‘Imagem e Palavra’ (Livre d’Image), de Jean-Luc Godard

Por Fernando Oriente

Fragmentos de ideias e interpretações a partir do arrebatador ‘Le Livre d’Image’

  • A mão manipula a imagem, acrescenta a essa imagem a palavra e os ruídos também manipulados por ela. Cinema é fazer, é vir a ser. E como Godard deixa claro desde os primeiros momentos de ‘Imagem e Palavra’, fazer é um pensar e materializar com as mãos. É um resgate do passado, uma criação no presente.
  • Discursos são construídos na exposição e ressignificação de imagens resgatadas e sobrepostas ao texto.
  • Livro de imagem; não de imagens.
  • O movimento da imagem. O movimento da mão que manuseia a imagem. O movimento do mundo. O movimento do pensar.
  • O texto se torna imagem e a imagem torna-se texto.
  • Os sentidos do discurso imagético-sonoro constantemente se dão naquilo que existe entre uma imagem e outra.
  • Criar é manipular, dar novos sentidos, questionar, validar ou recusar o visível, o audível.
  • Uma imagem sempre traz uma narrativa, evoca sons e outras imagens.
  • A palavra ainda ecoa quando o espectador já não vê a imagem, mas sim percebe sua ausência, vive o luto deixado pela imagem que esvanece.

'Imagem e Palavra'

  • Uma banda sonora com infinitas camadas: texto, ruídos, músicas, trechos de falas e diálogos de filmes dos mais diversos, vozes em off que se sobrepõe – toda a riqueza sonora que se põe em onipresente dialética com a imagem.
  • Trechos de filmes das mais distintas origens que se acumulam ao longo da história do cinema montados ao lado de imagens vulgares da violência cotidiana do mundo. O sublime e o banal. Um discurso de resistência (e permanência) em meio à falência da cultura ocidental.
  • Uma Europa cada vez mais impotente, o império cultural eurocêntrico desmorona. Uma sociedade de violência e intolerância que perdeu a noção do sublime, da arte, do acolhimento e da empatia. Existiu um dia essa outrora idealizada Europa?
  • O cinema norte-americano capaz de produzir filmes extraordinários. O país Estados Unidos capaz de promover a barbárie em escala mundial.
  • A imagem trava conflito contra a reificação que os signos assumem entre nós na sociedade da objetificação.
  • A imagem capta a banalização da morte e do horror. A vida (e a imagem) não é mais celebrada, é consumida e aniquilada.
  • Pensar, questionar e propor interpretações a partir da contingência de imagens dadas, ao mesmo tempo em que outras camadas de discurso surgem ao se reapropriar, atualizar e ressignificar essas imagens, rearranjando-as entre elas e em meio a textos e discursos. Ir além das imagens catalogadas, manipulando-as em novas direções interpretativas. Resgate e atualização.
  • A guerra ininterrupta do homem esmaga a ternura dos gestos e falas de imagens fantasmagóricas vindas de uma catalogação arqueológica de cenas que marcaram ou foram esquecidas dentro da história(s) do cinema.
  • As imagens de guerra emolduradas por uma tela de cinema se tornam insuficientes demais mediante o horror da guerra sem fim da sociedade no século 21. “A violência emoldurada perde o impacto”.
  • Imagens de guerra. Imagens de afeto. Imagens de resistência. Imagens de dor.
  • Ocidente e Oriente. O capitalismo ocidental sempre subjugando a cultura e a subjetividade oriental. Destruir o que se é incapaz de compreender.
  • O movimento da imagem e imagens congeladas postas a dialogar pela montagem.
  • Trens surgem constantemente na tela; navios e barcos cruzam mares e oceanos. Viagens, o descolar do homem em um mundo de fronteiras incertas. Conhecer novas paisagens, imagens que materializam novas realidades que, por sua vez, questionam certezas impostas.
  • A imagem está no núcleo do pensamento, mas suscita sempre uma exteriorização, uma saída de si.
  • Nós olhamos essas imagens, que por sua vez, também nos contemplam, nos questionam, nos desafiam.
  • Novas imagens trazem de volta citações e ideias que já foram expostas e ouvidas, mas retornam para se reafirmarem ou expandirem suas significações associadas a essas novas imagens.
  • Fragmentos de imagens, imagens manipuladas em sua velocidade, em sua definição e exposição, recortes de imagens. Fragmentos imagéticos aliados a trechos de falas interrompidas, um processo discursivo em constante construção e interrupção.
  • Imagens que se tencionam, se disseminam e declinam-se de si mesmas em formas múltiplas, se ampliam e se retraem num fluxo do vir a ser.
  • Imagem e palavra sempre ecoam no extracampo.
  • Imagens que sempre trazem um desejo. O desejo do realizador que suscita o desejo no espectador.

Livre d'Image

  • Embora carregadas de poder, imagens mostram-se frágeis, incompletas. Godard sabe das potências e insuficiências da imagem, trabalha dentro de suas fissuras, com suas imperfeições, seus limites e latências. Daí a importância do texto, da fala, dos sons e dos ruídos. Nessa fragmentação visual e sonora, JLG expões a fragilidade do mundo; uma arte que se torna imensa ao surgir das cinzas daquilo que ela destrói.
  • Pensar com as mãos. Manipular, retrabalhar e recontextualizar as imagens e agrupa-las aos sons e ao texto. Um pensamento fluído, que transcende as imagens e sons e se reconfigura dentro do espectador. Um pensar que é dividido e completado por quem vê e escuta.
  • A montagem é a batida do coração do filme, como já disse Godard É ao montar suas imagens e sons que o discurso se torna um devir contínuo. Montagem de choque. Cada imagem está em conflito com as demais imagens, conflito ora ameno, ora tenso. Concordâncias e discordância. Som e texto potencializam esses conflitos.
  • Cada imagem traz em si múltiplas interpretações e significações. O texto (a palavra) promove, afirma ou questiona essas imagens.
  • Na torrente de imagens, palavras e sons todo um universo é posto a ser pensado – fracassos, conquistas, melancolia, esperanças, inconformismo, impotência e reação. Da vida cotidiana à filosofia, da política à economia, do cinema à literatura, da pintura à fotografia, da história à arte.
  • Godard coleciona imagens como se colecionasse pedaços do mundo; do mundo material, do mundo das ideias.
  • Imagem como arte, imagem como mercadoria. Pensar e consumir. Mercado e cultura como regra, arte como exceção.
  • O cinema é uma arte habitada por fantasmas. As imagens catalogadas e manipuladas por Godard são uma materialização dessa fantasmagoria postas a serviço de um pensamento discursivo em constante elaboração.
  • Com sua manipulação da imagem, Godard não só pensa o cinema, mas o mundo. E expõe os mecanismos pelo qual o cinema pensa a si próprio e também ao mundo em que está inserido.
  • Godard trabalha tanto a materialidade e a presença da imagem, como sua ausência, sua interrupção e o que ela evoca quando se tenciona em ausência e falta. Completude e incompletude.
  • Por meio da poética da montagem, JLG promove uma organização aberta e instável de imagens que se proliferam no tempo para compor um discurso que busca fazer pensar as significações e dúvidas sobre o real apreendido e transpassado pela imanente transcendência que cada imagem evoca.
  • Godard explicita como uma imagem nunca será capaz de dar conta de toda a dor, alegria, beleza ou horror da contingência do mundo “real” que elas carregam impressas em fotogramas.
  • JLG é figura onipresente no filme. Imprime sua subjetividade no discurso das imagens que monta e manipula, se faz ouvir ao ler textos e emitir pensamentos com sua voz rouca e titubeante. ‘Imagem e Palavra’ é o próprio Godard materializando suas ideias e o seu fazer artístico em imagem e texto. O filme (assim como toda sua obra) é uma extensão do maior cineasta de todos os tempos. Suas conquistas e fracassos, desejos e ideias, o ceticismo como encara o mundo e a genialidade com que faz do cinema algo imenso a cada novo filme que realiza.Imagem e Palavra
  • O fluxo contínuo do pensamento por meio de imagens e palavras é interrompido ao término da projeção, Godard não promove um desfecho em seu filme; o que amplia a sensação de um discurso em movimento – aberto ao acaso, ao porvir – e que se prolonga após o fim do longa. Uma obra é incapaz de dar conta da complexidade do mundo físico e existencial e ‘Imagem e Palavra’ se projeta além da existência material do filme. O fluxo do pensar tende sempre a prosseguir, para além da imagem, para além do texto.
  • ‘Imagem e Palavra’ pertence ao estilo ensaístico que Godard já realizou diversas vezes, principalmente a partir de meados dos anos 1970 e que tem como seu centro paradigmático o monumental ‘História(s) do Cinema’. Mas a presença de elementos ensaísticos em seu cinema está presente em toda a sua obra, desde seus primeiros curtas e longas. Godard nunca se prende a um gênero ou estilo, seus filmes são sempre polifônicos.
  • Godard reflete em imagem e sons o mundo hoje, voltando ao passado e sendo pessimista (mas nunca em prostração) tanto em relação ao presente quanto ao futuro. Usa a história do cinema e do mundo por meio de fragmentos de filmes. Mistura suas próprias ideias e pensamentos com citações de filósofos, sociólogos, linguistas, antropólogos, escritores e artistas. Costura seu discurso em um imbricado tecido de imagens e pensamentos, unindo tudo pela montagem. JLG é, há muito tempo, um dos mais brilhantes pensadores contemporâneos. Seus filmes transcendem o cinema e são reflexões complexas sobre tudo o que nos cerca. ‘Imagem e Palavra’ é um ensaio sobre o viver, o existir, o resistir, o luto e o pensar a vida – do macro ao micro. Aos 88 anos, JLG realiza suas obras com muito mais originalidade e energia do que a imensa maioria dos realizadores. Precisamos urgentemente que a vida reserve muitos anos a mais ao velho Jean-Luc Godard e sua eterna juventude inconformista e desafiadora.

 

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