Por Fernando Oriente
Uma história de amor permeada por inúmeras reflexões e implicações, dirigida por um cineasta com impressionante talento para encenação e ritmo narrativo e um discurso fílmico repleto de refrações das estruturas sociais que regem as vidas humanas. Isto, e muito mais, é ‘Carol’, o novo longa de Todd Haynes. Haynes é o diretor com a mais talentosa mise-en-scéne do cinema americano surgido nas últimas décadas (“título” que divide com James Grey); muda radicalmente as formas e mecanismos de seus filmes de um trabalho ao outro, opera dentro de gêneros clássicos da mesma maneira criativa, original e inventiva em que experimenta estruturas mais ousadas em obras de concepção e discurso mais radicais e faz tudo isso atingindo sempre a densidade dramática e a força discursiva que fazem de seus filmes experiências únicas. Todd Haynes acredita na força que o cinema pode conferir a uma história – independente da maneira com que decide contá-las -, aos subtextos e aos comentários que essas histórias podem alcançar.
‘Carol’ pode ser comparado, dentro da filmografia de Haynes, a ‘Longe do Paraíso’ (2002). Ambos são estruturados nas premissas e códigos do melodrama clássico, como nos grandes filmes do gênero assinados por Douglas Sirk, Vincente Minnelli ou William Wyler em que a ambientação, a apresentação dos personagens, o enunciado, a direção de arte, os cenários e as estruturas sócio-culturais em que se desenvolvem as ações são construídas com esmero e recriam a frágil normalidade de um mundo estável regido pela moralidade e a impressão de felicidade, mas que será sempre desestabilizado por situações narrativas e por arroubos dramáticos que irão desmascarar as falsas certezas e explicitar os jogos de poder, a hipocrisia e a submissão em que os tipos estão amarrados, levando a conflitos e sofrimentos em que uma possível redenção, consumação de desejos e auto-afirmação dos personagens será uma possibilidade remota (quase impossível), um bem mais provável prenúncio de um fim trágico ou simplesmente a submissão renegada dos tipos aos mecanismos sociais, sempre mais fortes que suas vontades.
Mas a partir disso, sem negar as raízes e estruturas do gênero, os melodramas de Haynes tratam de maneira mais aberta, subversiva e explícita de personagens, situações e eventos que evocam pessoas que estão fora dos padrões sociais típicos. São os amores proibidos, as relações inter-raciais, o desejo homoerótico, a aspiração por liberdade e a emancipação da mulher que assumem o primeiro plano em ‘Carol’ e ‘Longe do Paraíso’. Como em Sirk, Minnelli e Wyler, Haynes busca aqueles que desafiam a moral castradora da sociedade e seus patéticos códigos de conduta e bons costumes, mas os leva a agir de maneira mais radical que nos filmes da Hollywood clássica, assumindo mais riscos e indo mais fundo em suas pulsões e desejos (Esses elementos aproximam Haynes muito mais de Sirk do que dos outros cineastas clássicos, já que Douglas Sirk era o mais elegantemente subversivo dos autores de melodramas). Haynes sabe que esses conflitos são sempre devastadores – e os usa da maneira mais intensa possível, expõe ainda mais a fragilidade que é imposta a suas personagens mediante a uma máquina trituradora de individualidades. Essa fragilidade de seus personagens não significa que eles sejam fracos, muito pelo contrário. A força de seus tipos é enorme, suas pulsões transcendem as regras e os fazem abrir mão de muito para seguirem sempre perseguindo aquilo que desejam e acreditam. A força da presença do outro é determinante nesses longas de Todd Haynes. É ao se entregar, confiar, dividir e se projetar no outro, que as forças de seus protagonistas se amplificam.
Em ‘Carol’ temos a história de amor (e libertação) de duas mulheres; a rica e prestes a se divorciar Carol Aird (Cate Blanchett) e a jovem aspirante à fotógrafa Therese Belivet (Rooney Mara). A personagem de Cate Blanchett tem um passado em que seu envolvimento romântico com outra mulher é conhecido pelo marido, um elemento dramático que ajuda a dar mais textura à personagem desde a primeira parte do filme. Ao evitar o mistério, as suspeitas sobre sua orientação sexual, Haynes nos apresenta uma mulher fortalecida em sua postura e torna suas ações futuras no desenrolar do filme mais solidificadas dentro de sua própria personalidade já estruturada. A evolução do envolvimento emocional e do afeto das duas protagonistas é conduzida com desenvoltura e firmeza por Todd Haynes. Desde a cena em que se conhecem, passando pelos primeiros encontros em que o desejo cresce gradativamente até a viagem sem destino que fazem na segunda metade do longa e chegando a conclusão do filme, tudo é conduzido com ternura, elegância narrativa, força dramática e densidade. Haynes faz cada sequência, cada cena e todos os planos atingirem o grau máximo de drama, de acepção.
Atingir o drama não tem absolutamente nada a ver com um gênero, um estado emocional ou um acontecimento trágico ou alguma coisa relacionada a dores ou tristezas. Drama aqui, em ‘Carol’ e no cinema de Haynes como um todo, é uma potência, uma elevação sensorial diegética, um estado de força brutal alcançado pela intensidade e as modulações impressas nas imagens e na narrativa. É algo sentido na própria mise-en-scéne, na composição dos planos, nas escolhas da decupagem. É aquilo que atinge em cheio ao espectador por meio dos movimentos de câmera, pelos enquadramentos, nas modulações da luminosidade, nas texturas da imagem, pela construção dos crescentes narrativos, pelo que se desenrola dentro do quadro (e a relação que isso tem com o que está fora de campo), nos gestos, nos olhares, nas falas e nos silêncios dos personagens. Atingir o drama em seu máximo grau é fazer o cinema atingir seu ápice.
O pano de fundo, a realidade social e cultural, em que Carol e Therese estão inseridas é parte fundamental do discurso de Haynes no filme. Os EUA do início dos anos 1950, com seus códigos morais, suas microestruturas de poder e hierarquias, bem como o papel subalterno relegado às mulheres pelo machismo atávico e onipresente impulsionam, tencionam e desequilibram a relação das duas. Carol tem uma filha e o processo de divórcio no qual se encontra faz a possível perda da guarda da menina a maior ameaça para ela. Ser separada da filha, ser tolhida em seu papel de mãe é sua maior preocupação. Aqui não é só o amor materno que conta, é o rótulo imposto às mulheres como pessoas obrigadas a encarar a maternidade como um dever. Ser boa mãe é tão fundamental para ser respeitada na sociedade quanto ser boa esposa, ser desprovida de desejo sexual e não almejar nenhuma forma de independência. Abrir mão do casamento por opção já contraria a hipocrisia reinante, deixar de exercer o papel de mãe seria a desgraça completa. Não que Carol não ame imensamente sua filha e não a queira ao seu lado, o que está em jogo aqui vai além disso. Esse paradoxo torna o filme mais complexo. Para se auto-afirmar em sua essência, para ser independente e tentar viver em plenitude e liberdade, a sociedade exige que Carol abra mão do amor sem limites que tem por sua filha ou rejeite essas possibilidades e aceite continuar em um casamento falido. Faz essa cobrança por moralismo, por machismo e por hipocrisia. Os controles que a misoginia exerce sobre as mulheres não poupam nada, elas são aniquiladas e reduzidas a objetos e transformadas em servas das regras da boa conduta, suas subjetividades não tem o menor valor e seus sentimentos simplesmente não contam – algo muito similar ao que acontece nos dias de hoje, apesar de algumas pequenas conquistas. É contra isso que Carol luta e é no amor por Therese (na libertação que viver esse amor representa) e na necessidade de se impor como sujeito de sua própria existência que ela agirá. Aqui o discurso de Haynes ganha força, seu confronto com os códigos sociais assume maior dimensão e ele faz tudo isso dentro do melodrama, usando-o e subvertendo-o.
Mas ‘Carol’ é acima de tudo uma história de amor, umas das mais intensas e belas dos últimos tempos. A construção e a solidificação do amor de Therese e Carol é minuciosamente elaborada por Haynes dentro da narrativa por meio de uma já mencionada encenação primorosa, pelas camadas que o diretor imprime as situações dramáticas de cada cena, pela naturalidade com que as ações se desencadeiam, pelas opções formais presentes nas escolhas de enquadramento e as distâncias e angulações que essas imprimem ao que vemos na tela, pelos climas que cria em cada sequência, pela precisa na direção de atores que garante atuações notáveis a Cate Blanchett e Rooney Mara, pela fotografia exuberante e totalmente funcional de Edward Lachman, pela negação do sentimentalismo e por Haynes não ceder às facilidades dos arroubos piegas e romantismos vulgares, nem criar personagens antagonistas calcados no maniqueísmo.
O maneirismo que Haynes usa na estrutura formal do filme trabalha a favor dos dramas, climas e ambientações que o diretor constrói para fortalecer seu discurso; não existe virtuosismo vazio em seu cinema. O esmero formal, o detalhismo, a suntuosidade imagética onipresente, tanto por meio do trabalho de câmera – sempre em diálogo com os efeitos visuais atingidos pelos recursos da fotografia-, bem como a direção de arte, as cadências de ritmo e a sofisticação na composição de cena e dos quadros são elementos que só engrandecem ‘Carol’, potencializam o que vemos na tela e ajudam a imprimir uma textura e um compasso sensorial à narrativa. Dentro de todo esse trabalho formal, é notável a capacidade de Haynes em optar sempre pelo corte preciso. Os planos são interrompidos nos momentos exatos que fazem com que as cenas passadas ganhem força e significância e projetem densidade e expectativas nas sequências por vir.
O amor de Carol e Therese é intenso, complexo, tem que superar barreiras e preconceitos imensos e ao mesmo tempo é de uma veracidade comovente. É um amor presente em olhares, em toques sutis, em pequenos gestos, em diálogos, em sorrisos tímidos, falas isoladas e em momentos de silêncio. Está presente nas relações sexuais tórridas, na entrega das amantes, nas trocas explícitas e implícitas, em seus encontros, despedidas e reencontros, em suas cumplicidades e renúncias divididas. Está lá quando uma delas sempre se volta pra trás para procurar um olhar, um vislumbre, ou simplesmente sentir a presença da outra. Está presente nas fotos que Therese bate de Carol – imagens que ela olha ao mesmo tempo em que elas as olham de volta. E está presente no único “Eu te amo” dito entre elas. Essa frase tão batida, quando surge em cena de maneira contundente e comovente, ganha uma ressignificação. Dentre suas inúmeras qualidades e grandezas ‘Carol’ tem um dos mais belos “Eu te amo” já vistos no cinema e esse pequeno detalhe é enorme.
bela crítica!
Muito obrigado, Beatriz.