Por Fernando Oriente
O conceito de “looser” (perdedor, fracassado) é um dos maiores complexos que assolam a sociedade nos Estados Unidos. País símbolo do capitalismo de mercado e da capacidade de consumo, habitat natural do “self made man”, a terra do Tio Sam não permite que seus filhos sejam frustrados economicamente e que não possam consumir tudo o que desejam; a vida e a felicidade de seus cidadãos dependem do sucesso que eles têm em termos de dinheiro e poder de compra. Ser um perdedor é não ter capital para bancar a existência plena dentro do “sonho americano”.
‘Antes Que O Diabo Saiba Que Você Está Morto’, último filme de Sidney Lumet, centra sua trama na tentativa de dois irmãos de cometerem um roubo perfeito e com isso resolverem seus problemas financeiros. Andy (Philip Seymour Hoffman) e Hank (Ethan Hawke) são atormentados por diferentes motivos que os fazem sentirem-se loosers. São cobrados por familiares, pressionados por dívidas e, principalmente, carregam uma ambição incontrolável de encontrar a felicidade através do dinheiro.
O ambiente em que vivem e, sobretudo as relações que têm entre eles e com todos que os cercam são pautados pela amoralidade – no sentido em que valores morais não têm peso nem significado afetivo. Lumet mostra um universo onde códigos éticos e não encontram espaço. O cineasta adentra o espaço da família, o que teoricamente seria o último baluarte dos valores nobres entre os indivíduos (o ideário patriarcal da felicidade e segurança do ser humano como agente do capitalismo), e o decompõe. Desde o início do longa, essa desconstrução familiar é conduzida com vigor pelo diretor, até o final, em que literalmente a família americana e seus valores são implodidos.
‘Antes Que O Diabo Saiba Que Você Está Morto’ tem momentos em que o drama atinge potências máximas, tudo dentro de uma orquestração precisa de Lumet, baseada na força da montagem fragmentada, nas escolhas de posicionamento e movimentação de câmera (bem como na variação entre os enquadramentos), na decupagem das cenas – que são de uma funcionalidade dramático-narrativa impressionante, na intensidade da encenação e na maneira como a narrativa se encorpa e ganha ainda mais força na parte final do filme, quando mergulhamos de vez numa jornada de destruição e explosões de violência que envolve todos os personagens. A tudo isso se some ainda a presença monstruosa de Philip Seymour Hoffman, em uma atuação desconcertante.
A montagem não-linear e cíclica é um dos principais trunfos de ‘Antes Que O Diabo Saiba Que Você Está Morto’. Esse recurso (que muitas vezes é utilizado para camuflar defeitos e fraqueza narrativa ou até mesmo criar um “perfume’ estético para filmes rasos) é muito bem aproveitado por Lumet. A montagem descontínua ajuda a construir tensão dramática e suspense, refletir o interior fraturado dos personagens além de permitir que os esses personagens ganhem densidade ao longo do filme, já que os mesmos acontecimentos são registrados repetidas vezes, cada uma delas pelo ponto de vista de um dos protagonistas. Esse processo de decomposição e multiplicação de pontos de vistas da narrativa potencializa a jornada dentro caos em que os tipos estão inseridos desde o início e o que os levará claramente ao abismo. Essa tensão é a base da força evolutiva do longa, o que permite que Lumet conduza o espectador, sem perder o ritmo, do thriller ao melodrama trágico (pois o filme tem muito da tragédia no sentido clássico, mas não se rende totalmente aos seus preceitos, já que não se trata de uma tragédia da qual, a partir do total colapso dos personagens seria possível apontarmos algum caminho possível para a reconstrução. No filme não existe possibilidades de se construir nada a partir dos destroços; estamos no campo do caos, da queda absoluta)
O tema do roubo que dá errado permite que se faça uma relação entre ‘Antes Que O Diabo Saiba Que Você Está Morto’ e ‘Um Dia de Cão’, longa dirigido por Lumet nos anos 70. A situação limite vivida pelos personagens serve de combustível para o cineasta trabalhar o colapso psicológico e o desespero que põe na tela, explorando o caos que essas situações limite trazem para a vida das pessoas. É o desespero do homem que possibilita que Lumet faça esse percurso cíclico do thriller ao melodrama com coerência dramática e potência visceral de encenação.
A questão da moral (um conceito subjetivo e uma das formas de controle dos afetos usada pela sociedade, seja tanto na moral religiosa quanto naquela dos pactos sociais), em um sentido quase metafísico do termo, é retomada por Lumet dos antigos filmes do cinema noir, em que o crime cobra sempre um preço alto daqueles que o praticam (um tipo de conceito que pode ser visto, na maioria dos casos, como conservador). O pecado exige uma punição, um castigo. Aqueles que desafiam a normas de conduta da sociedade estão condenados a sofrer, e esse martírio começa sempre com o sofrimento psicológico, que invariavelmente conduz ao colapso completo do indivíduo infrator. Mas aqui não estamos mais sob regência dos códigos éticos morais, estamos no mundo da falência dos valores, do rompimento dos vínculos transformadores do afeto; estamos em uma sociedade em ruínas, em que a violência e a agressão ao outro são meros exercícios ilusórios de sobrevivência e tentativa de auto-afirmação, mesmo que uma auto-afirmarão nunca possível. Afinal, estamos nos Estados Unidos da era Bush filho, na era da anulação dos indivíduos, de seus corpos e mentes como agentes de possível ação ou transformação. O desamparo dos corpos não é campo para se reconstituir individualidades e subjetividades e sim espaço de anulação e esmagamento pelo consumo ou pela incapacidade de se produzir dinheiro.
Sidney Lumet, que realizou ‘Antes Que O Diabo Saiba Que Você Está Morto’ com mais de 80 anos de idade, é um dos mais competentes diretores americanos da história. Em seus filmes, ele sempre demonstra o domínio dos principais elementos que caracterizam a boa cinematografia do seu país, soube migrar do cinema clássico tardio ao cinema moderno absorvendo organicamente elementos estéticos e de discurso da Nova Hollywood e entrar em sintonia com as questões e as angústias que tomaram a sociedade de assalto após os anos 60 e 70, bem como o colapso social provocado pela ascensão neoliberal promovida por Reagan na década de 80. Embora tenha momentos irregulares dentro de sua obra, merecia um maior reconhecimento dentro da indústria na qual trabalha desde os anos 50.
Conhecido por dirigir grandes atores e lhes proporcionar atuações poderosas, Lumet oferece em seu último filme um grupo de tipos humanos totalmente desglamourizados (além de Hoffman, todo o elenco está preciso e a presença de uma ótima Marisa Tomei dá ainda mais força ao filme). Vemos na tela pessoas que na maior parte do tempo são antipáticas e ao mesmo tempo frágeis, em um recurso que garante maior coerência com a proposta do roteiro de retratar um universo caótico de amoralidade, derrocada e falência de valores. Os espaços são contaminados pela sujeira das ruas, pela desordem dos ambientes que refratam o interior dos personagens. E Lumet faz um ótimo trabalho de decupagem ao inserir e criar constantes tensões entre os personagens e os espaços, entre os tipos, seus gestos, a agressividade dos diálogos, as explosões de violência, e suas aflições em meio aos ambientes em que estão inseridos, num processo de encenação que usa com vigor e energia a câmera e a variação dos planos, que quebra o tempo e mostra os acontecimentos de diferentes ângulos, de distintos pontos de vista. O último filme de Sidney Lumet é grande, assim como foi sua carreira.