Por Fernando Oriente
‘As Testemunhas’ talvez seja o último bom filme realizado por André Techiné, embora não atinja o nível de seus melhores trabalhos como ‘Hotel das Américas’ (1981), ‘Rendez-Vous’ (1985), ‘J’Embrasse Pas’ (1991), ‘Rosas Selvagens’ (1994) ou ‘Os Ladrões’ (1996), ‘As Testemunhas’ é repleto de qualidades, energia, vigor narrativo e uma intensidade dramática que vem da própria estrutura do argumento, potencializada pela qualidade da encenação e pelo ritmo vertiginoso da montagem. Os longas realizados pelo diretor nos anos seguintes vão de medianos a medíocres, o que pode indicar um sério problema dentro do cinema recente de Téchiné, mas seu currículo ainda é muito bom para o descartamos de vez.
Realizado em 2007, o filme concentra seu poder na narrativa, cuja evolução está no centro de tudo. Construção de planos, montagem, mise-en-scéne e os demais elementos da linguagem cinematográfica são os suportes para que Techiné desenvolva um longa visceral em que o espectador é mais do que um observador impassível; ele torna-se um cúmplice e também uma testemunha de tudo aquilo que vê na tela, do jorro narrativo criado por Téchiné. O recorte de tempo de um ano na vida do grupo de personagens centrais (1984) e a complexidade e as reviravoltas dos acontecimentos em suas vidas são potencializados pela energia que o diretor retira da história que narra. A força das situações é o núcleo da dramaturgia que Techiné usa para consolidar seu discurso. Os personagens não têm como se manterem impassíveis diante da velocidade de transformações que os acontecimentos provocam em seu meio. Eles tomam partidos, acertam, erram ficam inseguros, temem, mas agem e suas ações são o motor do longa. O diretor extrai o máximo dos dramas e das experiências vividas por e por meio desse processo constrói a solidez e a densidade da narrativa.
Todas as pessoas que vemos na tela carregam o peso de suas experiências vividas, são personagens de construção sólida, multifacetados e de texturas complexas. Não é necessário à Techiné entrar em particularidades nem explicitar o que ou de que modo eles são o que são. O seu agir, suas manifestações e suas reações a tudo aquilo que os cercam são mais do que suficientes para testemunharmos sua complexidade. A força deles vem de suas limitações e potencialidades, do caráter essencialmente humano de suas personalidades.
‘As Testemunhas’ é dividido em três partes. Em um primeiro momento, Techiné explora a liberdade de ação de seus personagens e certa inconsequência (positiva) em viver os prazeres e a consumação dos desejos de forma quase plena. São tipos ágeis, irrequietos e a velocidade da montagem e o trabalho de câmera contextualizam bem o ritmo de suas vidas. Na segunda parte a tragédia assume o primeiro plano, com a presença da AIDS modificando tudo no cotidiano dos personagens no ano de 1984, quando a doença ainda era um mistério, pouco conhecida, sem possibilidades de cura ou tratamentos eficazes e cercada de preconceitos que tornavam a vida de suas vítimas ainda mais complicadas. A velocidade na fruição do longa se mantém e até se potencializa, acompanhando a incerteza, o medo e a incapacidade de reação diante de uma nova realidade castradora das subjetividades libertárias; que embora limite o alcance das ações dos protagonistas, não os impedem de continuar agindo, desejando, vivendo. Esse medo, que é como uma supressão do desejo puro, os impulsiona ainda mais no sentido de tornarem-se agentes do presente que os envolve. Na parte final, após o impacto da inevitável perda, as testemunhas que sobreviveram encontram-se feridas, abaladas e tristes, mas prontas para seguirem na ciranda cíclica e inevitável da sucessão do tempo. O que viram, sentiram e fizeram são os alicerces do testemunho da história em construção. É a história dos indivíduos que sempre compõe a história da coletividade.
Não existe em ‘As Testemunhas’ a banalização das emoções encenadas e dos dramas vivenciados, Techiné é direto, cru e visceral; não usa muletas sentimentalistas para amplificar os dramas. As situações falam por si. Os acontecimentos externos, as tragédias e as perdas que elas trazem penetram o interior dos personagens. Mesmo sem a intenção explícita ou o controle sobre o que acontece, eles têm suas condutas, suas referências e até seus gestos cotidianos alterados por esses fortes elementos externos.
Essa narrativa poderosa de ‘As Testemunhas’ é centrada no impacto dos eventos, dos acontecimentos e as consequências que têm sobre a vida dos personagens. O vigor dos tipos é o centro de um cinema calcado no valor, no potencial e nas possibilidades dialéticas desses personagens. O poder de se contar uma história aglutinando os conflitos, a aproximação e o refluxo entre pessoas comuns (os agentes dessa história) é o elemento primordial do cinema que interessa a Techiné. O cineasta francês trabalha em cima de sensações e sentimentos reais; abomina a caricatura e o gestual falsificado.
André Techiné empresta seu olhar ansioso e inquieto para a câmera que, em constante movimento, registra a velocidade dos acontecimentos em planos ágeis unidos pela montagem vertiginosa de elipses bruscas. Todo esse ritmo não dilui a intensidade das relações entre os personagens; a objetividade na construção das inter-relações é ponto forte no longa. Um pequeno parêntese é necessário: a impressionante presença física e a beleza estonteante de Emmanuelle Béart roubam a cena – afinal de contas trata-se de uma das mais belas atrizes que o cinema já teve. Uma atriz cuja simples presença dentro do quadro já mexe com as emoções do espectador, dos mais diversos modos.
Techiné filma homens e mulheres comuns e seus papeis dentro do desenrolar da vida cotidiana, de seus destinos. Filma o constante movimento da aventura humana. Da experiência de alguns, o diretor traça os paralelos entre a pequena e a grande história. Os eventos que atingem essas pessoas comuns são aqueles que vão deixar suas marcas na história da evolução do mundo. André Téchiné transforma em prazer (recheado de tensão e incertezas) o ato de se assistir a um filme construído em cima da força da narrativa. Pelo menos para aquele espectador que ainda vê no cinema uma experiência totalizante e demasiadamente humana.