‘A Academia das Musas’, de José Luis Guerín

Por Fernando Oriente

A Academia das Musas, de José Luis GuerínUm filme como ‘A Academia das Musas’ surge como algo desconcertantemente original, uma obra direta em que tudo funciona, se dá e se tenciona pela palavra. Raramente um filme colocou a palavra de maneira tão acentuada como seu objeto central como nesse novo trabalho do catalão José Luis Guerín. Mas o que torna o filme notável é que a palavra, os diálogos onipresentes e seus desdobramentos só atingem a força arrebatadora que vemos em ‘A Academia das Musas’ por meio dos elementos cinematográficos. É o cinema que potencializa a palavra. A construção formal radical que Guerín utiliza é que eleva a palavra às potências que ela assume no longa. Podemos tecer aqui comparações com o cinema de Straub e Huillet e de Eugène Green, mas a encenação que esses utilizam para promover a força da palavra são totalmente distintas dos meios formais e estéticos que Guerín usa em sua mise-en-scéne. Enquanto tanto Straub e Huillet quanto Green trabalham a palavra de maneira anti-naturalista, com as falas proferidas de maneira cadenciada, recitadas, discursivas e, como já dito, ausente de qualquer naturalismo, Guerín impõe aos diálogos e às falas de seus personagens uma naturalidade extrema e orgânica à diegese e às estruturas de encenação, nada que tenha a ver com o naturalismo forçado que muitos cineastas se apegam para tentar conferir um realismo excessivo aos seus filmes.

A estrutura de documentário direto que condiciona a construção ficcional de ‘A Academia das Musas’, presente na construção formal e estética, é implicado na maneira como seus personagens conversam, falam e debatem de maneira natural, coloquial; são verborrágicos, interrompem um ao outro, são ansiosos no querer constantemente verbalizar seus sentimentos, desejos e interpretações que fazem daquilo em que estão inseridos. Isso provoca uma constante sensação que estamos em meio de tudo o que ocorre em cena, como se câmera de Guerín estivesse sempre presente fisicamente registrando fragmentos de uma realidade próxima a nós. Tanto que muitas cenas e diálogos são registrados através de vidros de janelas e portas de casas, bares, cafés, carros, como se a câmera estivesse ali para captar a qualquer custo o encontro dos personagens nos momentos em que conversam e verbalizam. Uma câmera que precisa captar a palavra, nem que seja como uma intrusa, uma espiã, que registra por trás desses vidros a intensidade do que é dito e como é dito.

‘A Academia das Musas’ assume o papel de um estudo de tese. Todo o filme gira a partir das teorias do professor de filosofia Raffaele, que em seu projeto acadêmico e de pesquisa elabora um curso em que pretende resgatar o valor e o papel que tinham as musas tanto na antiguidade como no Renascimento – indo da mitologia grega, passando pelo romance entre Lancelot e Guinevere até a poesia de Dante Alighieri – para formular uma tese que esse papel exercido pelas musas, pelas mulheres de provocar nos homens a admiração, o amor e a inspiração artística foi na Antiguidade e no período clássico fundamental para que poetas e escritores fossem capazes de produzir obras sublimes e imortais. Raffaele quer resgatar o valor da mulher como musa para se aplicado nos dias de hoje, promover uma salvação da sociedade por meio da capacidade das mulheres contemporâneas assumirem o papel ativo de musas inspiradoras dos homens para que esses possam criar obras que recuperem o valor do belo que foi perdido. Seria pelo resgate da beleza, promovido por meio da inspiração das mulheres/musas, que se tornaria possível trazer o conceito pleno de beleza de volta a um mundo desencantado.

'A Academia das Musas'A força que os debates do professor provocam em suas alunas, e acompanhamos na primeira parte do filme aulas e mais aulas em que ele expõe sua teoria em meio a acalorados debates em sala, se desdobra na vida dessas alunas e também na relação entre Raffaele e sua mulher. As discussões saem dos debates teóricos em classe e passam a tomar conta do cotidiano de todos. As alunas conversam entre si e passam a situar e interpretar suas vidas, relações amorosas, desejos, expectativas e ideologias a partir das teorias de Raffaele. Mas o primeiro confronto é entre o professor e sua mulher (personagem que pode ser vista como a grande antagonista das ideias dele), um casal que está chegando à velhice e que após décadas de casamento, entra em conflito pela maneira como a mulher de Raffaele rebate enfaticamente suas teorias, anulando os aspectos teóricos metafísicos e sublimes do que ele diz em sala e desloca a discussão para um conflito de gênero. Ela o acusa de manipulador e reduz sua teoria a uma forma de idealizar, desvalorizar subjetivamente as mulheres e reduzi-las meras agentes responsáveis por fazer com que homens assumam o protagonismo, se inspirem e tomem para si o papel de poetas, pensadores e artistas capazes de salvar o mundo usando o feminino para se inspirar, o que acaba por reduzir o valor da mulher, as impondo a meros objetos idealizados de pureza, beleza, fonte de desejo e amor (amor que para ela é visto pelo marido como algo utópico, como mero fruto de criações literárias e não um sentimento real capaz de unir duas pessoas materialmente no mundo). Ela é racional, pensa no mundo de hoje, não aceita essa caricaturalização da mulher como um ser irreal, inatingível, colocada em um pedestal e desprovido de protagonismo. Esse conflito entre o casal irá acompanhar todo o filme.

Mas Guerín não se restringe a ele e coloca as alunas, as relações entre elas, a forma como vêem suas vidas afetivas e seus papeis dentro da realidade a que estão inseridas por meio das teorias de Raffaele. São diálogos notáveis, em que elas discutem o valor da palavra, da linguagem como forma de expressão maior de suas existencialidades. Por meio da história de cada uma delas a teoria de Raffaele se reproduz, se refrata e se desdobra num caleidoscópio de sensações, dúvidas e reformulações subjetivas. O professor passa a se encontrar com as alunas fora da sala de aula, ele interage com cada uma delas e novamente temos diálogos primorosos em que a partir do que é posto em sala elas o questionam, concordam, desaprovam e completam suas teorias com aquilo que sentem e com o que ocorre em suas vidas. Raffaele chega a acompanhar duas alunas a viagens a Itália, onde buscam, tanto nos pastores de ovelha da Sardenha – e como suas relações com a natureza e com ancestralidade os tornam poetas próximos à ideia clássica que o Raffaele defende – bem como nas catacumbas, museus e locais históricos de Nápoles, as fontes históricas e os mitos formadores da poética ligada a Natureza e a inspiração, sempre mediada pelos indícios e presença do papel das musas ao longo da história, valor esse que o professor quer resgatar por meio de suas alunas.

Impressiona como Guerín constrói essas personagens femininas de maneira complexa, confere a elas protagonismo, com texturas, ações, discursos e personalidades que faz com que cada uma seja distinta da outra e ao mesmo tempo essas diferenças provoquem constantes discussões em que o choque das diferenças acaba por dialeticamente construir e potencializar discursos e possibilidades de fala que se completam, desdobram e ampliam a novas possibilidades de leitura e interpretação do mundo e também de cada individualidade, além de levantar sempre novos questionamentos. Tudo permeado pelas teorias de Raffaele, mas a força do que pensam as alunas (bem como suas experiências, desejos e histórias de vida) e como elas interpretam e reorganizam essas teorias confere às ideias de Raffaele essas novas possibilidades de significação. Todo o poder da palavra presente em ‘A Academia das Musas’ serve para promover choques, debates e questionamentos que fazem surgir novos conflitos. A dialética no filme é onipresente, conduz a narrativa e é pelo confronto promovido pela força da linguagem que essa dialética atinge uma dimensão enorme.

Tudo gira em torno da palavra, dos diálogos e da constante construção de tensões por meio da linguagem. Mas como foi apontado antes, é pelo cinema e seus elementos estruturais que Guerín confere força e complexidade a esse processo. A composição do filme é preciosa. O diretor decupa seu filme de forma radical, não usa racccords de transição, trabalha constantemente com cortes secos, fragmenta os diálogos e depura seu filme de qualquer excesso formal, sem planos descritivos, sem música e usa constantemente a tela preta para unir sequências. A construção da encenação é toda baseada em elementos do documentário direto, com uma câmera leve, ágil que está sempre no interior das ações as registrando de perto e acompanhando os movimentos internos dos planos. Esse recurso da composição ficcional ser baseado em dispositivos do documentário só valoriza a força das cenas, ressalta os diálogos, a captura da significância dos gestos, dos rostos – tanto dos que falam quanto dos que escutam – além de elevar a palavra, o que é dito ao cerne da dramaturgia. ‘Academia das Musas’ é um filme em que o diálogo está praticamente em todas as cenas, são pouquíssimas as sequências em que não vemos dois ou mais personagens constantemente falando e escutando o que é dito, conversando e externando seus pensamentos e discursos interiores em linguagem falada. É a tentativa de dominar a linguagem para consolidar o discurso. Temos aqui uma concepção estruturalista dessa linguagem, mas que não se prende apenas aos conceitos do estruturalismo e sim os transborda e os questiona.

A Academia das MusasUma comparação se faz necessária entre ‘A Academia das Musas’ com o filme mais famoso de Guerín, aquele que chamou a atenção dos críticos e cinéfilos mais atentos ao talento do diretor, ‘Na Cidade de Sylvia’ (2007); um belíssimo longa em que o diretor trabalha exclusivamente os deslocamentos dos personagens pela cidade (e a forte relação desses com os espaços, trajetos e ambientes), quase sem diálogos, em que a força vem do movimento constante dos tipos, de seus olhares, expressões e gestos e principalmente pelo que não é dito. É como esse seu novo filme que analisamos aqui seguisse sentido contrário a ‘Na Cidade de Sylvia’. Lá havia os planos de ligação como centro, sendo eles a promoverem a força dramática e se estabelecendo como matéria principal. ‘A Academia das Musas’ segue caminho totalmente oposto. É o diálogo, a palavra, a montagem fragmentada, a ausência de planos contemplativos de ligação, a decupagem radical que conferem a potência imensa do filme.

‘A Academia das Musas’, além de todos esses elementos fascinantes, também pode ser apreciado como uma grande experiência intelectual. O espectador é posto como um observador que divide com as alunas a experiência das teorias de Raffaele, projetando dentro de suas próprias expectativas e repertórios uma jornada intelectual que parte de uma tese acadêmico-filosófica em construção que se desdobra no cotidiano dos personagens, mas também no público. Guerín faz de ‘A Academia das Musas’ uma obra ímpar, verborrágica, direta e de um vigor impressionante. Um filme fantástico.

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