‘Um Verão Escaldante’ (Un Été Brûlant), de Philippe Garrel (2011)

Por Fernando Oriente

Um Verão EscaldantePhilippe Garrel traz em seu cinema toda uma bagagem de vida. Carrega seus filmes com a evolução (amarga) de sua percepção de mundo, com as inquietações de um artista que viveu intensamente as esperanças e, hoje, pesa a frustração e o sentimento de fracasso dos ideais que foram a força motora de seu cinema quando começou a carreira nos anos 60. Garrel é o cineasta que melhor filma a desilusão, a melancolia e a impossibilidade de ser do mundo contemporâneo. ‘Um Verão Escaldante’ (Un Été Brûlant), lançado em 2011, é um belo e doloroso retrato da dor de viver e do abandono existencial. A atualidade do filme impressiona. Aos 63 anos de idade, Philippe Garrel mostra uma percepção aguçada do que acontece nas entranhas da existência humana contemporânea. Como pano de fundo dos dramas que encena em “Um Verão Escaldante”, o cineasta tece comentários ácidos sobre a situação política da Europa e seu fracasso social.

Após usar de forma intensa as possibilidades do preto e branco em seus trabalhos anteriores (‘Amantes Constantes’ e ‘A Fronteira da Alvorada’) e em seu último filme, ‘O Ciúme’ (2013), Garrel volta à cor em ‘Um Verão Escaldante’. E volta de maneira arrebatadora. As cores são material sensível na própria encenação do longa. Essas cores pontuam, conduzem e indicam as situações encenadas. Tudo ampliado por um impressionante uso da luz. A forma no cinema de Garrel é fundamental para solidez de seus filmes e para complexidade e as possibilidades abertas dos dramas que encena. Em ‘Um Verão Escaldante’, o diretor reforça a beleza dos enquadramentos dentro da decupagem. Garrel posiciona a câmera de maneira cirúrgica, compõe o quadro com rigor total, se aproximando e se distanciando dos personagens e objetos na medida exata para enaltecer as ações e sensações. O uso da profundidade de campo é notável e a variação entre câmera fixa e planos trêmulos rege a oscilação emocional dos personagens.

Esse minucioso trabalho de construção formal é suporte estético para Garrel encenar com densidade extrema as dores e emoções de seus personagens. Os dois casais centrais de ‘Um Verão Escaldante’ vivem situações opostas, ao mesmo tempo em que a história de um indica os caminhos possíveis (ou não) do outro. Enquanto Fréderick e Angele vivem o desgaste de um amor intenso impossibilitado de se afirmar/confirmar, Paul e Elisabeth estão no início de uma relação terna em que o amor é quase uma salvação de suas almas inocentes e ressentidas em igual proporção. O que os quatro personagens têm em comum é a impossibilidade de existirem sem as dores, medos e inseguranças ante os sentimentos que transcendem suas razões individuais e suas etéreas (quase)certezas. São esses sentimentos, as emoções brutas dos personagens (que flutuam entre explosões e recalcamentos) que constituem a matéria central do filme. As emoções, sentimentos e sensações são a matéria da própria mise-en-scéne de Garrel.

A encenação de dramas tão intensos, que podem ser vistos como significantes de um pathos presente na desolação e no deslocamento do ser humano atual, é conduzida na diegese do filme por meio da intensa exploração visual dos gestos e, principalmente, das expressões nos rostos dos personagens. Garrel extrai o máximo de significados e põe seu próprio discurso fílimico nesses gestos e rostos. Essa construção dramática cria um tempo multifacetado no filme. As cenas se passam em um tempo presente que carrega vários tempos passados. Os personagens agem baseados na presença opressora do que já viveram e sempre receosos do que estão por viver. Essa expectativa pelo que virá a seguir é marcada pela desilusão, por mais que continuem em frente, os personagens sabem que não podem escapar do vazio e, com isso, a presença da morte se torna cada vez mais sentida no filme. Morte que pode ser tangenciada, como no caso de Paul e Elisabeth, mas que também pode ser vivida em forma de destino imediato e irremediável para Fréderick e Angele. É com essa estrutura montada e sustentada na forma e nas texturas dos dramas, que Garrel faz as emoções sensórias se metamosfosearem em presença física na tela.

Por meio dessa construção dramática Garrel se debruça não só sobre os conflitos internos do homem, mas também sobre a situação política da Europa. As ruínas emocionais dos tipos em cena ecoam as ruínas político-sociais de todo o continente (como as ruínas da Roma onde o longa se passa e os escombros do cenário no filme que Angele atua). A Europa da esperança e agitação libertária dos anos 60 deu lugar a um local de repressão e conservadorismo, com a falência de ideais e um sentimento revolucionário que só encontra porta-voz no idealista Paul. Hoje Garrel é um representante amargurado da Europa que não aconteceu. Como em quase todos os seus filmes, o diretor registra um retrato amargo do fracasso de sua geração.

Os tipos de ‘Um Verão Escaldante’ carregam no semblante toda a derrota existencial de que o próprio Garrel é um mensageiro. Louis Garrel, Monica Bellucci, Céline Sallette e Jérôme Robart trazem em seus rostos a mesma melancolia e angústia que estavam presentes nos filmes anteriores do cineasta. Essa tristeza profunda está nas faces de Jean-Piérre Léaud em “O Nascimento do Amor” (1993), de Johanna ter Steege em “Não Escuto a Guitarra” (1989), de Maurice Garrel em “Liberté, La Nuit” (1983), de Jacques Bonnaffé em “Elle a Passé Tant D’heures Sous les Sunlights” (1985), de Nico em “A Cicatriz Anterior” (1972) e em praticamente todo o cinema desse autor singular.

‘Um Verão Escaldante’ é o filme mais linear e direto de Garrel nas últimas décadas, nele o diretor abandona um pouco a densidade e as texturas de planos isolados que caracterizam seu cinema para dar maior ênfase ao desenrolar da dramaticidade na continuidade narrativa do longa. Aqui os planos funcionam mais em detrimento um do outro do que na maioria de seus filmes, em que takes isolados de alguns segundos carregam um universo de significados e possibilidades. Isso não é um problema para o filme, embora o ótimo ‘Um Verão Escaldante’ não alcance a excelência de ‘Amantes Constantes’, ‘A Fronteira da Alvorada’ e o ‘O Ciúme’, só para ficar nos últimos trabalhos de Garrel.

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