntimo por meio de ações banais (o apagar de um abajur, os punhos cerrados do personagem de Louis Garrel sentado, uma porta que se fecha, mas que insiste em ficar entreaberta), olhares perdidos, silêncios pesados, diálogos interrompidos. Em ‘O Ciúme’ temos a força independente de cada sequência isolada se relacionando o tempo todo com aquilo que está fora do quadro: a vida, o não pertencimento, as angústias, a dor de existir. A paixão tão fugaz quanto o próprio existir.

Não são apenas os relacionamentos entre homens e mulheres (que se conhecem, se apaixonam – ou acreditam que se apaixonam -, se relacionam e se separam) que pontuam o filme. As dificuldades no convívio e nos diálogos com os filhos, a impossibilidade de encontrar no trabalho um espaço de segurança, as precariedades de se montar uma casa (algo minimamente próximo a um lar), tudo pesa para que os personagens de Garrel sejam apenas fantasmas em meio a um mundo em preto e branco.

Philippe Garrel se confessa herdeiro dos cineastas da Nouvelle Vague, o que se percebe em seus filmes, mas ele usa essas referências para construir seus longas com elementos extremamente particulares. Seu cinema é ímpar. Uma imagem ou um plano de Garrel são sempre inconfundíveis.

Garrel coloca em primeiro plano toda a poética do desencanto de viver, mas nunca cai em sentimentalismos. Suas cenas são de uma elegância espantosa, de uma contenção que condensa tudo na beleza amarga do que é visto (e principalmente sugerido) na tela e como isso se relaciona a um mundo imenso em que os personagens e as ações estão inseridos apenas como fragmentos. As angústias são retratadas por meio das sugestões, o interior de seus tipos é explorado e dissecado nas texturas poéticas de imagens ricas em significado, em construções de cena que buscam esses significados por meio da força dos significantes (os planos em si). Garrel é um cineasta da potência das imagens, das multiplicidades de leitura dos planos, de frases isoladas, daquilo que não é dito, da força significativa dos rostos, do que é sentido no olhar, nas expressões de seus personagens.