Por Fernando Oriente
‘É Tudo Mentira’, do Coletivo No Passaran! (Brasil, 2014)
Esse ano surgiram os primeiros filmes que tentam traduzir um pouco o que foram os protestos de rua no Brasil em 2013, principalmente os de junho. O melhor resultado foi alcançado pelo filme coletivo ‘Rio em Chamas’ (leia crítica aqui), que mesmo com suas naturais irregularidades entre os diversos segmentos, traz um forte conjunto de imagens, ficções e depoimentos que procuram levantar questões e propor um debate sobre o que aconteceu no país no ano passado, sem chegar a conclusões apressadas, ao mesmo tempo em quecoloca em cena as ações criminosas da PM. Por outro lado, tivemos o fraquíssimo ‘Junho – O Mês que Abalou o Brasil’, de João Wainer, em que o pior da estética publicitária, do tom oficial de grande imprensa e da visão elitista e classistapoluem o debate, tornam as conclusões rasas e manipulam os fatos para tendenciosas conclusões que buscam vilanizar e condenar manifestantes, atacar o Governo Federal ao mesmo tempo em que aliviam para a polícia militar e para os governos estaduais, principalmente o do PSDB em São Paulo.
‘É Tudo Mentira’ não tem as texturas e a dialética de ‘Rio em Chamas’, que ao aliar imagens dos protestos e das repressões policiais a cenas de ficção e depoimentos, tem um poder de questionamento e de exposição interpretativa mais profundo do que foram as manifestações de 2013. Mas por outro lado, o filme do coletivo No Passaran! tem uma força enorme na variedade de imagens e registros (nas mais diferentes formas de captação e em diversas resoluções de imagens, indo do HD às câmeras de celular e transmissões em streaming) dos protestos, da violência dos policiais, da intensidade das massas nas ruas e do efeito catártico que os protestos atingiram.
Logicamente, os motivos, as intensões e as forças propulsoras das manifestações de 2013 foram as mais variadas, é impossível se chegar a consensos sobre uma ou outra reinvindicação principal. O que temos certeza é que os protestos começaram graças a uma intensa mobilização popular contra o aumento das passagens no transporte público e seguiram caminhos diversos, tendo causas urgentes como o direito à cidade, a democratização dos espaços, o fim da violência policial, a desmilitarização das polícias, os direitos LGBT, a igualdade de gênero exigida pelas mulheres, o direito à moradia por parte dos movimentos dos trabalhadores sem teto e o rechaçamentodas remoções forçadas e da ocupação física e simbólica do país pela FIFA, o COI e seus patrocinadores.
Em meio a todas essas causas, surgiram forças conservadoras que tentaram se aproveitar do momento de ebulição social para impor pautas capengas com base em moralismos e ataques ao Governo Federal, numa tentativa de impor mudanças no cenário eleitoral de 2014.
De volta a ‘É Tudo Mentira’. Além da imensa variedade de imagens e dos detalhes que essas imagens revelam, o impacto do filme vem primordialmente de uma edição vertiginosa, criativa e extremamente funcional, que funde sequências em ritmo frenético e acabam por envolver o espectador em meio à força dessas imagens e das ações que elas expõem de maneira frontal. ‘É Tudo Mentira’ é um filme manifesto, e como tal, naturalmente oferece um discurso em defesa dos protestos.
‘É Tudo Mentira’ também aponta o caráter de espetacularização que os protestos têm, um fator que acaba por entorpecer em uma espécie de êxtase os manifestantes e por transformar os atos nas ruas em verdadeiros happenings. Por outro lado, essa construção discursiva no interior do filme tende, em alguns momentos, a tornar as imagens, a matéria do longa e os próprios protestos em fetiche. Por vezes o filme se ancora demais nas músicas, no aspecto romantizado das ações espetacularazidas dos manifestantes e no ritmo intenso e entorpecente da edição. A sedução das imagens e dos sons aliados aos ideais nobres daqueles que tomam as ruas em nome de suas causas e com isso enfrentam uma cruel e fascista repressão da polícia e das forças de segurança é um elemento poderoso demais e, se usado sem freios de autorreflexão, questionamentos e proposições de conflitos, diluem as capacidades e as texturas de análise e debates do material central do filme.
Se por lado esse aspecto o longa fica refém do fetichismo, o papel dos grandes veículos de imprensa na manipulação dos fatos e das imagens é tratado de maneira preciosa. Várias cenas de telejornais da Globo, Globonews, Record e Bandeirantes são inseridos e mostram como esses veículos ultrapassam o patético em abordagens bisonhas dos manifestantes (taxados o tempo todo de vândalos e baderneiros), tentam desesperadamente deslegitimar as causas dos protestos ao mesmo tempo que defendem a polícia e os governos estaduais com falsas acusações aos manifestantes, mentiras e discursos oficiais de governadores (mais especificamente Geraldo Alckmin e Sergio Cabral).
‘É Tudo Mentira’ expõe o jornalismo mal feito, as manipulações mal intencionadas das grandes redes de TV (principalmente a Globo) e o quão ridículo é o discurso preconceituoso e reacionário de colunistas como Arnaldo Jabor, que tem duas de suas falas no Jornal da Globo, com uma distância de apenas alguns dias de uma para a outra, montadas paralelamente e que desmascaram a incoerência, a canalhice e o quão tendencioso Jabor é. São momentos constrangedores para o ex-cineasta e atual porta voz da moral da classe média desgostosa, mas de imensa diversão para o espectador.
Filmes do Indie Lisboa
Um dos grandes destaques da VI Semana dos Realizadores foi a inclusão de uma seleção de filmes portugueses que estiveram em edições recentes do festival Indie Lisboa, um dos mais conceituados do mundo em termos de cinema independente e contemporâneo. Os filmes exibidos na Semana foram escolhidos pelos próprios curadores do Indie Lisboa.
Foram exibidos no festival carioca filmes como o longa ‘Lacrau’ (foto ao lado), de João Vladimiro, um ensaio simples e sofisticado que não segue nenhum preceito narrativo para registrar o sublime por meio de imagens e sons de paisagens e ambientes portugueses, do interior de país (tanto em uma vila, com seus moradores e suas pequenas ações, quanto em espaços abertos como florestas, rios e montanhas)aos cenários urbanos como o subúrbio de cidades, com suas construções em ruínas, sua arquitetura envelhecida e a presença espectral de seus moradores anônimos. Vladimiro registra tudo por meio de uma rigorosa construção de planos, variações constantes na captação da luz, mudanças na janela de exibição dentro da evolução do filme e constantes contrastes entre o foco e a granulação das imagens. Um filme que não perde a força em nenhum instante e mantém os sentidos do espectador sempre em estado de provocação entre a simplicidade e a beleza quase metafísica de suas cenas.
Outro filme português de impacto inegável é o média ‘Cama de Gato’, ficção dirigida por Filipa Reis e João Guerra. O filme faz uma abordagem frontal em estilo cinema direto para construir um realismo intenso, com câmera ágil, muito movimento dentro dos quadros e uma aproximação orgânica dos personagens. Sem apelar para situações abjetas, dramas intoleráveis e exploração de misérias, o filme retrata o cotidiano de adolescentes portugueses que enfrentam a precariedade da vida em um subúrbio pobre de Lisboa. ‘Cama de Gato’ é irregular, muito pela extrema visceralidade dos diretores, que levam a eventuais excessos narrativos, mas tem um tratamento do real próximo ao cinema dos anos 70, aquele de Pialat e Eustache, entre outros.
Outros destaques do Indie Lisboa na VI Semana dos Realizadores foram os três curtas do diretor Gabriel Abrantes (‘Liberdade’, ‘Taprobana’ e ‘Ennui Ennui’). Abrantes é um cineasta original, que trafega entre a sátira, a comédia, o cinema de invenção eo drama como muita competência e segurança. E ainda tivemos um belo e forte curta ‘Rafa’, dirigido por João Salaviza, que mostra claras influências de Pedro Costa, mas sem cair em emulações toscas.