Por Fernando Oriente
Construir espaços em torno do vazio para que esse vazio seja preenchido pela luz e por pessoas. Essa definição que um dos personagens de ‘La Sapienza’ dá para a função da arquitetura pode muito bem ser usada para definir o trabalho do diretor Eugène Green no filme, bem como em toda sua obra. Green pega a tela vazia, em branco, e a preenche com luz, pessoas, gestos, construções, movimentos e textos. Por meio desse processo, tanto a arquitetura quanto o cinema permitem que a beleza e a sabedoria sejam atingidas. A beleza e o conhecimento são, para Green, um caminho metafísico em direção de algo superior, em que se atinge a sabedoria, uma força maior que representa os mistérios e a salvação equivalentes ao poder de Deus. Nas mãos de qualquer um, trabalhar essas questões poderia ter resultados tenebrosos, mas nas mãos de Eugène Green, um dos maiores realizadores do cinema contemporâneo, o que temos é um filme sublime como ‘La Sapienza’, que vem se somar aos demais trabalhos do diretor num processo contínuo de construção de uma filmografia ímpar que busca sempre a integração dos espaços com o ser humano e a palavra, e dessa relação promove conflitos dialéticos em que as imagens e o texto estão em constante pulsão em direção aos questionamentos existências e sua relação com o tempo, com o passado e o presente e como nos colocamos no mundo mediante uma beleza e uma sabedoria que somos incapazes de absorver e compreender em sua totalidade.
Em ‘La Sapienza’ acompanhamos a viagem do arquiteto Alexandre e sua mulher Aliénor à Itália, onde Alexandre pretende revisitar as obras do arquiteto barroco Francesco Borromini, bem como de contemporâneos de Borromini como Guarini e Bernini, desde a cidade de Stresa até Roma, onde ele trabalhou até sua morte em meados do século 17. A viagem serve para Alexandre e Aliénor tentarem se encontrar existencialmente, em meio às crises que vivem em suas carreiras profissionais, a angústia que se instalou no relacionamento do casal bem como à melancolia com que os dois se posicionam diante das dúvidas do presente, os medos e traumas que carregam do passado. Eugène Green trabalha a questão das texturas emocionais dos personagens sempre na relação entre o passado e seus fantasmas e o presente e suas incertezas. Logo em Stresa, eles conhecem dois irmãos adolescentes, Goffredo e Lavinia. A menina sofre de uma estranha doença que a faz desmaiar e passar dias reclusos, sem forças, em seu quarto. Já o jovem recém saído do colegial, se prepara para ir a Veneza iniciar seus estudos na faculdade de arquitetura.
A partir desse momento, Green divide o filme em dois focos narrativos. Aliénor fica em Stresa para acompanhar a recuperação de Lavinia e Alexandre e Goffredo seguem viagem, de Turim até Roma (sempre visitando construções barrocas clássicas de Guarini, Bernini e principalmente Borromini), num processo que a principio serviria de aprendizado ao aspirante de arquitetura, já que será acompanhado por um arquiteto renomado.
Mas é partir das relações complexas que irão surgir entre os personagens, tanto a mulher mais velha com a menina quanto o experiente arquiteto cético com o jovem aspirante a aprendiz, cheio de vida e fome de conhecimento, que Green irá discutir questões existenciais que evolvem os personagens; seus traumas do passado (fantasmas como isso é dito no filme) que carregam com eles como feridas não cicatrizadas e as incertezas, medos e o vazio espiritual com que lidam com o presente, numa ausência de lógica, um sentimento de deslocamento temporal e uma falta de rumo para seguirem adiante. Eugène Green contextualiza sempre o interior conflitante dos personagens com os espaços, as construções barrocas e os monumentos que visitam. Green impregna esses ambientes e principalmente as construções barrocas com um peso temporal e significativo imensos, como se as pedras, o cimento, os vidros e adornos que constituem a base, a matéria dessas construções carregassem todo um legado, toda uma possibilidade de leitura por meio de seu peso histórico, seus significados projetados no interior dos homens ao longo dos séculos. Ser humano e construções materiais se relacionam dialeticamente num processo em que o homem é refletido, questionado e confrontado com o significado e o peso do tempo que essas construções projetam em seu interior, em suas essências e características existenciais.
A viagem dos personagens se transforma em uma jornada de autoconhecimento, de reflexão, aprendizado, de trocas de experiência de vida, de abertura e desnudamento diante do outro. Eles passam por um processo em que o exterior, as construções e seus significados transcendentes dentro de uma relação complexa entre a fusão de tempos passados com o presente e o efeito que esse ambiente externo, essas obras clássicas da arquitetura barroca dialogam diretamente com as essências dos personagens, fazem com que passem a encarar seus fantasmas, seus passados para reorganizar suas percepções sobre o presente, sobre si mesmos e como se redefinem como indivíduos em um processo de reordenamento de suas subjetividades. Eles se abrem para trocas com um com o outro, para a fragilidade de suas próprias vivências e (in)certezas, bem como para a influência que a história e seus saberes acumulados, cheio de possibilidades de beleza e sabedoria exercem sobre eles. Green é um cineasta sofisticado, introduz essas relações de maneira complexa, gradual em que as texturas dramáticas dos personagens estão sempre se reorganizando pelo movimento interior e exterior dessa jornada em que se encontram.
Eugène Green é um autor que acredita na força transgressora da beleza, no poder simbólico e transformador da absorção dos valores do passado pelo ser humano de hoje, ele acha que a salvação existe dentro de um processo de ascese que é atingido pela busca constante do conhecimento, tanto de si mesmo, quanto do mundo que nos cerca. É a sabedoria, o amor e a beleza que irá levar seus quatro personagens centrais a salvação. Tanto que numa das cenas finais do filme, após tudo o que passaram, Alexandre acorda no meio da noite e, aliviado e sereno, diz “estamos salvos”.
Tudo o que Green constrói é potencializado pelas escolhas extremante originais de encenação, que são ao mesmo tempo fieis ao rigor com que conduz sua mise-en-scéne, mas simples, diretas (mesmo em suas complexidades) e sem arroubos estéticos desnecessários. Green trabalha na contenção dramática de sua encenação. Seus diálogos são falados de maneira lenta, quase recitados pelos personagens. O diretor dá valor e peso a cada palavra dita, isso nos remete muito ao cinema de Straub e Huillet e de Robert Bresson e a forma como esses cineastas davam ênfase ao texto falado por meio do anti-naturalismo dos diálogos e da encenação do gesto. Esse processo visa destacar o peso do texto e da palavra em meio à força das imagens. Green compõe suas sequências de diálogos quase todas em campo e contracampo. Filma quem está falando e corta para o interlocutor quando esse toma a palavra. Muitas vezes nesse jogo entre campo e contracampo, Green posiciona seus personagens de frente para a câmera, encarando com o olhar o antecampo, aquilo que está à frente da imagem (da tela), ou mais diretamente, o próprio espectador. Esse processo de filmagem, de encenação valoriza e destaca o texto, a palavra falada e sua relação que transborda os diálogos entre os personagens, que passam a se dirigir diretamente para nós. Os gestos dos atores, bem como seus olhares e deslocamentos no quadro também são compassados, fogem do naturalismo. Todo movimento, cada fala, todos os gestos e expressões são cadenciados e potencializam sua presença material significante na tela.
Os planos de Green são compostos com muita precisão, enquadramentos sóbrios, movimentos de câmera sempre lentos, aproximação e recuo em relação aos espaços, personagens e ações extremante calculados. Tudo na mise-en-scéne do diretor busca a multiplicidade e as texturas significativas das imagens, a contextualização entre personagens, ambientes, ações, texto e movimentos sempre em função dos significados que quer atingir em cada sequência. Em ‘La Sapienza’, tanto pelas questões da busca de ascese em direção a forças superiores (sabedoria, beleza) quanto por filmar detalhadamente construções barrocas imponentes, a câmera de Green constantemente se move para cima e segue lentamente até atingir o topo das igrejas e palácios e em muitas ocasiões segue ainda mais em direção ao alto para focalizar o céu, como o destino final da busca metafísica pelo conhecimento. A amplidão do firmamento que reserva as possibilidades de acesso ao sublime.
O uso da luz é fator constituinte de cada plano de ‘La Sapienza’. O trabalho de fotografia que busca dar peso sensorial e simbólico à luz é percebido pelos tons de luminosidade que invadem e preenchem o quadro, envolvendo de maneira densa os personagens e os espaços. Uma luz clara, que evoca sensações de conforto, funciona como catalisador dramático, como se a luminosidade pautasse tudo o que acontece na tela e guiasse o olhar dos personagens, conferisse novas formas e possibilidades de ver (perceber) os espaços e as construções e projetasse no espectador as sensações de transcendência que Green busca em suas cenas.
O barroco, influência marcante em toda a obra do diretor, ganha ainda mais potência dramática e força de condução narrativa em ‘La Sapienza’. Green é um artesão da imagem e do texto, um cineasta que constrói seus filmes a partir do esmero com que elabora cada plano em seus mínimos detalhes, dentro de sua visão extremamente particular do mundo, da história e do papel complexo e paradoxal de mulheres e homens no meio em que vivem e dentro dos processos históricos que carregam na construção de suas subjetividades. Trabalha o valor da palavra e do texto de maneira intensa e relaciona tudo com a força subjetiva e sensorial de suas imagens e da luz que ilumina suas cenas e apontam um caminho a ser segundo na busca pelo sublime, pela beleza e pela sabedoria (Sapienza) no que ela tem de mais transformador e potente.
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