D.W. Griffith: ‘O Nascimento de Uma Nação’ (1915) e ‘Intolerância’ (1916)

Por Fernando Oriente

'O Nascimento de Uma Nação'

‘O Nascimento de Uma Nação’

Impressiona que em apenas 20 anos desde seu surgimento oficial, o cinema tenha sido capaz de produzir duas obras tão intensas, com a linguagem cinematográfica já tão estabelecida e com elementos formais e narrativos em sintonia com aquilo que potencializa a força única que a encenação de um filme pode ter. Estamos falando aqui de ‘O Nascimento de uma Nação’, de 1915 e ‘Intolerância’, de 1916, ambos dirigidos por D.W. Griffith. Muito mais do que o mito em torno de sua figura, do homem que desenvolveu os poderes da montagem paralela, do pai do cinema narrativo ou mesmo do fundador do cinema clássico, Griffith era um exímio diretor de cinema e um encenador primoroso, e muitos de seus filmes provam isso. Sua obra tem uma força, uma beleza e um impacto no espectador que não diminuíram ao longo do tempo; seu trabalho não serve apenas para explicar a gênese da arte cinematográfica, sua verdadeira força está no quanto seus filmes eram bons. Um cinema narrativo direto, que colocava as ações em primeiro lugar, que conduzia as modulações dramáticas com maestria, que criava suspenses, cenas de ação impactantes, dramas comoventes, instantes cômicos e contava histórias de maneira objetiva e dentro de uma evolução narrativa concebida em ritmo visceral. Griffith não queria, na grande maioria de seus filmes, propor discursos e nem subtextos, queria apenas narrar histórias, criar imagens espetaculares e provocar emoção no espectador.

O diretor começou a filmar em 1908 e fez mais de 500 filmes até 1930, entre curtas, médias e longas. Dirigiu obras belíssimas como ‘Judite de Betulia’ (1914), ‘O Lírio Partido’ (1919) e ‘Órfãs da Tempestade’ (1921), entre muitos outros que nitidamente influenciaram grandes cineastas ao longo da história, de John Ford, Cecil B. DeMille, King Vidor e Vincente Minnelli a Sergei Eisenstein, Roberto Rossellini e Kenji Mizoguchi. Mas esse texto vai se debruçar sobre seus dois principais e mais famosos épicos: ‘O Nascimento de Uma Nação’ e ‘Intolerância’, feitos um na sequência do outro, no prazo de um ano. Dois longas de extensa duração, orçamentos altíssimos para a época e que contaram com muito investimento na construção de cenários majestosos, figurinos sofisticados, muitos extras e um primoroso trabalho de direção de arte.

D.W. Griffith

D.W. Griffith

Nos dois filmes fica claro o domínio técnico e a visão total de cinema de Griffith. A impressionante competência de compor detalhadamente os quadros em sua totalidade, a precisa escolha dos enquadramentos (com destaque para a notável habilidade em usar a força dramática, a beleza e as potências dos close-ups), a eficácia dos efeitos de montagem, a funcionalidade dos cortes, a amarração dialética entre os planos, a capacidade de extrair o máximo de significação das expressões dos rostos dos atores, o uso pontual e destacado dos movimentos de câmera e o apuro e a intensidade que Griffith impunha à movimentação, tanto dentro de um mesmo plano, quanto na relação direta entre a sucessão inquieta de diferentes takes.

O diretor alternava planos abertos recheados de ação intensa e movimento com sequências filmadas em primeiro plano, closes e ainda se utilizava da relativa capacidade da profundidade de campo que as técnicas da época permitiam para ampliar os espaços de ação dentro do quadro. Griffith foi um dos pioneiros a explorar as modulações dramáticas que os efeitos e variações da luz produziam dentro das cenas, para isso trabalhava tanto com a luz natural e os refletores, além de ser um dos primeiros a perceber como o uso de rebatedores poderia influenciar a função da luz na fotografia de um filme.

Todos esses recursos serviam para Griffith obter seu principal objetivo: construir narrativas fortes que evoluíssem de maneira intensa para explorar o máximo a força das histórias que queria contar por meio da linguagem cinematográfica. Porque em Griffith já se torna óbvio o quanto o cinema é uma linguagem própria e a força que essa linguagem tem.

Dois épicos

'O Nascimento de Uma Nação'

‘O Nascimento de Uma Nação’

‘O Nascimento de Uma Nação’ tem três momentos histórico-narrativos centrais, que envolvem duas famílias amigas, uma do norte dos EUA a outra do sul. O primeiro é a Guerra Civil Americana iniciada em 1860, seguida pelo assassinato de Abraham Lincoln e o último é o surgimento da Ku Klux Klan. Griffith amarra os fatos históricos para propor uma narrativa total que contemple uma leitura do foi a solidificação dos EUA como uma nação. A visão que o diretor usa no filme é um retrato fiel do pensamento do cidadão branco americano da época. Nessa visão está a crítica da guerra que transforma amigos em inimigos, o apogeu e a morte traumática do mais importante político da história dos Estados Unidos e a forma como o norte-americano tradicional, caucasiano, cristão e devoto dos valores do liberalismo via em qualquer povo ou raça diferente da sua uma forma de ameaça a seu ideário de liberdade e autodeterminação. O filme é extremamente racista, mas ele apenas retrata de maneira sincera e fiel como o pensamento americano tradicional dos anos 1910 (e ainda muito nos dias de hoje) era racista. É notório que, com raras exceções, os estadunidenses não tinham o menor respeito aos negros como indivíduos iguais a eles. Um país que viveu a escravidão carregará para sempre as cicatrizes dessa abjeção.

Como Griffith trabalhava dentro de códigos clássicos da construção narrativa, que tinha no maniqueísmo e na vilanização de tipos por meio de caricaturas uma de suas regras, ele faz dos negros (principalmente do político mulato que ganha força após a vitória do norte sobre os Confederados na Guerra Civil) os vilões da história. Vendo o filme hoje, com o mínimo de bom senso, a construção racista do filme é uma agressão enojante. Mas se vermos esse processo como fruto da época, possamos entender melhor que o racismo é algo muito mais atávico e nocivo do que imaginamos e que suas raízes são muito mais profundas. É interessante notar como o preconceito com que os negros são retratados no filme é uma característica comum ao cinema americano, que nos anos seguintes fez o mesmo com comunistas, asiáticos, hispânicos e hoje em dia com árabes e muçulmanos. Tudo o que é diferente da matriz racial e moral americana provoca pavor no cidadão médio estadunidense.

Para se ver a grandeza de ‘O Nascimento de Uma Nação’ como cinema temos que fazer o sacrifício de deixarmos a ridícula construção dos negros e a patética tentativa de tornar a Ku Klux Klan em um grupo de heróis salvadores dos valores da América de lado. O filme tem um ritmo impressionante, as cenas de ação são compostas com esmero e cheias de energia interna, drama e suspense são construídos com maestria e o longa flui com um vigor ímpar. As histórias são preciosamente amarradas pela força da montagem, a relação entre os personagens cresce ao longo de todo o filme, que é recheado de sequências belíssimas. Toda a maestria de encenador de Griffith fica nítida na maneira como ‘O Nascimento de Uma Nação’ utiliza uma gama enorme de técnicas cinematográficas para se consolidar como uma das mais fortes narrativas épicas que o cinema já teve.

'Intolerância'

‘Intolerância’

‘Intolerância’ é um projeto ainda mais ambicioso e sofisticado. Nele vemos uma possível tentativa de Griffith (nunca comprovada) de se redimir um pouco do racismo de seu longa anterior. No filme temos um apuro estético ainda maior por parte de Griffith, que usa mais movimentos de câmera (como travellings e aproximações e recuos de câmera), maior uso dramático dos closes, uma movimentação interna nos quadros mais acentuada, cortes mais brutos, maior variação nas modulações e no uso da luz e um verdadeiro tour de force de montagem, em que a montagem paralela trabalha não só sequências que se relacionam umas com as outras, mas que também intercalam com muita pujança quatro diferentes momentos na história da humanidade. Se existe um filme que podemos usar como exemplo dos poderes que a montagem paralela tem para a construção dramático-narrativa ele seria ‘Intolerância’.

A grandiosidade do filme também está em intercalar, sem perder a potência narrativa, o apelo visual das sequências que se passam na antiga Babilônia (com cenários enormes e suntuosos, além de um número imenso de extras) com cenas bem mais intimistas, com poucos personagens e que se passam já no início do século 20 nos EUA. O filme não perde intensidade em nenhum momento, tanto nos dois já citados quanto nos outros que completam a teia de narrativas intercaladas: o massacre dos Huguenotes na França do século 16 e um trecho da vida de Jesus em Jerusalém até sua crucificação. Todo o filme é recheado pela força dos melodramas, por imagens belíssimas, emoção, suspense, ação contagiante e o mesmo ritmo primoroso com que Griffith fazia suas narrativas evoluírem, além de sequências espetaculares.

Em ‘Intolerância’, Griffith usa quatro narrativas distintas para destacar a maldade, a traição, a ambição e a própria intolerância que dá título ao filme como características comuns do homem ao longo da história. Respeitando os códigos narrativos da época e buscando conclusões edificantes para agradar grandes platéias, o diretor constrói diferentes relações entre personagens que procuram destacar que o amor, a coragem e a compaixão são as únicas formas do homem domar seus piores instintos e ter uma chance de redenção. Em ‘Intolerância’, a presença das metáforas é marcante, como na belíssima imagem recorrente ao longo do filme em que uma mulher embala um berço em meio a um plano aberto (alternado por alguns closes) dentro de um cenário primorosamente composto que acentua os contrastes entre luz e penumbras e enfatiza a ação simbólica dessa grande mãe da história que embala infinitamente o berço da humanidade.

‘O Nascimento de Uma Nação’ e ‘Intolerância’, dois filmes mudos, feitos nos primórdios da evolução cinematográfica, são dois dos melhores filmes clássicos que Hollywood já produziu, duas das mais bem compostas narrativas da história do cinema. Longas em que o talento de um diretor salta aos olhos pela maneira como ele trabalha a encenação, usando todos os recursos possíveis para exercer o papel de um narrador que articula, interrompe, compara e unifica ações para construir a força das histórias que cria. Tudo com uma beleza visual impressionante e um senso de ritmo e movimento preciosos. Cinema puro, que não esconde sua ingenuidade discursiva, mas que extrai o máximo de emoção que só o cinema como linguagem pode alcançar.

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