Por Fernando Oriente
O média de Gustavo Vinagre é um desses filmes de difícil classificação. Sua originalidade e inegável força vêm da transformação em matéria cinematográfica da própria estrutura dramática, das situações recriadas, da encenação direta e extremamente frontal e dos discursos enfáticos em relação às ambiguidades do lidar com o desejo (e com a superação dos interditos sexuais) e à precariedade do pertencimento do sujeito em um mundo atual de difícil diagnóstico. Transformação essa no sentido de devir, de vir a ser. ‘Nova Dubai’ é uma obra de resistência, um filme político ao extremo e, mais que tudo, um grande gesto. Gesto de confronto, de negação de um status quo homogenizador. Um gesto de resistência que procura de maneira direta a auto-afirmação dos sujeitos por meio de seus atos, suas pulsões e suas ações, bem como por meio de suas incompletudes, suas dores e pelas potências de seus corpos.
Gustavo Vinagre filma algumas das melhores e mais intensas cenas de sexo do cinema recente. De maneira frontal e agressiva, não esconde nada, é explícito. O sexo é afirmação ao mesmo tempo em que é confronto e dominação. Trepadas que sempre procuram o tesão e o gozo enérgico, que paradoxalmente subjugam e reafirmam normas ao mesmo tempo em que expõem a força da alma dos personagens por meio das explosões de seus corpos, dos jorros de seus fluídos, pelo ato de possuir e deixar ser possuído, pelo desejo sempre pronto para ser realizado. Sexo que é consensual e também ato de violência. Sexo que é tanto mostrado como narrado. Diversas vezes vemos personagens descrevendo seus atos sexuais detalhadamente, seja um para o outro ou mesmo diretamente para a câmera.
‘Nova Dubai’ é um filme em que personagens ocupam espaços, andam pelas ruas de uma cidade em acelerada transformação, fruto de uma especulação imobiliária que ergue em ritmo acelerado prédios, torres, conjuntos de edifícios e escritórios que violentam a paisagem e anulam as identidades urbanas e arquitetônicas. Um capitalismo imobiliário que cada vez mais toma conta de todos os cantos do país. Os personagens andam por construções, passam em frentes novos e cafonas prédios envidraçados em estilo de torres futuristas, conversam e trepam com operários da construção civil, transam entre eles em canteiros de obras e terrenos lacrados para futuras construções. Ocupar (e trepar) é resistir, mesmo que essa resistência seja condenada ao fracasso. ‘Nova Dubai’, por mais vigor que tenha em seus personagens e ações, é um filme melancólico, que indica que o gesto de resistência de seus protagonistas será aniquilado por forças muito mais destrutivas. É um filme sobre a inexorabilidade da morte que interrompe o desejo de ação e pensamento.
O filme de Gustavo Vinagre busca sempre os personagens, suas ações, suas histórias, o que vivem e viveram. Depoimentos são dados diretamente para câmera, o passado é lembrado entre recordações melancólicas, desejos não realizados e violências sofridas. Os tipos conversam constantemente, se desnudam em palavras. Tudo é falado de maneira natural e direta. A vida, as histórias e a própria existência dos personagens são matéria do filme por meio da força do texto falado, das descrições proferidas em frente à câmera e entre os personagens. Câmera essa que é presença física central em ‘Nova Dubai’, que não deixa de registrar nada, que tem interesse por tudo. A decupagem prioriza sempre a relação dialética entre os tipos humanos e os cenários, os deslocamentos do humano em meio a um espaço em degeneração identitária e simbólica.
O filme de Gustavo tem uma força visceral que parece ter vida própria. ‘Nova Dubai’ chega ao espectador como gesto bruto, necessário, natural e existencial de seu diretor. É a visão de mundo, o discurso do realizador traduzido com uma desafetação desconcertante em imagens, diálogos e movimentos. A mise-en-scéne de Gustavo Vinagre é uma extensão espontânea desse seu discurso, vai ao caminho oposto de muitos filmes atuais que seguem fórmulas e tendências pré-estabelecidas. ‘Nova Dubai’ evita o efeito raso dos afetos como inércia, dos deslocamentos como recursos vazios e meramente estatizantes. Tudo no filme tem peso, força e singularidade.
A sinceridade desconcertante e a brutalidade das cenas compostas por Gustavo são a força propulsora de um filme que busca a verdade imperfeita do discurso e das imagens, a franqueza da forma; o gesto em suas potências máximas. Gestos encenados, e, mais ainda, o gesto político maior de filmar.