‘Noite’, de Paula Gaitán e ‘A Misteriosa Morte de Pérola’, de Guto Parente na VI Semana dos Realizadores

Por Fernando Oriente

‘A Misteriosa Morte de Pérola’, de Guto Parente. (Brasil, 2014)

A Misteriosa Morte de PérolaO novo filme de Guto Parente é uma imersão claustrofóbica em códigos do terror psicológico por meio de uma manipulação precisa por parte do diretor de elementos básicos do cinema, mais especificamente a construção dos planos, os cortes e um uso primoroso do som, tanto dos ruídos quando dos efeitos e fragmentos musicais da banda sonora, além de um funcional uso das modulações da luz no quadro. ‘A Misteriosa Morte de Pérola’ é um filme que usa as potências do terror e do suspense psicológico para construir um tecido dramático em que a solidão e as saudades são exploradas em seus efeitos mais extremos, como sentimentos perturbadores e destrutivos. A ausência do ser amado e a solidão provocada por uma vida isolada em outro país são transformadas em forças capazes de levar à loucura e a morte.

Parente compõe seu filme basicamente de planos estáticos, em que a composição do quadro, com suas variações de luz e cortes sempre precisos entre as cenas imprimem à mise-en-scène um vigor de onde o diretor extrai as potências da progressão do suspense e dos dramas, dramas esses que são construídos a partir das sensações da protagonista: a jovem Pérola, que se encontra em um país da Europa remoída pelas saudades de sua vida no Brasil e do namorado e pela solidão de sua nova rotina em um ambiente estranho.

O filme se passa quase todo no apartamento em que Pérola mora na Europa. Parente revela os ambientes desse apartamento detalhadamente, explorando os espaços e a relação entre os cômodos, ao mesmo tempo em cria tensões entre o ambiente interno da casa com o extracampo, aquilo que se passa do outro lado das portas e janelas do apartamento, aquilo que o espectador percebe apenas por meio dos sons, da luz e das angústias da protagonista.

As cenas que não são compostas de planos estáticos são as sequências oníricas dos pesadelos de Pérola e as imagens em VHS, tanto aquelas em que as memórias da personagem sobre sua vida no Brasil nos são apresentadas, bem como as que são feitas pelo seu namorado na segunda parte do filme, quando esse chega ao apartamento onde Pérola viveu seus pesadelos, acompanhado de sua câmera de vídeo.

As imagens de VHS são um achado estético do filme, as texturas e imperfeições do vídeo relacionadas com a memória e as saudades de Pérola, bem como as novas imagens que seu namorado grava no apartamento, tentando por meio delas encontra-la novamente, se contrapõem dialeticamente com as cenas gravadas em câmeras digitais modernas de alta resolução e montadas em planos estáticos. Dessa dialética nascem algumas das mais interessantes tensões do filme, em que Parente explora o valor das imagens dentro de um processo de definição das identidades por meio das memórias e a força que o registro visual tem de recriar o mundo e ressignificar os espaços.

Entre as várias referências que Guto Parente usa para fazer de ‘A Misteriosa Morte de Pérola’ um filme rico em camadas de interpretação estão alguns elementos do Romantismo do século 19, sobretudo aquele de escritores como E.T.A. Hoffmann e Lord Byron, principalmente nas questões que envolvem os personagens e seus duplos e a intensidade de uma celebração do amor que se concretiza (apenas) após os tormentos da morte.

‘Noite’, de Paula Gaitán. (Brasil, 2014)

NoiteO novo longa de Paula Gaitán trilha caminhos que a cineasta conhece bem e explora há anos: o ensaio poético por meio de imagens, sons e potências da montagem. Em ‘Noite’, Paula compõe um registro extremamente pessoal da música e seus efeitos e relações com as pessoas nas noites do Rio de Janeiro. Nada no cinema da diretora é óbvio. Paula busca as sensações contidas no poder dos belíssimos planos que constrói, nos choques entre as sequências por meio da força do corte seco, nas capacidades das diferentes texturas de imagem que utiliza e no complexo trabalho de foco que impõem a cada take. Quando ela penetra um universo musical imagético como as noites cariocas, é sempre por meio de sua subjetividade que ela busca tecer seus discursos, captar e transmitir suas próprias sensações desse mundo que registra.

‘Noite’ é composto de planos fechados, em que o que interessa a cineasta são os rostos, as expressões, os corpos, o movimento e o suor daqueles que aparecem na tela. A música condiciona as ações de todos, sejam daqueles que dançam, dos que tocam instrumentos, catam, fazem discotecagens ou apenas observam e escutam as mais variadas melodias. A trilha sonora do filme é composta por diversos gêneros, que vão da música eletrônica ao jazz experimental, da MPB ao rock, do pop ao industrial.

Da mesma forma com que Paula Gaitán trabalha as distorções das imagens, seja pelas aproximações e movimentos bruscos de câmera, seja pela variação das granulações do quadro ou mesmo pela velocidade adulterada das sequências (com uso eficaz de variações de slow, sobreposições de planos em tempos distintos ou mesmo o congelamento das imagens) ela também trabalha o som, basicamente as músicas e os ruídos, dentro de registros distintos, em que as melodias são distorcidas, sobrepostas ou mesmo reduzidas a sons abstratos. Todo esse tecido estético permite a Paula ser subjetiva ao máximo dentro do processo do cinema de poesia que sempre cultivou. ‘Noite’ é um filme em primeiríssima pessoa, em que Paula Gaitán transmite um jorro de sensações visuais e sonoras por meio de um registro sensorial. É um filme que se sente, que trabalha na subjetividade de cada espectador.

Um das principais forças do filme vem do uso precioso que Paula Gaitán faz das luzes artificiais presentes nos clubes, casas de show ou mesmo nas ruas onde pessoas se juntam em função da música. As várias intensidades dessas luzes, os efeitos provocados pela variedade de cores e a relação entre os efeitos artificiais que as modulações das cores impõem às personagens e à própria imagem tornam a experiência estética de ‘Noite’ ainda mais envolvente.

Dos efeitos da música na noite carioca emergem corpos em êxtase, em movimento, em explosões eróticas latentes ou mesmo entorpecidos na inércia sedutora dos sons em meio aos espaços.

 

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