‘Certo Agora, Errado Antes’, de Hong Sang-soo

Por Fernando Oriente

Certo Agora, Errado Antes“Procure por algo novo a cada segundo. Olhe sempre para tudo que está a sua volta e encontre sempre algo novo”. Essa frase, dita pelo protagonista de ‘Certo Agora, Errado Antes’, último filme de Hong Sang-soo, pode muito bem resumir todo o cinema do diretor. Hong é um cineasta único, seus filmes têm características próprias que se repetem em todos os seus longas, com maior ou menor intensidade. Um dos grandes autores do cinema contemporâneo, que filma desde os anos 1990, Hong Sang-soo segue formas, discursos e mecanismos de maneira obsessiva em todo filme que dirige. Já se cansou de escrever como ele repete ao extremo as mesmas situações, tipos de relacionamentos, cenas, características emocionais de seus personagens, estruturas narrativas, processos de montagem, cenários, além de recursos e técnicas constantes em seu modo de filmar e encenar, desde posicionamentos e movimentos de câmera, estruturas dramáticas a opções de decupagem. Repetir isso no texto acaba sempre necessário quando se aborda uma obra assinada por ele. Porque o que mais impressiona é que é na repetição, na exaustão sempre criativa dos mesmos processos que Hong consegue a cada filme nos encantar com a originalidade e a fluidez como ele extrapola as situações corriqueiras, a banalidade e a rotina do dia a dia e traz para a centralidade da matéria de seus filmes discursos de extrema sensibilidade sobre a fragilidade humana, a solidão, a fugacidade dos relacionamentos, as inseguranças emocionais, a carência afetiva e como tudo isso é transformado pelo diretor em constantes afirmações da vida, que se mostram presentes no mistério dos encontros, na melancolia das subjetividades, na precariedade do presente, no humor dos pequenos eventos e na imensa maravilha que existe em cada ser humano imerso nessa gigantesca multidão anônima e solitária. Ele, a cada filme, encontra sempre algo de novo por meio do simples ato de olhar ao entorno, perceber o mundo a sua volta.

O cinema de Hong Sang-soo é o cinema dos encontros fortuitos, do acaso, do que surge e seus personagens são incapazes de compreender totalmente, dos pequenos gestos, das emoções que brotam repentinamente e tomam conta mulheres e homens e na maneira como eles tentam reprimir ou redirecionar seus desejos, sem nunca saberem em que direção a vida os levará. Existe uma sensação de fracasso, de frustração nos seus tipos, eles podem ser bons e reconhecidos por algo que fazem, mas suas essências estão sempre incompletas. São tipos que se movimentam constantemente, caminham pelas ruas, se encontram em cidades que não conhecem e estão apenas de passagem, entram e saem de bares, cafés e restaurantes. Bebem demais, falam demais (e muitas vezes se atrapalham com aquilo que querem dizer e a maneira como formulam suas idéias e desejos em discurso), usam a bebida para deixarem fluir os tumultos internos de suas almas, o que muitas vezes gera mal entendidos, situações cômicas (mas sempre com traços de melancolia – o humor em Hong Sang-Soo vem sempre acompanhado de sentimentos difusos que misturam um mal-estar, um desconforto e uma tristeza latente) ou acabam por redimensionar e potencializar relacionamentos recém iniciados. Mas ao mesmo tempo, os filmes do diretor são sempre sobre partidas, despedidas, rupturas e reafirmam a impossibilidade de total autodeterminação de seus personagens, bem como a incapacidade de solidificação de seus desejos e de como nunca conseguem manter uma relação com aqueles que realmente desejam estar juntos.

‘Certo Agora, Errado Antes’ é talvez o filme mais romântico do diretor, um verdadeiro filme de amor. Uma de suas obras mais sensíveis pela forma com que o diretor trata os sentimentos que surgem entre o protagonista do filme, o cineasta Ham Chunsu e aspirante a pintora Yoon Heejung. Como em todos os filmes do cineasta, os dois se conhecem por acaso, passam o dia e a noite juntos e acabam se apaixonando. Se apaixonar não é algo comum no cinema de Hong. Geralmente seus personagens sentem atração, desejo ou algo próximo de um sentimento forte como o amor, mas em ‘Certo Agora, Errado Antes’ podemos afirmar que o que Ham e Heejung passam a sentir um pelo outro é amor, no sentido pleno do termo. Esse caráter sentimental dá muita força ao filme pela maneira como Hong Sang-soo conduz a narrativa e os dramas. Não existem sentimentalismo nem romantismo caricato no filme, existe uma abordagem complexa e sofisticada de um amor intenso que surge desse acaso, movido pelas incompletudes dos protagonistas.

'Certo Agora, Errado Antes'E é exatamente por reproduzir uma característica constante em seu cinema, que ‘Certo Agora, Errado Antes’ ganha mais força. O filme é encenado duas vezes, algo que o diretor fez em diversos de seus longas desde ‘A Virgem Desnudada Por Seus Celibatários’ (2000). As mesmas cenas, os mesmo cenários, os mesmo encontros, as mesmas ações centrais que acontecem na primeira parte do filme se repetem na segunda. É um filme contado duas vezes, mas com situações, detalhes, diálogos e desfechos distintos em cada uma delas. Se na primeira parte as ações, escolhas e falas de Ham levam a um fracasso completo da insipiente relação entre ele e Heejung, na segunda o protagonista toma atitudes, posturas, diferentes escolhas e se abre de maneira muito mais sincera, o que encaminha a relação dos dois para a solidificação e afirmação da força dos sentimentos que surgem entre o casal. A ruptura final, a partida de Ham da cidade e sua volta a Seul é inevitável, mas na segunda parte do filme estamos diante de uma típica história de amor que não irá vingar, mas que a sensibilidade com que concebida a construção narrativa e dramática dos eventos e a primorosa encenação de Hong Sang-soo faz com que os sentimentos, a força do que surgiu entre seus protagonistas se projete tanto em Ham e em Heejung, bem como no espectador, para além da separação final. O amor é algo que acontece, que é forte demais e que deixará marcas indeléveis em quem vivenciou e sentiu suas intensidades, por mais que a distância do objeto amado venha a se impor. O sentimento é muito intenso para ser esquecido. É algo que todos nós carregaremos dentro da alma, no coração, na mente e na memória. Como diria Godard em alguns de seus filmes: “o amor não acaba, ele vai embora”.

Toda essa força dramática, o poder discursivo da narrativa, esse funcionamento perfeito em dividir o filme em duas partes, em contar a história duas vezes só funciona porque Hong Sang-soo é um diretor extraordinário. Dentro de sua aparente construção minimalista e naturalista, a mise-en-scéne de Hong é de uma funcionalidade e precisão assombrosas. Seus elementos centrais: o uso discreto da câmera, sempre inserida no interior e a serviço do registro dos dramas com distanciamento calculado (mantendo e seguindo o ritmo das ações e prostrações em função dos personagens), o uso constante dos planos longos reorganizando o quadro, a valorização dos gestos, a força física e material da presença dos atores em cena, o fato de nunca usar o campo e contracampo nos diálogos – fazendo os enquadramentos inserirem os personagens que conversam ao mesmo tempo no quadro, ou deslocar a câmera em sutis aproximações ou movimento laterais para enquadrar um personagem enquanto o diálogo continua com o outro fora de campo -, as pequenas e marcantes elipses que unem as seqüenciais, o uso lento do zoom que provoca uma aproximação da ação, mas que sempre parece ser interrompido de maneira brusca para permitir que ação prossiga com o mínimo de influência possível e não dilua sua intensidade, tudo isso está presente em ‘Certo Agora, Errado Antes’.

As variações narrativas e dramáticas entre as duas partes do filme são acompanhadas e construídas não só por distintas situações dramático-narrativas, diálogos e suas consequências, mas também pela encenação. As sequências que se repetem são filmadas por Hong Sang-soo de maneira claramente díspares, usando em cada uma delas diferentes enquadramentos, novos movimentos de câmera, outras decupagens e cortes, além de alterar as elipses, bem como o início e o término das cenas, omitindo pequenas passagens que estavam presentes na primeira e inserindo novos elementos de cena e situações na segunda. É preciso muito talento e domínio completo da forma e da estética para se conseguir a potência que Hong Sang-Soo atinge por meio desses processos.

Certo Agora, Errado Antes, de Hong Sang sooEnxergar as múltiplas possibilidades que existem na vida, que são possíveis a partir das mesmas premissas, dos mesmos encontros, perceber que nada tem um percurso ou um destino pré-determinado. Entender que pequenos gestos, novas atitudes, diferentes palavras e discursos podem surgir a qualquer momento e fazer de encontros, afetos, relações e de como se ver e se posicionar diante do outro podem mudar completamente o percurso dos acontecimentos, suas consequências e desfechos. Tudo isso é afirmar a complexidade da vida, é ressaltar como estamos sempre sujeitos ao acaso e aos encontros, que nada é certo, é explicitar as possibilidades ilimitadas de cada homem ou mulher, alargar a própria existência humana e nossa relação com o mundo, o espaço e o tempo. Hong Sang-soo faz isso como ninguém, é a essência de sua estética e de seu discurso.

‘Certo Agora, Errado Depois’, esse lindo filme amor, sem nunca deixar de estar totalmente inserido no universo ímpar da obra de Hong Sang-soo, é um longa de um cineasta que amadurece sem jamais abandonar a criatividade, a fidelidade ao seu estilo, a sinceridade de seu discurso e a sua visão de mundo. Ao lado de ‘A Virgem Desnudada Por Seus Celibatários’, ‘A Mulher é o Futuro do Homem’ (2004), ‘Conto de Cinema’ (2005), ‘Mulher na Praia’ (2006), ‘O Dia em Que Ele Chegar’ (2011) e ‘‘Filha de Ninguém’ (2013), ‘Certo Agora, Errado Depois’ é mais uma pequena obra-prima na carreira do diretor.

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