‘O Pequeno Quinquin’, de Bruno Dumont

Por Fernando Oriente

O Pequeno QuinquinExiste uma presença constante nos filmes de Bruno Dumont: o mal. Um mal metafísico, que manipula personagens e ambientes, que comanda as ações e condena todos a uma letargia estática, a uma prostração sufocante. Essa força esmagadora não tem rosto, nem origem, ele é onipresente e faz-se sentir a cada plano dos longas do diretor, ela é naturalizada dentro dos mecanismos e opções de encenação de Dumont. Manifesta-se como uma doença contagiosa, que impele personagens a ações violentas, a explosões de ódio, à apatia, a relações mecanizadas desprovidas de qualquer manifestação sensível de sentimentos e a um vazio existencial aprisionante.

O mal em Dumont é diferente daquele presente no cinema de Fritz Lang ou de Alfred Hitchcock, que era a maldade que irrompia de dentro do homem e das situações para levar diretamente a ações de violência e crueldade, um mal que era uma das partes constituintes do caráter humano e que por vezes aflorava sem controle, revelando a complexidade existencial humana. Em Bruno Dumont, o mal é presença constante e força maior que rege a natureza, sendo o homem apenas uma pequena parte dessa natureza, totalmente manipulado por esse mal e incapaz sequer de percebê-lo, por isso um mal metafísico, que foge de razões psicanalíticas para se instalar como força natural (até mesmo banal) e condicionante do mundo e das pessoas. O mal de Dumont é próximo aquele que contamina os filmes de Robert Bresson, que também via a onipresença da maldade como força fundadora do mundo. Em Bresson, esse processo tinha um caráter mais religioso (embora totalmente depurado de efeitos dramáticos e sensoriais, encenados dentro de um rigor frontal, seco e objetivo), que sugeria uma dialética mística entre o real e aquilo que não se pode compreender pela razão. Em Dumont, esse aspecto místico-religioso não existe. Tudo é naturalizado e parte constituinte da matéria básica do mundo, de onde o diretor inicia e funda toda sua construção dramática e seu discurso epidérmico e direto. Tanto Bresson quanto Dumont não julgam, apenas expõem.

No cinema de Bruno Dumont, esse mal naturaliza os preconceitos, o racismo, a xenofobia, a violência, banaliza agressões e mesmo assassinatos brutais e afasta qualquer possibilidade de afeto real entre as pessoas. Os sintomas estão presentes na apatia dos tipos, na presença constante de personagens com problemas mentais, no peso dos tempos mortos em que as pessoas perambulam movidas por inércia, sem objetivos ou se largam prostradas em meio à vastidão dos espaços. Não é a toa que o cenário perfeito para os filmes de Dumont seja o interior da França, com suas cidadezinhas decadentes, habitadas por tipo rudes, ignorantes, em que a falta de ter o que fazer se funde a poeira e ao barro, às casas desgastadas pelas marcas do tempo, a estradinhas onde os personagens se deslocam em mobiletes barulhentas ou em bicicletas velhas. É uma França profunda, um apêndice apodrecido daquela nação do conhecimento, das artes e da intelectualidade.

‘O Pequeno Quinquin’, concebido como uma mini-série para a TV, mas exibido nos festivais e na versão que chega agora aos cinemas brasileiros como um longa de 3h20, é um filme em que Bruno Dumont trabalha todos os elementos que caracterizaram o melhor de sua obra até agora. É um filme que dialoga diretamente com seus melhores trabalhos, ‘A Vida de Jesus’ (1997), ‘A Humanidade’ (1999) e ‘Fora de Satã’ (2011). ‘O Pequeno Quinquin’, visto como um longa (e não quebrado em capítulos) potencializa a força do filme. Com sua longa duração, Dumont pode acentuar a intensidade que imprime ao peso do tempo que contamina as sequências, dar maior ênfase aos gestos e expressões de seus personagens, aumentar a sensação do arrastar desse tempo, ampliar a relação vazia dos personagens com os espaços abertos, com uma natureza bela, mas sufocante, capaz de camuflar toda a sordidez de um mundo desencantado em que a qualquer momento a abjeção pode surgir e desaparecer como manifestação bruta e plena desse mal que move o universo do filme, bem como a visão de mundo do diretor.

Como em seus melhores filmes, ‘O Pequeno Quinquin’, é composto por planos abertos, em que Dumont destaca a pequenez do homem em meio a um cenário amplo. O uso funcional do scope potencializa esse recurso e permite ao diretor expandir para as bordas do quadro uma amplitude geográfica que se estende para muito além dos planos, dando a sensação sufocante de um mundo incapaz de ser enquadrado em seu todo dentro de uma imagem. As forças metafísicas que regem o cinema de Bruno Dumont, esse mal primordial e atávico, transbordam os limites daquilo que sua câmera pode registrar. O diretor enfatiza que os impulsos que conduzem o destino e as ações humanas são incapazes de serem traduzidos em explicação teóricas e muito menos captados em registros imagéticos. Esse complexo discurso sobre forças metafísicas que conduzem a vida são construídos por Bruno Dumont dentro de códigos naturalistas, sem nenhuma espetacularização. Suas imagens são diretas, secas. Sua decupagem básica e aberta a pequenas elipses. A evolução narrativa não segue a lógica da construção de um clímax e nem busca a explicação lógica para os fatos.

Muitos ressaltaram os aspectos e a presença do humor em ‘O Pequeno Quinquin’. Essa comicidade existe, mas muito mais dentro de um patético, que reduz ainda mais os personagens a suas limitações e incapacidades do que como recursos de comédia. Existe uma ampliação das restrições humanas por meio de situações grotescas que provocam o riso no espectador, mas um riso que remete a uma imediata autocrítica dentro dos movimentos internos do filme.

'O Pequeno Quinquin'Em ‘O Pequeno Quinquin’ temos uma série de crimes que acontecem na cidadezinha onde se passa o filme e são investigados por uma dupla de policiais que beiram a caricatura; aqui mais uma jogada de mestre de Dumont, ao contrapor os tipos idiotizados (que beiram o burlesco) dos policias com a aspereza rude e a apatia dos habitantes da cidade. Os assassinatos são cometidos com requintes de crueldade que nunca são mostrados. Sabemos dos detalhes pelos diálogos entre os personagens. Os primeiros corpos são encontrados picotados no interior de duas vacas. Aqui Dumont aproxima de maneira clara a animalidade do ser humano, de suas ações abjetas e da fragilidade de seus corpos com a própria natureza orgânica dos bichos. Uma metáfora direta, que retorna mais tarde quando uma das personagens assassinadas é devorada por porcos. Dumont não vê grandes diferenças que separem seus personagens dos animais. A natureza corrompida pelo mal onipresente do homem o bestializa a ponto de fundir os restos de suas carnes e entranhas ao corpo físico dos animais. São as bestas humanas que batizam um dos capítulos do longa.

E existe o jovem Quinquin, um pré-adolescente que vive seus primeiros dias de férias quando a onda de crimes tem início. Quinquin é a chave dramática para Dumont ligar os pontos da trama. Ligar, não explicar. O garoto é uma figura onipresente em todos os cantos da cidade, está sempre por perto quando os cadáveres são descobertos, encontra um caminho secreto que explica como uma das vacas foi parar dentro de um abrigo militar da Segunda Guerra abandonado. Ele recebe a notícia dos crimes com a mesma indiferença dos moradores da cidade. A incapacidade de demonstrar emoções é presença marcante nos tipos que protagonizam os filmes de Dumont. Mas Quinquin tem algo a mais, que é captado e sugerido pela câmera de Dumont por meio da variação das expressões de seu rosto, por suas atitudes, pequenos gestos e pela maneira como Quinquin se destoa dos demais personagens. Existe no garoto texturas de personalidade que fogem da simples apatia dos demais personagens e o sorriso dúbio e discreto que ele estampa em seu rosto em dos planos finais o aproximam de uma maneira ambígua e aberta das fontes do onipresente mal que contamina o filme. O diabo personificado que o detetive insiste que está à solta na cidade pode ter alguma relação mais próxima das complexidades de caráter do jovem Quinquin. Nada sobrenatural, mas sim uma relação naturalizada entre um personagem e a abjeção que controla o mundo.

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