Por Fernando Oriente
Se a memória é uma ilha de edição, como escreveu Waly Salomão, a memória também é o refúgio subjetivo de nossos afetos vividos, um espaço mental borrado, cheio de imprecisões, dúvidas, fantasias, saudades, recordações e um amontoado impreciso de fatos vividos, mas muitas vezes imaginados, ficcionalizados ou idealizados. Essas definições podem ajudar a propor uma leitura sobre ‘Já Visto Jamais Visto’, novo filme de Andrea Tonacci que entra em cartaz em São Paulo, após ser exibido no projeto Rumos do Itaú Cultural e na Mostra de Tiradentes, entre outras exibições especiais que aconteceram pelo país. Por meio de imagens de arquivo que Tonacci que gravou ao longo de décadas (desde sua infância até a metade dos anos 1990), trechos de alguns de seus curtas e longas, fragmentos de filmes que nunca realizou e finalizou, estudos de cenas que gravou para projetos que não foram adiante Tonacci compõe em seu ‘Já Visto Jamais Visto’ um painel, um caleidoscópio cíclico e elíptico personalíssimo de suas vivências, recordações, experiências, encontros, afetos, recortes de vida e sua visão de mundo.
Tudo no filme é potencializado e tornado experiência visual em que as potências e possibilidades de leitura e significação das imagens traduzem, questionam, propõem e explicitam signos da vida, do que foi vivido e registrado pela câmera de Tonacci, muitas vezes manuseada por seus familiares, amigos e colaboradores. ‘Já Visto Jamais Visto’ é um filme pessoal, de invenção, pautado pela redescoberta por parte de Tonacci de imagens, momentos vividos, lugares, pessoas, ideias, desejos bem como pela saudade e as memórias do diretor, tudo isso ressignificado pela revisão dessas imagens e pela forma como Tonacci as organiza e rearranja por meio da montagem. Andrea Tonacci, toda vez que apresenta o filme para o público, conta que descobriu essas imagens em sua casa e não fazia ideia do que existiam nessas dezenas de rolos que estavam armazenados e esquecidos em sua casa.
Muitas das cenas que estão no filme foram redescobertas por ele, muitas ele nem sabia que existiam. A ideia de usar esse material para fazer um filme, um ensaio visual, torna ‘Já Visto Jamais Visto’ um processo muito mais pessoal para o diretor do que a simples realização de um filme. Selecionar as cenas, ordená-las em sequências, confrontar imagens (que são recortes de seu passado, de suas experiências vividas) é uma forma do próprio Tonacci (re)descobrir a ele mesmo por meio dessas imagens, desses fragmentos registrados do tempo e do que foi vivido. Tanto em Tiradentes quanto na apresentação do filme antes da pré-estreia em São Paulo, o cineasta disse que esse filme mostra para ele muito mais do que ele é do que do que simplesmente traduz para o espectador o que ele pensa ou como vê o mundo. ‘Já Visto Jamais Visto’ é antes de tudo uma experiência visual e cinematográfica que dialoga primeiro com o cineasta, ajudando a redefini-lo como sujeito do que um filme que apresenta ao público um discurso construído para dialogar com o espectador.
Em ‘Já Visto Jamais Visto’ a câmera é um dos personagens centrais. Vemos diversas câmeras nas mãos de Tonacci, de seus familiares e colaboradores, vemos sombras de quem filma com a câmera na mão, vemos reflexos do ato de filmar em janelas, portas e espelhos. Filmar é um devir para Tonacci e a presença material constante da câmera, mesmo que muitas vezes uma presença sugerida, fixada com ênfase no extracampo, é o mecanismo de aprofundamento desse devir. Toda uma vida, fragmentos dessa vida capturados em imagens de diversos formatos (já que no filme temos cenas gravadas em 8mm, super 8, 16mm, 35mm e vídeo) são materializados em imagens. A câmera reorganiza a memória, as experiências, os projetos, as ideias, aquilo que foi visto, esquecido e sentido. A câmera captura a presença corpórea das pessoas que o diretor ama e amou, dos lugares que viveu e visitou. Muitas vezes vemos imagens de livros, gravuras, quadros, desenhos, esculturas, quadrinhos, tudo filtrado, tornado matéria pelo registro da câmera, pelo ato de filmar.
‘Já Visto Jamais Visto’ é também um ato de afeição, de afeto de Tonacci para com aqueles que ama, bem como em relação a sua própria subjetividade. A câmera filma com ternura, em close, os rostos e expressões de seu filho Daniel, de suas companheiras e do próprio diretor (que aparece diversas vezes em cena). Filma seus gestos, seus movimentos, seu simples estar no mundo. O filme é um estudo da força do gesto natural, da presença espontânea dos corpos no espaço e no tempo. São fortes e significativas as cenas de Daniel encenando o ato de ir dormir, colocando o despertador e depois acordando na manhã seguinte. O mesmo Daniel é visto se encantando com o que vê em uma viagem que fez ao lado do pai à Itália, se maravilhando diante de construções históricas, igrejas, praças e esculturas. Existe esse mesmo maravilhamento nas cenas em que Daniel é visto brincando, caminhando pelos campos que cercam a casa da família em Campos do Jordão, subindo em uma casa de árvore que o menino usava como esconderijo, espaço de suas individualidades e segredos. Se existe um personagem principal no filme, ele é Daniel. Tanto que o filme abre com um plano em que a câmera de Tonacci se desloca pelo apartamento da família até enquadrar Daniel tocando piano. Essa cena é retomada no final do filme, com Daniel ainda tocando piano até perceber a presença da câmera do pai e virar para ele e dizer: “Para pai!”. Esses momentos orgânicos, espontâneos, esses registros personalíssimos da vida cotidiana, das trocas afetivas entre pai e filho são pontos altos e que estão presentes ao longo de todo o filme.
Mas não são apenas as lembranças afetivas, familiares e amorosas que compõem ‘Já Visto Jamais Visto’. Ao usar cenas de seus filmes como ‘Olho Por Olho’ (1966), ‘Blábláblá’ (1968) e ‘Bang Bang’ (1970), além de obras não finalizadas e contrapô-las com imagens de arquivo filmadas pelo diretor nos anos 60 e 70 (cenas da presença de militares em desfile, da tropa de choque), Tonacci relembra e dá ênfase contextualizadora dentro de seu processo de reconstrução de vida e de suas memórias ao período da ditadura civil-militar que comandou o Brasil por 25 anos e que atrapalhou e censurou demais o trabalho do cineasta, bem como deixou traumas e violências gravadas no tecido social do país.
Um destaque forte em ‘Já Visto Jamais Visto’ é o provocado pelos choques entre as cenas. A montagem criativa e potente de Tonacci e sua mulher Cristina Amaral (uma das melhores montadoras do cinema brasileiro), que intercala de maneira elíptica cenas contrastantes, momentos de tempo distintos, criam uma dialética interna a própria reconstituição de vida e história que Tonacci propõe com o filme. A força desse conflito entre sequências distintas vem dos cortes bruscos, que interpõem períodos históricos distantes e ações distintas, que quebram a continuidade das micro narrativas. Mas muito da força que esses processos de montagem criam vem da sobreposição entre cenas gravadas em diferentes texturas. Vamos, por meio de elipses e cortes secos, de sequências captadas em 8mm a outras registradas em vídeo, de cenas em super 8mm a passagens gravadas em 16mm ou 35mm. Esse processo promove a potencialização da beleza e das possibilidades da imagem por meio do conflito expositivo entre as diversas texturas e granulações da imagem. Tonacci é enfático ao ressaltar a presença material da imagem.
‘Já Visto Jamais’ visto, por ser um recorte extremamente pessoal de materiais de arquivo de Tonacci acaba por tornar-se um exemplo da força do cinema de montagem, aquele mesmo teorizado pelo cinema soviético dos anos 20, por Rogério Sganzerla, que dava destaque fundamental aos processos de montagem dentro da realização dos filmes e fez obras ímpares dentro desse mecanismo ao longo de sua carreira, principalmente em filmes como ‘Nem Tudo É Verdade’ (1986) e ‘Tudo É Brasil’ (1997). E também nos remete diretamente a Jean-Luc Godard e suas experiências com a montagem como desconstrução e como novas possibilidades de composição fílmicas, desde seus primeiros longas e principalmente após seus filmes mais políticos a partir de 1967 e dentro de seu trabalho no coletivo Dziga Vertov, além de seus trabalhos em vídeo nos anos 70 e culminando com seu monumental ‘Histoire(s) du Cinema’ (1988-1998) e também muito presente em seus filmes dos anos 90 e atuais, como ‘Nossa Música’ (2004), ‘Film Socialisme’ (2010) e ‘Adeus à Linguagem’ (2014).
‘Já Visto Jamais Visto’ é, como já foi dito diversas vezes, uma experiência personalíssima de seu realizador, um belíssimo filme ensaio poético e, mais do que tudo, uma grande ode minimalista de Tonacci que discute e amplia os mecanismos de se pensar e fazer cinema de forma inventiva, com múltiplas linguagens em sintonia e aberta ao mundo, às experiências vividas e a memória individual e coletiva. Após o seminal ‘Serras da Desordem’ (2006) Andrea Tonacci nos presenteia com mais uma obra ímpar e desconcertante.
Excelente texto, congratulações