Por Fernando Oriente
Um filme de horror, que trabalha dentro dos códigos do cinema gênero, é campo fértil para um cineasta competente utilizar os elementos cinematográficos para construir um filme que irá dialogar primeiro com os sentidos do espectador, suspendendo momentaneamente a razão para mexer com direto com as sensações. Os processos envolvidos na relação entre as imagens e os sentidos são potencializados no cinema de gênero, que de maneira mais visceral podem abordar temas das mais distintas complexidades, com camadas discursivas densas e ampliar esses efeitos numa dialética centrada em conflitos subjetivos e muitas vezes reprimidos e que não seguem códigos racionais. O sobrenatural, o medo, o desconhecido que parece muito mais próximo e real pelas potências do cinema fazem de um bom filme de horror uma experiência complexa, que expõe como o cinema tem força de causar impactos profundos e reorganizar os processos de percepção.
Dito isso, vamos a ‘Corrente do Mal’ (It Follows) um dos grandes filmes do ano e um dos melhores filmes de horror das últimas décadas. O longa de David Robert Mitchell, desde o primeiro plano, nos remete ao cinema de John Carpenter, mais especificamente Halloween (1978). A câmera baixa, fixa no meio de uma rua de subúrbio classe média norte-americano, com suas casas de dois andares, carros na garagem, gramados, árvores e aparente tranquilidade, começa a se deslocar lentamente em panorâmica até enquadrar uma das casas de onde uma menina sai em desespero, correndo, fugindo de algo que não vemos. Ela se desloca transtornada, a câmera a segue lentamente à distância, não vemos nada atrás dela, mas seu pavor é visceral, algo invisível para o espectador e para os demais personagens que entram em cena persegue a garota, que vestida com shorts, camiseta e uma sapato vermelho de salto alto que visualmente se sobressai e transforma-se em elemento dramático de desconforto, se desloca em pânico pela rua até entrar em um carro e sair em alta velocidade. Mitchell filma toda essa cena em um plano-sequência em que a câmera se desloca sutilmente, lentamente registrando a menina, seu desespero e a presença sensorial de algo terrível e incapaz de ser visto, mas que podemos sentir. A distância fria, analítica que a câmera de Mitchell mantém da personagem, contextualizando suas ações em meio à amplitude do espaço, potencializa o desconforto e desestabiliza o espectador já nos primeiros momentos de ‘Corrente do Mal’.
Após o desfecho desse prólogo poderosíssimo, com a imagem brutal da garota morta na areia, em um amanhecer à beira do lago Michigan, com suas pernas destroçadas, o filme volta a registrar o subúrbio e após alguns planos, focaliza a protagonista (a adolescente Jay) que entra em uma piscina no quintal de sua casa e com ar ausente, com expressões dúbias em seu rosto e observa atentamente tudo a sua volta enquanto relaxa dentro d’água. A cena lenta, em que os movimentos de Jay, aquilo que ela vê, os detalhes e espaços a sua volta são registrados de maneira analítica por Mitchell ajudam a introduzir uma sensação de desconforto que sentimos como um prenúncio dos tormentos que irão acontecer. É na aparente normalidade, banalidade do cotidiano que se esconde o mal, o horror que irá tomar conta do filme, gradativamente, lentamente, numa espiral crescente de pavor.
Jay segue sua vida tranqüila, ao lado de sua irmã, seus amigos e o garoto com quem está saindo, num início de namoro. Após fazer sexo com o rapaz no banco de trás de um carro (cena clássica no cinema americano) o filme entra de vez no terreno do horror. O rapaz amarra Jay, a leva a um prédio em ruínas e no meio da noite confessa que ela está contaminada, que o sexo entre os dois transmitiu a ela uma maldição: ela será sempre seguida por algo, uma força maligna que não tem explicação, que a irá perseguir aonde quer que esteja e sempre irá surgir como uma pessoa diferente (muitas vezes com o corpo de alguém que ela conhece, que ela ama) que só ela verá, que a irá perseguir andando lentamente, sempre reto, em sua direção, para matá-la. Resta à jovem sempre fugir, correr e se distanciar. A única forma dela se livrar dessa maldição, é fazer sexo com outra pessoa e transmitir a maldição a ela, se livrando momentaneamente do perigo. Mas se essa pessoa for morta, a força sobrenatural voltará a persegui-la para matá-la e depois ir atrás daquele que a contaminou. O sexo como agente desencadeador do mal exatamente na vida de adolescentes que estão descobrindo e começando a explorar suas sexualidades, mais um fator que Mitchell usa para relacionar a presença da condenação ligada aos hábitos e às pulsões mais naturais do ser humano.
O filme todo será Jay sendo perseguida, fugindo, mas sempre retornando a sua casa. Num primeiro momento ninguém acredita nela, mas aos poucos, sua irmã e seus amigos passam a acreditar e também passam a viver o horror e a ameaça que persegue a menina. O filme é composto por movimentos cíclicos, que sempre retornam: Jay e seus amigos fogem, mas a força os persegue, aonde quer que eles estejam, o mal estará sempre em seu encalço. A qualquer momento figuras estranhas, com aspecto de mortos vivos, olhar e movimentos similares aos dos zumbis (a construção visual dos tipos que perseguem Jay, suas presenças em cena, bem como a maneira como eles e seus movimentos são filmados são um destaque a parte em ‘Corrente do Mal’), irão surgir e caminhar de forma lenta e aterrorizante em direção de Jay. Um dos grandes méritos de Mitchell é construir ‘Corrente do Mal’ como um labirinto circular, as ações sempre seguem o movimento cíclico, de fuga e retorno, para novas fugas e retornos. Não existe saída para Jay. Tudo o que ela tenta para se livrar da maldição não funciona, sua condenação parece não ter fim.
Todo esse processo narrativo é potencializado pelo impressionante trabalho de composição de cena, pelo esmero e o rigor cênico com que David Robert Mitchell constrói cada plano, cada enquadramento, cada sequência. O diretor usa diversos recursos de encenação, todos com muita propriedade e inseridos de maneira precisa dentro das modulações dramáticas que pretende atingir em cada cena. Ele decupa suas sequências misturando muitas panorâmicas, planos estáticos em close ou em ângulos abertos, alguns travellings mais rápidos e o movimento e as ações dentro do quadro trabalhados sempre em função do desconforto que provoca no espectador. De maneira elegante, extremamente bem planejada e calculada, tudo no filme é para tirar o espectador de sua posição de conforto, gerar incômodo, transmitir por imagens, movimentos, variações dos focos de intensidade entre o campo e o extra-campo, um crescente mal estar, fazer com que as angústias, o pânico e a sensação de incapacidade de se livrar de forças incontroláveis sejam sentidos em nós, que estáticos diante do que vemos na tela, nos sentimos parte do horror que vivem os personagens. ‘Corrente do Mal’ age, por meio das potenciais do cinema, no nosso subconsciente, suprime nossa razão e nos enreda dentro do horror e do medo a que estamos sendo expostos.
A música do filme, potente e que dialoga intrinsecamente com as ações e sensações da narrativa, é elemento fundamental para potencializar as situações dramáticas. É uma música composta por sintetizadores, iguais as que John Carpenter utiliza em seus filmes. Mitchell se entrega de forma explícita as influências carpenterianas, utiliza elementos retrôs (todas as televisões que aparecem no filme são antigas, modelos anos 70 e os filmes e seriados que os personagens assistem são dos anos 40 ou 50) mas todas essas influências são absorvidas de maneira criativa e tornam o discurso do diretor original e atual, num diálogo constante com elementos básicos da cultura e das estruturas clássicas do cinema.
Em diversos momentos do filme, Mitchell usa movimentos de câmera construídos em panorâmicas virulentas, que fazem com que a câmera se mova circularmente de maneira desconcertante pelos espaços e cenários, girando desenfreada – mas lentamente – em movimentos repetidos de 360 graus distorcendo a nossa percepção desses espaços, colocando todo o quadro em desordem sensorial até parar e reenquadrar personagens e ações, reorganizando o quadro, e nos trazer de volta à narrativa, desconcertados, com a sensação nauseante do caos e do pavor, da ausência de controle diante de uma ameaça indescritível que contamina tudo o que vemos na tela, que condena os personagens, os persegue sem eles terem como se livrar, para onde escapar. Nem os personagens, nem o espectador, têm como se proteger. Mitchell mexe com instintos básicos, primais, com o pavor mais reprimido de seus tipos e pela construção narrativa e por meio de uma encenação primorosa passa isso de maneira orgânica para quem assiste. O cinema de horror atingindo sua potência máxima de interação com o espectador.
Essas panorâmicas violentas, esses giros em círculo desenfreados de câmera que terminam por reenquadrar personagens e situações dramáticas são uma referência direta a circularidade narrativa que conduz o filme. Os personagens estão em constante movimento, ou mesmo prostrados esperando para iniciarem novos movimentos de fuga e deslocamento. Mas tudo o que fazem é moverem-se em círculos: saem, fogem, mas sempre retornam, por mais que se distanciem, não têm como escapar, o movimento é sempre cíclico. O mal os persegue em círculos de tempo. ‘Corrente do Mal’ trabalha com seus personagens presos num tempo suspenso e cíclico, em que eles são retirados à força da normalidade para entrarem numa espiral de desespero e condenação. E Mitchell faz com que nós sejamos sugados para essa espiral, nos envolve, trabalhando nossa sensorialidade, com o horror e a sensação de não existir escapatória para um mal maior e inexplicável, até a cena final, que é uma interrupção, não um desfecho. O mal continuará seguindo, perseguindo.
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