Por Fernando Oriente
‘Sinfonia da Necrópole’, de Juliana Rojas (Brasil, 2014)
Em seu primeiro longa solo, Juliana Rojas mantém várias características que marcaram sua carreira como curta metragista e que também estavam presentes em ‘Trabalhar Cansa’, o belo longa-metragem que ela assina em parceria como Marco Dutra. Mas em ‘Sinfonia da Necrópole’ vemos Juliana caminhar por novos caminhos e introduzir outros elementos em seu cinema.
Juliana sempre trabalhou dentro do registro dos gêneros cinematográficos, mais notadamente o horror e o terror psicológico. Nesse seu novo filme, o que mais chama atenção é a facilidade como a diretora encena com notável competência um filme de forte apelo popular, mas que não abre mão do rigor da construção e as texturas analíticas presentes na mise en scéne. ‘Sinfonia da Necrópole’ traz elementos carregados de comédia, conta com vários números musicais e ainda mantém o clima de suspense e terror psicológico que a cineasta domina tão bem.
A força dessa abordagem popular escolhida por Juliana é sustenta principalmente na construção do protagonista, o aprendiz de coveiro Deodato, um típico personagem do cinema clássico: jovem, simplório, recém-chegado a uma cidade grande vindo do interior, tímido e sensível. Deodato terá, ao longo do filme, a tarefa simbólica de completar sua jornada de iniciação na vida de uma grande metrópole como São Paulo. Ele irá aprender a viver em meio ao caos urbano e sua amplidão desordenada e desumanizadora, sentirá as dificuldades de adaptação ao processo de trabalho e ao ritmo de vida e ainda experimentará o amor, ao se apaixonar por uma colega de trabalho. Um amor (praticamente) não correspondido e constituído dentro dos preceitos clássicos do romantismo, como a admiração crescente e tímida do objeto de desejo e a idealização da mulher amada.
Juliana Rojas transforma o cemitério em que Deodato trabalha e onde se passam quase todas as cenas do filme em um reflexo estetizado de São Paulo. É a metrópole que se reflete na necrópole. Esse recurso permite que várias questões urbanas urgentes sejam inseridas simbolicamente por Juliana em meio aos dramas de Deodato.
A cidade representada, esse simulacro da metrópole que é o cemitério, enfrenta problemas como a desocupação forçada de imóveis (túmulos), a remoção compulsória (dos cadáveres) e a reorganização espacial urbana presente na verticalização dos espaços com a construção de novos túmulos dentro de pequenos “prédios”, que substituirão os antigos jazigos.
Toda essa alegoria é tratada com muita naturalidade e leveza dentro da encenação de Juliana. A mise en scéne é pensada em função dos movimentos evolutivos dos tecidos dramáticos (e cômicos) do filme. Situações de humor ingênuo (mas sempre perspicazes) são intercaladas por diversos números musicais de estilo clássico (em que os personagens dizem suas falas cantando e dançando). Momentos fantásticos em clima de cinema de horror, momentos românticos de sedução e devaneios de amor platônico também fazem parte do leque de gêneros que Julian costura com competência e ainda encontra espaços para tecer comentários sobre a finitude da vida e o conflito eterno entre a atração e o medo presentes na ideia da morte.
‘Sinfonia da Necrópole’ é um filme de encenação mais leve a ágil, algo que a proposta desse longa de Juliana exige. Não vemos a rigidez detalhista de encenação e decupagem presentes no trabalho anterior da diretora, o ótimo curta ‘O Duplo’, mas Juliana Rojas é uma encenadora de mão cheia e, em meio à leveza melancólica de seu novo filme, mostra sempre ótima composição de quadro, belos enquadramentos e elegantes movimentos de câmera.
Seu novo trabalho é apenas a mais recente confirmação do talento de Juliana Rojas. A facilidade como ela circula por gêneros diversos (e o apelo universal que esses gêneros carregam dentro de seus códigos internos), tanto em curta quanto em longa duração, fazem da diretora um nome certo para se esperar com ansiedade por seus novos projetos. Em meio a um momento de impasse da maioria do cinema contemporâneo praticado no país, Juliana é uma das que apresentam soluções criativas, complexas e ainda com sincero e natural apelo popular, que respeita o espectador sem nunca cair em formatos engessados ou vulgaridades.
‘A Vizinhança do Tigre’, de Affonso Uchoa. (Brasil, 2014)
O longa de Affonso Uchoa é um ponto alto do cinema contemporâneo brasileiro. É como se vários elementos característicos desse cinema encontrassem em ‘Vizinhança do Tigre’ sua melhor expressão. A construção coletiva do roteiro e a encenação da vida de jovens da periferia de Contagem por eles mesmos como atores. A busca de uma representação do real por meio da força de uma mise em scéne porosa entre os dramas, os personagens e os espaços das ações, bem como uma preocupação com o que de mais humano e corriqueiro existe na frugalidade do cotidiano, todos esses elementos estão em sintonia no filme. Nada é forçado e nenhum recurso usado pelo diretor segue fórmulas pré-estabelecidas.
‘Vizinhança do Tigre’ alterna cenas longas em que a simples presença dos personagens em cena, seus diálogos, silêncios, brincadeiras e os momentos em que se preocupam com a precariedade da vida que levam atingem um alto grau de encantamento. É a vida e seus pormenores, encenadas com talento por Uchoa, que dão força orgânica ao filme.
O diretor alterna cenas estáticas, em que o a variação da luz pontua o quadro com passagens de câmera ágil, que confere dinâmica as ações sem nunca abrir mão de destacar a força do que vemos em cena. Os gestos, olhares, as expressões de alegria, tristeza e preocupação dos personagens bem como a força das relações que estabelecem um com o outro são ressaltadas pela mise em scéne e potencializadas pelo cuidado como Uchoa constrói a evolução natural das situações.
A ternura que por vezes domina o filme vem da maneira sincera com que o universo do longa é composto. As gírias, o jeito de falar, as roupas dos meninos, as músicas que escutam e cantam, as preocupações com a aparência que cada um carrega traduzem códigos de autoafirmação de pessoas que vivem a margem da sociedade de consumo, mas que por meio de pequenos gestos e gostos, se inserem no mundo com identidade e autenticidade. Tudo isso é matéria central para a composição de Uchoa.
‘Vizinhança do Tigre’ é um filme que da sua aparente simplicidade extraí uma sofisticada concepção do mundo por meio de uma rica expressão cinematográfica e de uma encenação extremamente intensa e bem composta; é um filme político em cada fotograma, faz o espectador cúmplice do universo e das pessoas que retrata, um longa sobre a construção de identidades em meio à precariedade. Um dos grandes filmes do ano.
‘Flutuantes’, de Rodrigo Savastano (Brasil, 2013)
O filme de Savastano é um típico representante do momento de impasse do cinema contemporâneo brasileiro. Um filme que contém um sincero e visceral desejo de se fazer cinema por parte de seu diretor, um tema atual que de desdobra em subtemas também atuais, o registro documental por meio de encenações e explicitamento dos dispositivos cinematográficos, a busca pelo gesto afetivo e puro dos personagens e o amontoado de referências intelectuais que acabam se perdendo ou entrando em conflito com a evolução do filme.
Ao retratar a vida de dois personagens que tem suas vidas ligadas ao mar, ao lixo acumulado nas águas e a reutilização desse lixo para a fabricação simbólica e prática de objetos funcionais ou de valor estético, ‘Flutuantes’ alterna momentos fortes como alguns dos depoimentos dos protagonistas, a força de suas criações (as casas flutuantes e as obras de arte interativas e de função ecológicas), os espaços onde eles vivem e atuam com momentos em que se nota apenas o desejo do diretor em mostrar imagens belas em registros de captação improváveis e discursos políticos que perdem a força ao querem abraçar uma representação de mundo que vai além das capacidades de ação de seus personagens (que são ótimas por si só, não precisam ser ampliadas a padrões gigantes para terem uma força que já carregam naturalmente) e do próprio poder de ordenar a relação das imagens com esses discursos dentro dos dispositivos do filme. Um pouco mais de confiança em seus fortes protagonistas e um menor desejo de correlacioná-los a grandes questões universais dariam muito mais força e unidade ao longa
O filme de Savastano é irregular, mas não tem medo de se atirar nas suas intenções e acaba por se perder em alguns momentos justamente na inocência da ideia tão comum ao nosso cinema independente de que apenas as intenções, os afetos, as referências e o escancaramento dos processos cinematográficos garantem a força de um filme.