Por Fernando Oriente
Para Jean-Luc Godard, em toda sua obra e demasiadamente em ‘Adeus à Linguagem’, é por meio do conceito amplo da estética, ou seja, de um conjunto inter-relacionado das imagens, sons, ruídos, colagens, textos, ações, discursos, sobreposições, músicas, questões e idéias que pode haver uma possibilidade (nunca a certeza ou a garantia, mas as probabilidades contidas nos signos e significantes) para a existência do discurso – da linguagem, do cinema como expressão artística, filosófica, estética, política e existencial. Mesmo que esse discurso seja desconstruído constantemente pelo próprio Godard. Todo o ensaio poético que é ‘Adeus à Linguagem’ – com suas narrativas fragmentadas, com a sobreposição de imagens e textos, de seus muitos diálogos, de sons e movimento, por meio da própria composição dessas imagens em camadas (ampliadas aqui pelos efeitos do 3D) – é uma construção simbólica e sensorial de um conjunto de idéias, de enunciados, de questões, de afirmações (sempre contrapostas, reafirmadas ou questionadas) que configuram a percepção de mundo, o recorte pessoal de Godard sobre o atual estado das coisas, bem como um retrato das inquietações e da visão complexa e criticamente melancólica de um cineasta de 84 anos que mantém a pulsão e o vigor artístico no auge de sua potência criativa (muito mais ousado, radical e original do que qualquer jovem artista).
‘Adeus à Linguagem’ é um filme político, filosófico, antropológico, semiológico ao mesmo tempo em que se trata de uma obra próxima a uma sinfonia minimalista, densa em sua simplicidade, expressiva em cada um de seus detalhes e impressionista pela abertura porosa com que se entrega ao espectador com uma gama enorme de possibilidades interpretativas e sensoriais.
Se Godard sempre trabalhou numa constante construção estética em que imagens eram compostas sempre para gerar conflitos com as ações, com as palavras e com o uso radical da banda sonora, em ‘Adeus à Linguagem’, JLG faz um uso primoroso das possibilidades do 3D. Em alguns momentos, ele usa o 3D dentro de sua função primeira, que é potencializar de maneira límpida a profundidade de campo e com isso intensificar as relações entre os primeiríssimos e primeiros planos, os planos médios e os planos de fundo. Quando Godard usa o 3D dessa maneira mais tradicional, ele o faz por meio de uma construção de quadro exuberante, em que o posicionamento de câmera, as angulações, a mise-en-scéne, as ações e a movimentação dos personagens e as relações entre eles e os objetos de cena ganham um sentido de desordem e movimento constante que ampliam o discurso do filme em relação às camadas conflitantes das múltiplas representações nas formulações da linguagem e ao deslocamento existencial do homem no espaço, no mundo. Nessas cenas, personagens entram e saem de campo, interagem entre si, dialogam, ou apenas observam as ações de outros, quando não apenas passeiam dento do quadro para logo em seguida saírem de cena.
Mas o uso mais radical e constante que Godard faz do 3D em ‘Adeus à Linguagem’ é quando ele distorce os efeitos do 3D para explorar as múltiplas camadas das imagens e faz com que elas entrem em conflito intenso entre si ao mesmo tempo em que são radicalizadas cada vez mais. JLG usa efeitos que tornam as imagens tridimensionais difusas, borradas, onde o foco e a limpidez se dissolvem em planos cujas camadas da imagem se desprendem umas das outras, se sobrepõem e criam uma sensação de desordem sensorial, em que o olho do espectador é provocado pela não clareza das cenas, pelas distorções visuais que o conflito radical das imagens em texturas de 3D fragmentadas provoca. É um experimentalismo visual e estético que gera desconforto e acentua ainda mais o discurso de desarranjo imagético e discursivo do mundo e do indivíduo. Um desarranjo, um desconforto que parte destas distorções das imagens em camadas conflitantes dentro do uso fraturado do 3D e passam a se relacionar de maneira mais agressiva aos textos, aos sons e a todo o conteúdo discursivo do filme. A instabilidade da imagem provocada pelo uso desses recursos por Godard em ‘Adeus à Linguagem’ pode ser compreendida como a tentativa de criação de um espaço-tempo através do qual detalhes específicos podem ser percebidos, problematizados e aprofundados.
Novamente Godard utiliza a constante variação de diferentes captações de imagem e das múltiplas texturas com que essas imagens surgem na tela. Imagens de arquivo, passagens de filmes antigos, cenas filmadas em digital de alta resolução, sequências com cores estouradas e saturadas, imagens de baixa resolução, um uso primoroso da luz e das variações de luminosidade dentro do quadro, redução na velocidade dos planos e as distorções imagéticas do uso radical do 3D são parte fundamental da composição estética de ‘Adeus à Linguagem’ e potencializam ainda mais a provocação dos sentidos que o diretor causa no espectador pelo uso radical e criativo da fusão frenética de diversas formas de representação do mundo por distintas composições imagéticas.
Toda esta construção do discurso estético do filme é sobreposta ao texto. Muitas vezes os diálogos são diegéticos (estão sendo proferidos pelos tipos que vemos na tela), em outros momentos o texto e a palavra vêm do extracampo; frases (idéias, questões) que são repetidas em momentos distintos ao longo do filme. Tudo isso aliado a um uso radical do som, que por meio de frases, citações e discursos dispersos, diálogos recortados, interrompidos e novamente retomados, ruídos e músicas formam um bloco sonoro que se desdobra em múltiplas texturas sonoras, que comentam, reafirmam, negam e potencializam as imagens em que estão inseridos, com as quais dialogam dialeticamente. Godard é, a cada novo filme, mais dialético, mais aberto aos conflitos estéticos que servem de suporte para os confrontos ideológicos de seu discurso.
‘Adeus à Linguagem’ é composto por inúmeras citações, textos, fragmentos de pensamento de nomes como Walter Benjamim, Dostoievski, Jacques Derrida, Freud, William Faulkner, Alan Badiou, Flaubert, Proust, Beckett e Sartre, entre muitos outros. Godard costura esses textos, em meio aos seus próprios textos, às suas idéias e falas de uma maneira orgânica que o permite criar um discurso totalmente novo e autônomo, em que todos esses autores, filósofos, e pensadores se fundem ao texto de JLG em um discurso original que re-significa e atualiza todos esses conceitos e idéias sob a ótica e a formulação discursiva dialética de JLG. Cada plano é um devir em si.
Se Godard aborda no filme a crise, o iminente fim ou saturação da linguagem (representação) da sociedade ocidental, ele o faz ao preencher seu filme com diálogos e textos (sempre ancorados nas potencialidades e instabilidades das imagens) em que se discutem a morte, a representação dos indivíduos, o amor, a guerra, o papel do Estado, as limitações do indivíduo, as questões político-econômicas, as possibilidades de duas ou mais pessoas estarem realmente juntas e em sintonia, a solidão, a busca metafísica por Deus e o colapso de um modelo de sociedade que claramente está em seu crepúsculo. A linguagem e o discurso e seu possível esgotamento é um reflexo, bem como um sintoma desse mundo europeu, ocidental que está à beira de uma exaustão real e, principalmente simbólica. O filme é uma elegia à imagem, a uma representação esfacelada do que restou para tentar se aproximar dessa sociedade à deriva.
‘Adeus à Linguagem’ trabalha dentro do conceito do filósofo e psicanalista Félix Guattari sobre uma abordagem complexa e plural das construções dialéticas da linguagem que seja capaz de ir em direção à representação heterogênea das subjetividades. Uma representação que fuja da construção mercantilizada pela alienação de uma indústria cultural e simbólica que inunda a sociedade com visões pré-fabricadas de uma subjetividade única, baseada em padrões ocidentais capitalistas de uniformização castradora do indivíduo. Godard aborda as possibilidades de construções da linguagem, das imagens, da fala, dos textos, dos sons e dos conceitos teóricos (tanto políticos, quanto sociológicos, filosóficos, históricos, estéticos e antropológicos) de maneira que seja possível uma visão/construção da linguagem como representação da pluralidade dos indivíduos e de suas subjetividades heterogêneas, sempre em processo de constituição, em contradição. Uma construção coletiva e aberta dessa subjetividade heterogênea proposta por Guattari.
É dentro desse processo que aproxima Godard de Guattari, que JLG usa constantes menções a sociedades arcaicas ou simplesmente ignoradas pela visão eurocêntrica. Temos no filme referências à construção simbólica do mundo feita pelos índios, uma busca constante de uma personagem sobre como se compreender a África e suas organizações simbólicas e sua ignorada construção subjetiva. E temos uma permanente aproximação (uma observação crítica através da câmera), por meio de imagens, planos inteiros, sons e ruídos da Natureza, sejam em imagens de plantas, do solo, rios, do mar, de rochas, da terra, da água e de espaços abertos em que o homem nunca está em cena. Aqui, é um cachorro quem faz o elo entre a linguagem primeira contida na Natureza e o mundo construído das cidades urbanas em que homens e mulheres habitam e se deslocam, como espectros, em constante movimento, mas um movimento ilógico, mecanizado, desprovido de percepção dos espaços e da relação que eles têm com esses ambientes. Esse mundo urbano é representado por Godard em cenas que registram a movimentação e os ruídos de bares, estações de metrô, ruas, avenidas, estradas, postos de gasolina, faróis de trânsito, um píer onde turistas entram e saem de um barco que passeia em círculos por um lago, imagens filmadas de dentro de carros em movimento e sequências no interior de um apartamento de um casal, esses os responsáveis pela maioria dos diálogos e textos do filme. As cenas nos vários cômodos do apartamento trazem algumas das mais belas imagens do filme e impressionam pela maneira orgânica como Godard filma os corpos em suas ações mais banais, em movimento ou estáticos e a beleza que Godard extrai do registro da materialidade desses corpos nus.
A subjetividade animal, as teorias de como um cachorro percebe o mundo e se insere nele, é um dos principais comentários do discurso de Godard em ‘Adeus à Linguagem’, porque é justamente na oposição entre a capacidade de observação, a relação física e simbólica que o cão tem com o espaço que os homens perderam.
A obra de Godard sempre teve como centro motor uma busca estética, formal e de discurso por problemas, angústias, feridas e inquietudes do presente, mas sempre em relação ao passado e seus efeitos. É por isso que ‘Adeus à Linguagem’ é entrecortado por imagens de filmes clássicos, por cenas documentais de arquivo em que vemos guerras e personagens históricos, representações imagéticas de um tempo passado que ecoa na desordem do mundo contemporâneo.
Esse processo se torna elemento cada vez mais central no cinema de JLG desde os anos 80 e se radicaliza em sua fase mais ensaística, a partir dos anos 90, após o diretor concluir suas ‘Histoire(s) du Cinema’. Nunca oferecendo soluções, e sim problematizando essas questões dentro de um paroxismo que contamina seus enunciados, situações dramáticas e a própria mise-en-scéne de seus filmes. Essa construção está em cada fotograma de ‘Adeus à Linguagem’.
‘Adeus à Linguagem’ é mais uma reafirmação de JLG de que o cinema para ele – seu cinema, sua arte – é algo que problematiza, gera conflitos internos e externos a sua própria matéria, abusa de digressões e da dialética constante entre imagem, textos e sons; uma obra que trabalha nas contradições, nas incertezas, no levantamento constante de questões, nas arestas, no confronto de idéias, numa encenação em camadas e fragmentada e nas aberturas para inúmeras leituras, interpretações e reinterpretações. Seu cinema não é dotado de esclarecimentos prontos, de certezas, de dogmas que entregam experiências acabadas para o espectador. ‘Adeus à Linguagem’ e toda a obra de Godard permitem ao público uma contemplação crítica e reflexiva em que podem e são convidados a buscar interpretações múltiplas do mundo e de si mesmos.
A linguagem é o processo pelo qual as representações são concebidas, absorvidas e codificadas. Se o desejo, para Freud, é uma representação, é a linguagem que vai pautar as relações de construção entre o sujeito e a concepção de seus desejos e suas vontades. Em ‘Adeus à Linguagem’ Godard trabalha em cima da crise dessa relação da construção do desejo e de ordenamento interno das vontades, um desejo frustrado, muitas vezes incapaz de se materializar em discurso e impossível de ser satisfeito, mas que se mantém em processo de formação e reconfiguração constante de suas representações por meio das imagens, suas camadas e significações, por meio do texto, por meio dos sons e ruídos, por meio das múltiplas possibilidades de absorção do mundo e de como elas nos conduzem de maneira conflituosa a construções de absorção interpretativas dos espaços, dos indivíduos e das macro e micro relações que se constituem e se dissolvem num movimento perpétuo de re-significação do mundo e das múltiplas subjetividades em conflito constante com esse mundo, não só material, mas também imaterial, aquilo que transcende a própria razão lógica e material da vida. ‘Adeus à Linguagem’ é uma obra-prima, um filme melancólico, crepuscular, mas nunca resignado. Uma frase dita em determinado momento do longa pode servir de farol para um aproximação sintética do discurso godardiano no filme: “Em breve todos precisaremos de intérpretes. Precisaremos de intérpretes para entendermos aquilo que sai das nossas bocas”
Há séculos, um gênio como Mozart, entre as inúmeras realizações que deixou para o mundo, compôs o seu réquiem, mesmo que de maneira involuntária. Hoje, outro gênio, Jean-Luc Godard, parece ter feito exatamente a mesma coisa, porque ao realizar ‘Adeus à Linguagem’, Godard pode ter composto o seu próprio réquiem, só que de forma total e melancolicamente voluntária. Para sempre Godard.
Godard sempre será atual, na medida que seu cinema é de experimentação, sempre procurando o novo , novas formas de pensar, a evolução. Ídolo de toda uma geração. .