Por Fernando Oriente
A partir das explanações de Julio Bressane sobre seu cinema e, particularmente, a respeito de seu filme ‘A Erva do Rato’ (2008), é interessante a proposição de comentários sobre a obra do mais importante cineasta brasileiro vivo. Bressane diz que não tem explicações sobre o que seus longas retratam; afirma não saber exatamente o que cada um de seus filmes diz de específico. Dentro de sua complexa abordagem das imagens e dos mecanismos do seu cinema, Bressane apenas questiona, aponta caminhos e exalta a procura da significação. Sua obra abre sempre possibilidades para interpretações, nunca para explicações. Julio Bressane encara o cinema, seus filmes, como uma travessia, por meio deles (os filmes) ele atravessa diversas formas de manifestações artísticas e distintas disciplinas do saber.
Suas imagens são dialéticas em essência; na composição dos quadros, na desenvolvimento de tudo aquilo que seus planos capturam, dentro e fora de campo, nas modulações dramáticas e nas variações internas e externas das ações e intenções de seus personagens. Bressane usa a luz de forma primorosa, é ela que articula a transformação do que está em cena. É essa luz transitória, que promove desenhos e revela o invisível dentro dos enquadramentos, que permite a constante presença sensorial do desejo de tornar-se, do desejo de vir a ser inerente das essências de suas imagens. As mudanças e nuances dessa luz compõem o devir do quadro que nada mais é do que o devir dos planos, o devir de seu filmes. Bressane imprime a presença material da luz em cada um dos fotogramas de seus filmes.
No cinema de Bressane as imagens assumem um caráter significante mais amplo, tornam-se significantes em si a partir do momento que se aglutinam em sequências digressivas em relação à narrativa como um todo. O diretor desprende suas imagens da continuidade diegética clássica. Elas não exercem função narrativa clara e contemplam, em um processo de continuidade e ruptura, bem como na relação entre o dentro e o fora de quadro, uma constante pulsão em dissolverem-se em outros elementos e significados através do tempo. A própria narrativa se dissolve em ações desarticuladas no peso do tempo.
E o tempo em Bressane é sempre heterogêneo. Cada plano contém diferentes tempos, já que no tempo presente coexiste o peso do passado e as incertezas e possibilidades do futuro. É a definição de Gilles Deleuze da imagem cristal, aquela que refrata a realidade, multiplicando-a. Na metáfora deleuziana, a imagem atual convive com uma imagem virtual, sentida pelo espectador, em que o passado está no presente. E nesse tempo heterogêneo o que formula as tensões do quadro é o conflito entre essas imagens (esses tempos). Esse conflito, tão bem explorado por Bressane, é a essência de sua dialética cinematográfica. Existem diversas questões que se formulam e muitas possibilidades de interpretação que se confrontam. São os fluxos do tempo que fazem do cinema de Bressane um acontecimento, não uma representação. O diretor não reproduz a realidade, ele a cria. Seus filmes podem ser vistos, ainda sob a ótica de Deleuze, como “lâminas de tempo”, recortes múltiplos e contraditórios desse mesmo tempo heterogêneo. Por meio desse processo, Bressane transforma o aparentemente banal em extraordinário, o comunal em descomunal.
Há no cinema de Julio Bressane um constante movimento de transformação caracterizado pelo encontro entre percepção e matéria. Ser e matéria não são jamais estáveis e é o devir dos planos (principalmente pelas potências das modulações da luz) que embala esse movimento constante de transformação. A percepção do tempo heterogêneo se dá por meio dessa luz e desse movimento sensorial que constitui a base da mise-en-scéne de Bressane. Dentro de uma concepção brechtiana, Bressane acentua a autonomia dos planos em que sua construção estética se solidifica. Seus personagens agem dentro de pulsões específicas que são acionadas pela palavra, pela percepção ótica, pelos estímulos cerebrais, pelo texto, pelas ações ou mesmo pelo tato. Estão sempre em busca de algo, sejam respostas, sejam sentidos. Em suma, estão sempre sendo conduzidos pelo desenrolar das imagens-tempo.
Novamente voltando a Deleuze, nota-se claramente em Bressane, por meio dessa rigorosa construção estética, “um punhado de tempo em estado puro (mas heterogêneo) que emerge na superfície da tela”. O tempo deixa de ser derivado da continuidade narrativa para aparecer (e ser sentido pelo espectador) em si mesmo. Em seus filmes, Bressane fatia fenômenos perceptivos e produz novas (mas transitórias) totalidades. Produz, de forma dispersa e aleatória, distintas situações óptico-sonoras de causalidade incerta, ou mesmo ausente, em que os ganchos de continuidade dramático-narrativos foram rompidos e se propõe ao espectador como um processo criativo multifacetado, que pode levar a distintas representações e significados.
Sem de forma alguma explicar, mas tentando interpretar, vamos a ‘A Erva do Rato’, lançado pelo diretor em 2008. No longa (concebido dentro de um rigor que chega a ser intencionalmente esquemático), o casal protagonista vive uma espécie se suspensão temporal em que os eventos mínimos se arrastam. Em um primeiro momento o homem (Selton Mello) dita uma série de informações contidas em livros técnicos que são anotadas metodicamente pela mulher (Alessandra Negrini) em cadernos de fichamento. Esse processo (a fala e a audição) pode ser visto como uma afirmação e posterior interiorização de conceitos externos que, ao serem lidos mecanicamente por ele e anotados por ela, disparam outras pulsões que vão colocar o casal em um jogo de captura e exposição de sentimentos e desejos mais profundos. Ao fotografá-la em posições sensuais e reveladoras (mas também extenuantes e desconfortáveis), ele está capturando e apreendendo seu interior. O desejo sexual latente da mulher é exposto por meio de suas posições reveladoras, em que se abre ao olhar do homem. Esse, com uma câmera fotográfica, extrai dela partículas de sua essência ao mesmo tempo em que se excita (interiormente) com a visão de seu sexo exposto. Ao se abrir, ela faz com que sua sexualidade venha à tona; ela se desnuda e se desprotege. Com isso permite que algo “impuro”, ou mesmo abjeto, venha lhe penetrar o corpo e a alma. Esse algo “sujo”, desestabilizador de uma modus de vida pequeno-burguês, surge como um rato. O animal, considerado repugnante pela maioria das pessoas higiênicas e civilizadas, vai provocar o ciúme e a ira do homem, ao mesmo tempo em que vai acionar a pulsão sexual e a libido da mulher. O rato, e o que ele representa, não é algo meramente ameaçador, mas sim a materialização e a possibilidade de consolidação de desejos passionais e instintos recalcados do casal.
É interessante, mesmo partindo de uma análise simplificadora e pouco extensa, notar como os elementos com que Julio Bressane trabalha podem assumir diferentes processos significantes que permitem diversas capturas e interpretações de significação nos espectadores de seus filmes. Para atingir tal nível de complexidade, o diretor solidifica seu discurso cinematográfico em planos rigorosamente construídos, em que compõe o quadro em todos os seus detalhes. Essa composição, que Bressane chama de montagem do quadro e compara ao processo criativo de um pintor, é a essência da dialética de seu cinema, de sua arte de tempos heterogêneos.