‘Party Girl’, de Marie Amachoukeli, Claire Burger e Samuel Theis

Por Fernando Oriente

Party GirlÉ raro em um primeiro longa que cineastas acertem de maneira contundente na junção correta entre forma e matéria, que consigam que discurso e narrativa atinjam pontos de densidade sem cair em maneirismos, emulações de alguns estilos de cinema já consagrados ou em muletas estéticas e narrativas. Marie Amachoukeli, Claire Burger e Samuel Theis (os três diretores que co-assinam a realização do filme) conseguem esse feito em ‘Party Girl, longa de 2014 e uma das boas estreias do ano em nossos cinemas. Apesar de certa irregularidade (presente em raros momentos em que algumas situações dramáticas poderiam ser exploradas de maneira mais longa e elaboradas, mas que não prejudicada em nada o desenvolvimento da obra), o longa de estreia do trio de realizadores resulta em um filme forte, com momentos realmente impactantes e uma relação muito sólida entre a câmera e a protagonista Angélique. ‘Party Girl’ é um filme totalmente voltado a sua protagonista, ao que ela sente, ao que ela carrega de seu passado (o que a coloca em um constante limbo existencial diante aos fatos novos que a envolvem no presente) e a maneira como Angélique se tornou, com seus mais de 60 anos de vida, uma pessoa cética, que procura esconder sua melancolia em uma rotina de constante movimento, cercado pelos espaços e as pessoas que a mantém segura dos receios de uma vida que ela não sabe como viver fora de todos os códigos e maneiras de defesa que encontrou para se proteger daquilo que possa ameaçar as redomas de auto-proteção que ela ergueu em torno si ao longo dos anos.

A encenação de Amachoukeli, Burger e Theis é toda baseada em uma decupagem ágil, planos curtos, pequenas e constantes elipses, enquadramentos fechados e uma câmera ágil, na mão. O trabalho de câmera é notável, mesmo em constante movimento – movimento que também está presente o tempo todo dentro do quadro – a câmera dos diretores sabe exatamente por onde se deslocar, quais personagens procurar, quais ações ressaltar. É quase sempre Angélique que a câmera procura, sejam seus gestos e, principalmente seu rosto, seus olhares e a variação de sentimentos que ela exprime por meio desses olhares.

Angélique trabalhou a vida toda em cabarés e mesmo com mais de 60 anos ainda vive e trabalha em um, na fronteira entre França e Alemanha. Nesse ambiente ela se sente segura, embora não exista uma simplicidade na construção de sua personalidade, os diretores deixam sempre evidente que se trata de uma mulher melancólica, que embora sinta certa segurança em estar dentro do cabaré, em beber e sair com as amigas e colegas pela cidadezinha onde mora, carrega dentro de si uma dor reprimida pelas frustrações e perdas que a vida lhe impôs. O filme não cai em sentimentalismos, em situações de dramas piegas, não perde tempo explicando ou revelando as tristezas e dores do passado de sua protagonista. Sentimos o peso daquilo que Angélique viveu apenas por meio de seus olhares, seus gestos, seus silêncios, algumas de suas falas, seus sorrisos reprimidos. Sua entrega à bebida, as danças, ao movimento constante que preenchem seus dias e suas noites.

A virada dramática de ‘Party Girl’ acontece quando Angélique aceita casar com um de seus clientes mais fiéis, Michel, um homem da sua idade, que já não quer mais se relacionar com ela no cabaré, que sonha construir uma vida de companheirismo dentro de padrões mais normais segundo os códigos sociais. Aposentado, dono de uma casa confortável, ele quer construir ao lado dela uma vida serena, pacata, um refúgio de tranquilidade para alguém que se sente velho demais para manter uma rotina de noitadas, bebedeiras, cabarés; alguém que idealiza em Angélique uma parceira, uma mulher que supra sua solidão em meio ao pouco de conforto que conquistou ao longo da vida. Michel é carinhoso, compreensivo, dedicado. Trata Angélique com respeito, sabe e aceita todo seu passado, mas quer construir algo novo, uma situação em que a rotina em que ela está acostumada a viver (sobreviver) não terá mais espaço.

Mesmo reticente Angélique aceita o casamento, com isso se aproxima de seus filhos e netos mais próximos, retoma o contato com seu outro filho que mora em Paris e parte em busca de uma reaproximação com sua filha caçula, que lhe foi tirada pela justiça ainda criança e entregue a uma família adotiva. Todas essas novas relações que surgem no filme, a relação da protagonista com filhos e netos, a reaproximação da filha caçula que ela não vê há anos, o convívio do casal com seus amigos (tanto os de Michel quanto as de Angélique) e a maneira como Michel participa dessas novas convivências na vida de Angélique são trabalhadas com complexidade e naturalidade por Amachoukeli, Burger e Theis, que fazem desses encontros, dessas descobertas e dos novos conflitos dramáticos que surgem junto com os novos personagens em cena momentos dramaticamente consistentes em que as texturas das relações, a evolução narrativa e as camadas dramáticas dos personagens em constante interação sejam expostas ao espectador de maneira objetiva e autêntica. Estamos diante de um filme que trabalha bem cada personagem, cada relação entre eles, que constrói os vínculos entre os tipos de maneira sincera, que deixa de maneira sóbria e consciente muitas tensões e dramas apenas sugeridas ou restritas ao extracampo, que ressalta os aspectos e limitações humanos de pessoas comuns em meio a situações bem construídas dentro de um naturalismo vigoroso no interior de situações banais e corriqueiras.

'Party Girl'Mas o centro do filme é Angélique, seus sentimentos, suas limitações, sua melancolia reprimida, sua tristeza suspensa. Por mais tentadora que a nova vida pareça, ela, embora se esforce e reconheça o valor daqueles que a cercam, parece não conseguir de adaptar ao lado normatizante da sociedade. Sabemos que ela é uma sobrevivente, que passou décadas construindo pequenos mecanismos de defesa para uma vida de limitações e renúncias. Ela nunca irá pertencer ao mundo das pessoas normais. Ela é uma funcionária de cabaré, ela encontra segurança na noite, em casas noturnas com suas luzes artificiais, seus encontros fugazes, nos porres e na amizade com mulheres que são como ela, marginalizadas do mundo pequeno burguês e suas migalhas de conforto e alegria institucionalizada.

Angélique é fruto do meio em que sempre viveu, das marcas desse meio e do estilo de vida que isso impôs a ela, que fez com que encontrasse formas precárias de segurança, proteção e autodeterminação como mulher marginalizada, que aprendeu a aceitar todas as renúncias a que foi forçada, que se sente muito mais viva no movimento constante, nas bebedeiras, nos ambientes de cabaré, na alienação discreta de um dia a dia sem regras, na companhia de suas pares. Ela sabe que a solidão em que vive é o que a vida reservou para ela. São tantas marcas, tanto foi vivido por essa mulher, que qualquer forma de normalidade, de aproximação e troca mais intensa com outro ser humano a faz mais consciente de sua melancólica e de sua vida de sofrimentos. É mais seguro e cômodo continuar sua rotina de instantes fugazes, relações distantes. Ela precisa dessa solidão discreta, não existe mais tempo para que fuja daquilo que a sua existência forjou para ela.

Isso tudo, que não é pouco, nos é passado de maneira sólida, ágil, reflexiva, com força e intensidade por Amachoukeli, Burger e Theis, tanto pelas escolhas corretas no desenvolvimento narrativo, na construção e evolução dos personagens e suas relações, nas modulações dramáticas, na edição vigorosa (com seus cortes abruptos e secos) e num trabalho ótimo de câmera, totalmente ancorado numa belíssima decupagem. Belo filme, que ainda reserva uma conclusão com direito aos lindos planos, cheios de significação, que fecham o filme.

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