‘A Pele de Vênus’, de Roman Polanski*

Por Fernando Oriente

'A Pele de Venus'Roman Polanski é um realizador que transparece sua inquietude artística pela maneira como varia de gênero de um filme para o outro. O diretor faz questão de escolher projetos novos radicalmente opostos aos seus trabalhos anteriores. Assim, após filmar uma comédia ele produz um longa de terror, que é seguido por um thriller, esse por um drama que por sua vez dá lugar a uma aventura ou uma sátira. Seu último longa, ‘A Pele de Vênus’, remete ao filme anterior de Polanski, ‘O Deus da Carnificina’, apenas na origem, ambos são peças de teatro adaptadas para o cinema. Os filmes em si, e as intenções do cineasta, são bem diferentes nos dois casos.

Esse processo de criação é ajudado muito pela maneira como Polanski é capaz de traduzir a época em que faz um filme. Ele consegue como poucos se apropriar de elementos temáticos e formais do momento social, político e cultural em que desenvolve um projeto. Seus filmes refletem de maneira sofisticada e crítica (muitas vezes sarcástica) os fatores inquietantes que pautam o estado das coisas no momento em que essas obras são criadas. É um cinema permeável ao mundo que está a sua volta em uma determinada e específica época. A complexidade e a as qualidades estruturais, narrativas e formais de seus longas impedem que eles se tornem datados.

A mise-en-scène de Polanski segue uma fluência clássica, sua presença como diretor é notada pelo rigor discreto e eficiente como compões seus planos, ao mesmo tempo em que escolhe os momentos precisos para incorporar ângulos de câmera pouco convencionais e que sempre funcionam com catalisadores das tensões dentro do quadro. São notáveis também as escolhas sólidas de decupagem e o domínio do ritmo que sempre imprime nos desenvolvimentos narrativos de seus filmes.

‘A Pele de Vênus’ é uma farsa, uma comédia cínica sobre inversão de papéis e relações de dominação e poder. Com apenas dois personagens, Polanski faz do filme a representação de um conflito milenar entre dois pólos que se afastam, se atraem e se subvertem: o homem e a mulher. O roteiro, escrito pelo diretor e David Ives, é baseado em uma peça do próprio Ives, que recria como sátira o clássico livro de Leopold Von Sacher-Masoch, “A Vênus em Peles”. O livro de Sacher-Masoch é um ícone do conflito erótico entre os gêneros, e dele surgiu o termo masoquismo, a relação de poder que surge na entrega sexual voluntária a um algoz sádico.

Vanda, uma atriz, entra atrasada em um teatro decadente onde Thomas, o diretor e escritor (“adaptador”) da peça fazia seus testes para o papel principal de sua próxima encenação. Embora ele queira ir embora, Vanda o convence a fazer o teste com ela. Começa o embate.

Existe em ‘A Pele de Vênus’ uma constante tensão entre o espaço claustrofóbico onde a dramaturgia se desenrola e a relação simbólica que as ações desses dramas têm com o mundo exterior. A vida está fora daquele espaço em que os dois protagonistas interagem, mas é nessa prisão que eles encenam suas pulsões mais intensas. O espaço restrito é o palco (o teatro) em que os dois personagens representam toda uma bagagem de vida e vivência e que trazem do mundo exterior toda carga do choque entre os gêneros que a sociedade impõe ao homem e a mulher desde o princípio dos tempos. E é nesse teatro, por meio do jogo e do confronto, que esses papéis serão engendrados, super postos, trocados e superados.

No filme temos um dos motivos mais fortes no cinema de Polanski: o conflito. Os dois personagens de ‘A Pele de Vênus’ percorrem os diferentes caminhos dentro da dialética noção de confronto onipresente na obra do diretor. São ambos vítima e algoz, exercem e invertem os papeis da tensão sexual como representação de poder e dominação tão caras à Polanski, ao mesmo tempo em que fazem desse conflito um jogo, com regras pré existentes que são constantemente quebradas, em que a superação de qualquer conceito moral é denominador comum. Estamos no campo privado das representações políticas.

O jogo em ‘A Pele de Vênus’ tem início exatamente quando o texto da peça começa a tomar forma e a ser encenado. É nesse momento que os papéis começam a se inverter. O texto, a recriação do texto por Vanda e Thomas inicia o processo de empoderamento da mulher. Tem início uma dominação dele por ela que já se insinuava no fascínio que ela passa a exercer sobre ele desde o instante em que ela veste o figurino para o teste. Aqui temos os papéis iniciais: o homem é o diretor, tem o poder. A mulher é a aspirante a atriz, se subordina ao poder do macho artista e criador.

Esse processo que dá abertura ao jogo mostra como o poder do texto, do drama recriado, interfere na vida real. Um realizador como Polanski valoriza o papel transformador da encenação do drama, da transformação de um texto em mise-en-scéne; em suma: o poder do cinema. O que interessa em ‘A Pele de Vênus’ é o jogo, o que tem peso no cinema de Polanski é o conflito e seus mecanismos, o processo que leva à dominação, os significantes. Logicamente que o filme tem muito de seus fundamentos na questão da confrontação entre os gêneros e a re-significação dos papéis de homem e mulher em uma realidade alternativa, mas possível. Mas são os significantes contidos nesse processo como embate que são a verdadeira matéria de Polanski no longa.

Em ‘A Pele de Vênus’, é o teste da atriz que dispara os elementos e as regras para o jogo de sedução. Seduzir e subjugar o outro é dominar. Ser dominado é ceder ao desejo de ser esmagado pelo objeto desse desejo. Esse processo é, ao mesmo tempo, consciente e inconsciente. Nesse embate, ela (a mulher) coloca ele (o homem) no papel de um adolescente desajeitado, quase bobo, que não sabe onde e o que fazer com seu desejo e suas intenções.

O conflito entre Vanda e Thomas é um processo criativo, uma metalinguagem usada por Polanski para se referir ao seu próprio processo como criador. A peça que está sendo ensaiada é reescrita e melhorada em meio e por meio da dialética do embate entre a atriz e o diretor. Em ‘A Pele de Vênus’ a criação está na subversão do texto original, no surgimento de novos significados pela atualização e recriação da peça ensaiada. Para Polanski, cinema é subversão, processo de re-significação de roteiro, da transformação de texto em imagens dentro de um processo de decupagem.

É notável que Polanski faça, em ‘A Pele de Vênus’ e também em ‘O Deus da Carnificina’ (só que de maneira bem menos feliz do que no novo filme), do encontro com o teatro o mesmo que fez Alain Resnais (em longas como ‘Melô’, ‘Smoking’, ‘No Smoking’ ‘Medos Privados em Lugares Públicos’ e ‘Vocês Ainda Não Viram Nada’). Os dois cineastas fazem do teatro o material lhes dá uma total liberdade de criação cinematográfica, os textos e os mecanismos teatrais permitem aos realizadores serem altamente criativos e contemporâneos na concepção de um material extremamente cinematográfico. O teatro é superado como meio para se chegar a um cinema moderno, criativo e inquieto.

A Pele de VenusCineasta maduro, no melhor sentido do termo, sem se deixar acomodar na relação com a arte que produz, Polanski domina toda matéria e o fazer cinematográfico, se desloca minuciosamente pela dramaturgia com segurança total. Ele estabelece os meios pelo qual o conflito e o jogo irão dar corpo ao filme. ‘A Pele de Vênus’ é composto na precisão da decupagem, na modulação das intensidades dramáticas da encenação. Cada posicionamento de câmera, com suas relativas distâncias e aproximações dos atores e das situações a que eles estão inseridos, a duração dos planos e os cortes, bem como a variação entre esses planos ressaltam sempre o tom certo de cada passagem narrativa. Impressiona demais, também, o trabalho de variação de luz na fotografia de Pawel Edelman, que modula todas as ações dentro do quadro.

As expressões dos atores são captadas em suas mínimas nuances, bem como a relação entre os tipos e os espaços das ações. E por falar em atores, Emmanuele Seigner e Mathieu Amalric estão ótimos. Amalric é um dos grandes atores de sua geração, sabe entrar e dar força a qualquer papel que interpreta. Emmanuelle cresceu demais como atriz desde o início de sua carreira nos anos 80. Em ‘A Pele de Vênus’ ela está extremamente sedutora, alterna com desenvoltura a sofisticação e a vulgaridade da personagem e modula muito bem o sarcasmo e o cinismo que Polanski imprime em sua presença de sedutora.

O cinismo é dos mais fortes pontos de apoio da encenação e da evolução dramática. A troca de papéis, a inversão de poder entre os sexos é calcada em uma dose alta de sarcasmo em relação às regras do confronto entre os personagens, bem como em todo o processo de novos significados que o texto encenado adquire. Vanda e Thomas saem dos diálogos da peça que ensaiam e emendam naturalmente discussões paralelas como se o texto fosse o mesmo. Cada comentário que eles fazem nas entrelinhas do roteiro que interpretam é parte integrante desse mesmo roteiro, é a expansão e a atualização do texto original em uma única narrativa que faz a fusão dos tempos e ressalta a contemporaneidade dessa confrontação.

Polanski chega ao cúmulo de encenar Thomas como um paciente, deitado em um divã, em meio ao que parece uma sessão de análise em que Vanda é a psicanalista, vestida como tal e posicionada em relação a ele como se estivessem em uma sessão de um consultório de psicanálise qualquer. Isso, executado com a naturalidade com que essa cena é construída, reforça o poder que o diretor tem sobre a matéria que encena.

Tudo isso leva o espectador à conclusão do filme, ao momento em que a consumação da troca de papéis é materializada, física e simbolicamente. Uma troca de papéis entre diretor e atriz, entre homem e mulher. Esse processo é concretizado na cena em que Vanda dança como uma bacante enfurecida, como a Vênus que se move nua e poderosa em frente ao pobre homem acorrentado e indefeso. O poder já está em outras mãos. O significado do texto já é outro.

O belo plano final retoma literalmente o movimento iniciado na primeira cena do filme. Só que se no começo temos um travelling frontal, na conclusão esse travelling é de ré. Muda-se o sentido da câmera como se muda o significado dos papéis dramáticos e das posições de poder dos sexos. Polanski faz de ‘A Pele de Vênus’ seu melhor filme desde ‘Lua de Fel’ (1992) e um dos melhores de sua carreira. E isso é muito.

*Crítica originalmente escrita para, e publicada, na Revista Teorema, edição 24, de agosto de 2014.

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