‘Desejo Profano’, de Shohei Imamura (1964)

Por Fernando Oriente

Desejo ProfanoShohei Imamura não é só um dos principais nomes da chamada Nouvelle Vague Japonesa, ele é um dos maiores cineastas da história. Com uma filmografia que começa no final dos anos 1950 e termina no início dos anos 2000 (ele morreu em 2006 aos 79 anos), Imamura é um dos cineastas mais viscerais, intensos, radicais e originais que o cinema já teve. Filmou inúmeras obras-primas e, mesmo sendo dificílimo escolher um de seus filmes como o melhor, ou mesmo o principal, essa crítica aborda uma de suas realizações seminais para discorrer um pouco sobre cinema. Esse texto é sobre ‘Desejo Profano’, lançado em 1964 e um dos melhores filmes já realizados. Essa introdução, cheia de elogios e adjetivos não se trata de exagero e sim de enfatizar o quanto Shohei Imamura é um cineasta monumental. Sem mais.

‘Desejo Profano’ traz características comuns na obra de Imamura: a maestria da mise-en-scéne, a precisão e a beleza das composições de quadro, os mecanismos complexos de trabalhar a narrativa aliados a temas comuns a seus filmes: o sofrimento intenso da mulher, o sexo desesperado como jogo de dominação, o prazer associado à dor, a ambição humana como motor das ações dos indivíduos, o mudo em desordem, os tipos marginalizados na sociedade, relações íntimas pautadas pela violência (psicológica e física) e pela crueldade, o lado animalesco, abjeto e brutal do homem e a ácida crítica as estruturas de funcionamento da sociedade japonesa a partir do pós-guerra, período de crescimento capitalista, ocidentalização dos costumes e anulação das subjetividades em prol do desenvolvimento da nação. Sem contar os traumas e humilhações reprimidos pelos japoneses após a derrota na Segunda Guerra e os efeitos da carnificina que matou milhares de japoneses e terminou com a explosão de duas bombas atômicas em cidades nipônicas.

O filme é centrado em Sadako, uma mulher que vive em um casamento onde é oprimida pelo marido, não reconhecida pela família dele e que ainda carrega a culpa que lhe é imposta pelo fato de sua avó ter sido amante do avô do marido. Sadako foi criada pela família do marido como empregada da casa, tem um filho que não é registrado em seu nome e não é considerada legalmente um membro da família. Ela é uma pária, que carrega a maldição dos atos da avó e tem sua subjetividade constantemente anulada ou massacrada pelas pessoas mais próximas a ela. Mas Sadako é uma mulher cheia de desejos e pulsões reprimidas, Imamura nos apresenta uma personagem que deslocada em seu papel que lhe é imposto pela sociedade, mas que não toma nenhuma ação por medo, culpa pelos atos de seus antepassados e por ser mulher em uma sociedade extremamente machista e, ainda por cima, ser considera socialmente inferior, uma reles empregada. As condições de Sadako são comentários precisos de Imamura sobre o funcionamento da sociedade japonesa, com sua misoginia, seu preconceito de classes e seu moralismo hipócrita.

Logo no início do filme, um jovem invade a casa de Sadako numa noite em que estava sozinha. Ele entra para roubar, mas acabada violentando-a. A cena é de uma intensidade brutal, com ângulos fechados, uso constante de movimentos vertiginosos de câmera, movimentação caótica dentro do quadro, um destaque dramático nos primeiros planos filmados em closes radicais e um constante jogo de luzes e sombras. Imamura faz da cena um embate físico violento que culmina na entrega de Sadako a seu abusador, mas não uma entrega simples: o que era uma briga entre uma mulher e um homem torna-se uma cena de sexo abusiva em que ao ser possuída pelo agressor, Sadako acaba por se entregar a um prazer reprimido. Existe uma volúpia no corpo dela, em suas ações, gestos e nas expressões de seu rosto que nada mais é do que um misto de dor e desejo, ela é subjugada pela força, pela violência, mas desse processo surge uma mulher sobrepujada que se atira num processo de liberação do gozo que aflora pela dor, pela humilhação. Imamura subverte toda uma questão moral nessa cena e faz com que sua protagonista, num momento de agressão execrável, se torne, ao ser vítima de um crime abjeto, uma mulher sexualmente ativa. É como se toda a repressão sexual e subjetiva de Sadako explodisse num gozo que só é possível vindo de um gesto de violência extrema, dominação humilhante e entrega forçada.

Desejo Profano1O abusador de Sadako volta a persegui-la, invade sua casa novamente e a violenta mais uma vez. A cada novo encontro entre os dois (que passam a ser fora da casa), Sadako se entrega ao sexo bruto, sempre lutando, sempre após embates físicos, mas com cada vez menos resistência e seu prazer torna-se cada vez maior. As cenas de sexo entre os dois são sempre filmadas com alta dose de tensão, numa encenação que prioriza os embates físicos, os choques entre os corpos e o prazer ao mesmo tempo intenso e explosivo de Sadako ao atingir um gozo reprimido há anos, que só pode vir à tona nesse processo cruel de entrega forçada. É o gozo que se torna mais intenso pela humilhação, pela dor e pela culpa. Para Imamura, é do grotesco, da violência, da subversão moral que o sujeito se auto-determina, entra em contado e explora seus desejos reprimidos. Sadako só é uma mulher sexualmente ativa por meio da violência e da dominação.

Por outro lado, o marido de Sadako, um funcionário de uma biblioteca pública (um homem fraco e asmático) mantém uma amante obcecada por ele, disposta a tudo para tê-lo ao seu lado. Essa outra mulher também se joga num processo de humilhação para atingir seus desejos. Para Imamura, mulher é a vítima principal das estruturas que aniquilam a individualidade na sociedade. Não tem direito a voz, não pode agir, não é dona de suas vontades. A humilhação e subjeção da mulher é um dos principais elementos do discurso de Imamura para expor uma sociedade movida pela hierarquização de gênero e classe, totalmente sectária e que destrói individualidades por meio de códigos morais hipócritas e regras de conduta reacionárias e excludentes. A mulher funciona para Imamura como uma metáfora do Japão do pós-guerra: entregue, humilhado e subjugado ao ocidente e ao capitalismo e a ganância, a coisificação do ser humano e o consumismo que ele traz.

De volta a ‘Desejo Profano’; o envolvimento de Sadako com seu abusador torna-se mais do que uma forma de consumação de seus desejos e obtenção de prazer, ela passa a questionar toda sua vida, toda a repressão emocional e subjetiva de que é vítima. A protagonista passa a pensar em se livrar da vida e das maldições a que estava acostumada, pensa em ter seu filho registrado em seu nome, em fugir com seu abusador para Tóquio, pensa que o que sente por esse homem não é só desejo, mas talvez amor e cogita a se livrar de suas agruras de qualquer maneira, nem que seja pelo suicídio; a morte passa ser elemento de libertação. Dos abusos, violências e agressões é que Sadako passa a tomar consciência de si e do mundo a sua volta, a planejar saídas para o que antes não via solução. Aqui temos um mais um elemento típico de Imamura, da abjeção surge a oportunidade de libertação, a esperança e a lucidez vem da dor e do sofrimento. É por meio desses paradoxos que Imamura se aprofunda nas características psicológicas de seus personagens e é a partir deles que o diretor vai imprimindo texturas e complexidade aos seus tipos.

O ser humano só é livre, só toma as rédeas de sua vida, só se auto-determina e consuma seus desejos por meio de uma entrega a subversão da moral, a negação dos princípios ditos éticos. É na corrupção do caráter, na traição, no crime ou mesmo na morte que o indivíduo pode se aproximar da plenitude existencial, mas para Imamura ela nunca chega por completo, as forças de opressão serão sempre maiores. O mais próximo que se pode atingir dessa plenitude existencial são em momentos de fuga, em pequenas ações, breves instantes de prazer e conquistas fugazes. Imamura filma uma sociedade infame que beira à loucura em um caminho para caos e a autodestruição.

Da relação degenerada entre Sadako e seu abusador/amante Imamura passa a se aprofundar no personagem do rapaz, um infeliz que perdeu o pai na guerra e viu a mãe se prostituir para criá-lo e ainda por cima sofre de uma grave doença no coração que pode matá-lo a qualquer momento. Mas o diretor não poupa ninguém, não tem pena de seus personagens, não existe nenhum tipo bom, puro ou nobre. Imamura não faz julgamentos morais, apenas mostra o ser humano como corrompido e incapaz. Todos são vis, frágeis, agressivos, opressores ou vítimas. O abusador de Sadako nada mais é do que um fraco, um ladrão e estuprador que busca desculpas para seus crimes para tentar ser menos infeliz, um homem que abusa das abjeções da misoginia para fugir de seus tormentos. Após uma série de conflitos violentos, do desespero, das dúvidas, dos medos, da fraqueza, da incapacidade de seguir seus planos e intenções que movem todos os personagens de ‘Desejo Profano’, Imamura fecha o filme com um cínico e frágil processo de empoderamento de Sadako, que consegue pequenas conquistas, mas que a manterão sempre longe de uma completude existencial e com sua subjetividade constantemente reprimida. Os alentos que Imamura dá a seus tipos são vislumbres de autodeterminação, eles nunca escaparão da condenação, do anulamento e dos sofrimentos a que estão marcados.

Shohei Imamura discute todas essas questões por meio de uma mise-en-scéne primorosa que pulsa energia e vigor. O diretor é frontal, constrói o quadro para explorar ao máximo as intensidades e a fúria dramática de seus planos e deixar tudo na superfície da tela, na cara do espectador. Imamura compõe o quadro em sua totalidade, usa o scope como poucos, abusa das ações, dos elementos dramáticos e da presença dos personagens nas bordas dos quadros, cria conflitos entre os primeiros planos – filmados em closes radicais e ampliados pelo uso das distorções de lentes como a grande angular – e os planos de fundo – trabalhados com o esmero em que usa a profundidade de campo e suas potências dentro da janela em scope. Imamura explora ao máximo os movimento dentro do quadro e os contatos físicos entre os personagens, mexe a câmera com vigor, com movimentos intensos e bruscos, travellings com a câmera na mão e intercala tudo isso com enquadramentos inusitados em que posiciona a câmera e usa as possibilidades de captação de diversos tipos de lente para criar distorções que ampliam a sensação de desordem dramática e a relação caótica entre os tipos, os objetos e os ambientes na tela.

'Desejo Profano'Suas narrativas são fragmentadas, repletas de elipses bruscas, de digressões e flashbacks, de pensamentos dos personagens que surgem como falas em off, de momentos oníricos, de imagens congeladas sobrepostas às falas, de uma evolução dramática baseada na autonomia da significação de cada plano em relação ao todo narrativo. Imamura busca muito mais o sensorial e a força das imagens e das ações dentro de cada sequência do que uma unidade de evolução narrativa clássica. Imamura faz um cinema da intensidade, filma e constrói suas imagens com fúria e transforma tudo em um discurso ácido e direto potencializado pela força imagética de suas composições.

Imamura recria o caos do real e expõe suas entranhas como se o rasgasse a faca através das pulsões que constrói por meio da decupagem, da mise-en-scéne, da evolução narrativa, das modulações dramáticas das cenas e da montagem. O crítico e cineasta Jairo Ferreira escreveu uma das mais interessantes e originais análises sobre sua obra: “No cinema de Imamura apenas conta a energia que comanda a sobrevivência. Ele tem os pés em terra firme. É um desmistificador. Seus personagens dão o máximo e não alcançam o mínimo. É a condição humana. É a chama que não se apaga. São as cinzas fornecendo energia para uma nova abertura, onde o pesadelo será dilacerado, o absurdo elucidado, o cotidiano compreendido.”

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