‘Uma Garota Dividida Em Dois’, de Claude Chabrol (2007)

Por Fernando Oriente

Uma Garota Dividida Em DoisEm seu cinema, Claude Chabrol sempre provoca o espectador. Faz propositalmente com que o público espere algo mais de seus filmes (uma explicação, uma conclusão extra, um plano a mais) e, de forma intencional, não inclui nada a mais que dê essa satisfação imediata. Mestre das manipulações sofisticadas, o cineasta usa sutilezas e muito cinismo para evitar qualquer situação fácil; ele expõe os elementos da trama, levanta questões e deixa as conclusões a cargo da platéia. Seu discurso é composto na dialética entre o que se desenvolve na tela e naquilo que acontece fora do quadro, antes ou depois dos planos; na relação do que encena com um entorno que ele faz questão de insinuar e desconstruir, mas sem nunca penetrar em detalhes. O que Chabrol faz é propor um jogo ao seu espectador cujas regras são o cinismo, a ácida crítica ao universo que ele retrata, os paradoxos das situações e as múltiplas possibilidades de leitura que ele impõe aos seus personagens e aos dramas.

Chabrol é um estudioso das relações humanas e um mordaz crítico do mundo burguês, que trabalha sempre nos inter-textos, nos paroxismos e nas sugestões implícitas propostas pelos dramas, e compõe tudo isso com um domínio completo das modulações da encenação e na força da decupagem. ‘Uma Garota Dividida em Dois’ é mais um belíssimo exemplar de como a câmera do cineasta focaliza essas relações com intensidade cirúrgica e expõe as tensões e o patético das paixões humanas sem nunca cair em moralismos ou clichês.

A garota dividida do título é Gabrielle (Ludivine Sagnier, linda como sempre), apresentadora de uma TV a cabo que se apaixona por um escritor 30 anos mais velho e, ao mesmo tempo, é assediada por um jovem milionário, herdeiro de uma tradicional família da alta burguesia francesa. Novamente Chabrol usa esses tipos sociais para discutir o choque de classes, aqui representado pelo antagonismo entre a intelectualidade do escritor e o poder do dinheiro do jovem. Gabrielle é o elemento social que fica entre eles, deseja o escritor, mas encontra abrigo na falsa estabilidade do herdeiro.

Outra dicotomia é abraçada por Chabrol. O escritor é um hedonista, ama todos os prazeres da vida e sua posição de destaque em um país que tanto valoriza o intelectual lhe permite flutuar acima dos limites ético-morais. Essa mesma liberdade é usufruída pelo jovem milionário, já que o poder do dinheiro permite que suas ações não causem as conseqüências que o mundo impõe aos não-afortunados economicamente.

Essa noção de liberdade, que ambos aparentam usufruir, é ambígua, já que tanto um quanto o outro precisam sempre de subterfúgios e mecanismos de proteção para suas ações. Liberdade, em um sentido mais concreto, é o que possui Gabrielle no início do longa. Ela é representante de uma classe intermediária, não sofre cobranças e nem tem que tomar atitudes que legitimem seu papel na sociedade. Mas, ao se envolver com os dois, ela perde sua autonomia e vê o controle que tinha sobre seu destino esfacelar-se.

Para Chabrol, são as paixões humanas e as ambições atávicas dos códigos da sociedade burguesa que levam sua protagonista, e também as outras figuras dramáticas centrais, a se envolverem na seqüência de atos que conduzem ao desfecho trágico de ‘Uma Garota Dividida em Dois’. Gabrielle se apaixona pelo escritor, de forma passional e física, não apenas no plano intelectual, como é costume vermos no cinema, quando uma jovem se envolve com um homem bem mais velho.

As limitações do corpo, como a aproximação da velhice, também assumem caráter particular no longa. É mais para sentir-se ainda dono de todo seu potencial erótico que o escritor de envolve com Gabrielle. Ao tê-la sob total submissão sexual, ela passa a ser descartável para ele. Já para o jovem milionário, devido a sua pouca idade, os prazeres da carne são apenas secundários em seu fascínio pela garota. Ele ainda é preso aos conceitos românticos da juventude. Esse romantismo faz com que abandone sua personalidade cínica, abra mão de seus mecanismos de defesa e realmente se entregue a uma paixão que sabe não ter muito futuro. Tudo isso é construído por Chabrol de forma paradoxal, as arestas que o diretor abre para as motivações e as próprias ações dos personagens fazem com que seus tipos sejam sempre compostos por dilemas, não existem certezas nem convicções de caráter. É o calor do momento, as respostas imediatas aos impulsos e a satisfação individualista dos desejos que conduzem os dramas. Em Chabrol, nenhum personagem age fora das imposições do jogo social, qualquer manifestação de independência emocional é sempre subjugada pelos códigos e restrições da sociedade.

A questão da dependência do outro assume diversas formas no longa. Ninguém é capaz de existir plenamente sem alguém e a possessividade pode levar à perdição do ser humano. Essa interdependência é abordada por Chabrol de maneira complexa dentro da encenação, em um filme onde não existe nenhum personagem que não tenha importância fundamental para a trama. As fragilidades do ser humano, exposta em forma de carência e dependência do outro (dissimuladas ou não), é um dos pontos altos de ‘Uma Garota Dividida em Dois’.

A seqüência final do filme é uma das mais felizes conclusões do cinema recente. Nela Chabrol destila todo seu cinismo e seu poder crítico ao criar uma alegoria ao mesmo tempo complexa e objetiva, em que mostra que o poder das imagens diz muito mais do que qualquer discurso fabricado.

Mais uma vez, Claude Chabrol demonstra todo o apuro que caracteriza o aspecto estético de seus longas. Produz planos depurados e coesos, em que enquadramentos discretos e sofisticados, movimentos elegantes e funcionais da câmera registram a ação com distanciamento crítico e, ao mesmo tempo, ressaltam a densidade da encenação. Não existem imagens banais em seu cinema, todo o aspecto formal de seus filmes trabalha para a unidade da obra.

Para concluir, é impossível deixar de destacar a atuação de Benoît Magimel como o jovem milionário. Em meio a um excelente elenco, o jovem ator cria um personagem que expõe ao longo do filme suas diversas camadas. Ele vai do cinismo ao desespero, da arrogância à carência com notável domínio de interpretação. Pena que o ator tenha passado a se dedicar a filmes irrelevantes.

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