Por Fernando Oriente
Hou Hsiao-Hsien é um dos maiores cineastas vivos. Essa frase é fundamental para tentarmos penetrar em ‘A Assassina’, seu último longa, um projeto que ele cultivava há décadas e levou nove anos para realizar, entre pré-produção, filmagem, montagem e pós-produção. Se Hou é um dos maiores nomes que o cinema já teve e sua obra está repleta de obras-primas e filmes maravilhosos desde que iniciou sua carreira nos anos 1980 em Taiwan, algumas características de seu cinema são notáveis para consolidá-lo num posto tão alto em meio aos grandes autores. A mise-en-scéne de Hou Hsiao Hsien é sempre primorosa, sua encenação (esse elemento central na arte a que se dedica) é de um preciosismo e de uma perfeição que assombram o espectador, é por meio desses procedimentos que seus dramas, suas narrativas, as texturas de seus personagens e as relações entre os tipos, os espaços e o peso do tempo atingem potenciais máximos de percepção e sensorialidade. Um artesão da encenação que usa todas as estruturas formais do cinema para dar força, sentido, complexidade e abrir um imenso espectro de possibilidades de leitura e de representação. Nada em seus filmes é gratuito, tudo tem um sentido, uma funcionalidade, uma razão do porque estar presente em cada fotograma.
‘A Assassina’ é um filme em que o depuramento é chave e elemento central de tudo. Temos um filme que baliza sua matéria e seu enunciado no wuxia, gênero tipicamente chinês (mas muito mais presente fora da China continental, sendo Taiwan e Hong Kong os locais onde mais se trabalha esse gênero tanto na literatura quanto no cinema). O wuxia traz toda uma mitologia própria, aborda períodos históricos da China na Idade Média, na era das dinastias e da consolidação do enorme território como nação. São histórias de lutas, de combates, de conflitos entre guerreiros, assassinos, traidores onde se proliferam os combates de artes marciais, lutas de espadas, sabres e adagas. Todo um reino em que geralmente a figura central é um guerreiro/guerreira solitário, muitas vezes um assassino(a) guiado por estreitos códigos de conduta, dever e moral. Um universo em que esses protagonistas solitários enfrentam conspiradores, tiranos, corrupções e tentativas de golpe e desestabilização da ordem social e política
Admirador e consumidor de livros e filmes de wuxia desde sua infância, Hou usa esse gênero para fazer de ‘A Assassina’ um filme que honra toda essa tradição, recria todo seu universo simbólico ao mesmo tempo em que realiza uma obra ímpar e personalíssima, em que o mais valorizado é a imagem e como dela surge a relação da protagonista e dos demais personagens com o peso enorme do tempo, daquilo que trazem como marcas definidoras de suas personalidades e de como a relação de tudo o que foi vivido entra em conflito com as urgências das ações que devem ou podem ser tomadas, ou por necessidade de manutenção do poder e evitar traições ou apenas para cumprir ordens e respeitar os códigos morais nos quais estão inseridos e são obrigados a seguir.
A narrativa de ‘A Assassina’ é simples, ao mesmo tempo em que é o fator menos importante do filme. Essa narrativa nos é apresentada por Hou Hsiao-Hsien por meio de detalhes, fragmentos, de pistas, pelos cenários e pela forma como são captados, pelos movimentos tanto os de câmera quanto os internos aos planos, e muitas vezes mais por gestos ou posturas físicas e expressões do que por palavras – sempre algo diretamente ligado às imagens que elabora e nos apresenta em doses precisas durante o encadeamento do filme. Essa narrativa nos é oferecida como um quebra-cabeça, em que juntar suas partes, amarrar suas pontas torna-se uma tarefa que forçosamente se dilui na exuberância das imagens isoladas, dos planos por si só, na maneira como o diretor constrói os climas e os momentos de ação e conflito e os interrompe, deixando sempre a tensão presente e num crescente. Não interessa a Hou dar explicações, criar reviravoltas clássicas nem momentos de clímax. Todo o filme é um enorme clímax dos sentidos e dos signos que faz o espectador ser tragado pelo esplendor da encenação para um espaço sensorial, mítico em que as percepções e o poder das imagens falam muito mais aos instintos e às projeções do que à razão.
‘A Assassina’ é um filme em que a força dos planos, o poder significante das cenas e a beleza imagética de cada sequência surgem soberanos graças à primorosa mise-en-scéne (calculada e esculpida com apuro e detalhamento impressionantes) e por uma depuradíssima decupagem. Uma obra de um cineasta maduro, que detem o domínio total da forma e da matéria de seu filme. Hou Hsiao-Hsien constrói um espetáculo visual suntuoso e ao mesmo tempo minimalista, em que personagens extremamente complexos vivem situações em que a justaposição das experiências vividas por eles e as ações que foram tomadas no passado e determinaram de maneira impiedosa seus destinos se opõem às opções, limitações e oportunidades de escolha que se oferecem a eles no presente e em relação às consequências que ecoarão no futuro. Tudo em meio a esse peso que carregam, às necessidades individuais e coletivas, às regras morais que devem seguir e em como isso irá implicar no outro e naqueles a que são ou foram próximos, bem como nas possibilidades de se projetar novos destinos. Tudo é sugerido, o cineasta aponta caminhos e possibilidades, trabalha dentro do que é visto e as inúmeras relações, reações, codificações, interpretações e análises que podem surgir a partir de um simples fotograma, de um ruído, de um movimento.
A protagonista do filme, a assassina Nie Yinniang (interpretada de maneira preciosa pela belíssima Shu Qi) é uma personagem riquíssima em texturas, que vive em meio aos rígidos códigos em que foi criada para se tornar uma assassina perfeita e letal é obrigada por uma ordem da monja que a treinou desde a infância (quando foi afastada de casa pelos pais para ser iniciada na ordem das assassinas) a regressar a sua terra natal e matar seu primo Tian Ji’na (Chang Chen, também preciso no papel), que agora se tornou o poderoso senhor da região e provoca receio na corte imperial. O reencontro, as emoções reprimidas, o que se guardou e fez se projetar pelo passar dos anos, as expectativas, ressentimentos e frustrações, além das incertezas em detrimento ao que possa vir a ser, aos conflitos que devem ocorrer ou se evitar e o que se fará tanto por meio de ações como por meio de inações passam a surgir na tela a cada instante.
O que promove toda a tensão é o fato de Tian Ji’na ter sido noivo de Nie Yinniang antes de ela tornar-se uma assassina. Mas a grandeza de Hou Hsiao-Hsien está em ampliar e aprofundar a dramaticidade e suas possibilidades ao fazer da personagem de Shu Qi uma assassina perfeita, mas que desde que nos é apresentada no prólogo do filme (todo esse em preto e branco) mostra-se uma pessoa que vive constantemente em conflito entre seus deveres e compromissos e seus sentimentos, sua noção de bondade, de certo e errado. Esse conflito a consome e faz com que seus deveres como eficaz matadora sejam postos em risco mediante a sua incerteza em fazer prevalecer os códigos de conduta e a rigidez com que deve sempre executar suas ações e nunca julgá-las a partir de seus sentimentos. ‘A Assassina’ pode ser visto como um filme em que os sentimentos e a própria identidade dos personagens é constantemente subjugada e reprimida, eles são obrigados a suprimir qualquer manifestação de afeto, qualquer possibilidade de seguir seus próprios instintos e desejos. Esse conflito é filmado de maneira sublime por Hou, ele não usa nenhum sentimentalismo, não cria nenhum diálogo ou situação que possa fazer com que essa tensão se torne uma narrativa que ocupe a superfície do filme. Toda a tensão existencial e individual da protagonista e dos demais personagens é posta sobre diversas camadas, nunca se sobrepõem à centralidade da força e da beleza das imagens que dominam o filme. Trata-se de uma obra centrada e devota a força autônoma das imagens, ao peso da construção estética dos espaços, da relação dos personagens dentro desse espaço e da noção onipresente da força do tempo que se impõe em cada plano.
Logicamente temos (poucas, mas fundamentais e belíssimas) cenas de ação. São por meio dessas cenas, em lutas e combates físicos que os personagens dão mais vazão a suas identidades, suas pulsões, seus desejos, intenções, medos e força. Mas essas sequências de ação são pontuais, quase sempre interrompidas, o que permite Hou distender as tensões dramáticas, aumentar as sugestões significantes sem nunca criar conclusões fáceis e jamais abandonar o eixo central da construção do filme: a relação tempo-espaço e como essa se manifesta por meio da extensão e do prolongamento máximos da significância das imagens e de todo um contexto que se exprime e se permite ler pela e na construção da beleza dos planos. Durante todo o filme é mantido o clima de tensão, como se a qualquer momento a violência possa romper na tela. Hou Hsiao-Hsien constrói seus dramas muito mais na força dos climas, nas sugestões, nas presenças físicas, nos movimento internos do quadro, nas expectativas criadas e articulações que constrói a partir da relação dos personagens entre si e com os espaços, os objetos e os cenários do que em arroubos dramáticos ou embates físicos. É notável a elaboração dos ambientes, o detalhe e a relevância que cada objeto cênico tem, desde roupas, móveis, utensílios domésticos, armas, jóias, tecidos, bem como a disposição dos cômodos e como os personagens se movem e deslocam por esses espaços, sempre seguidos a uma distância milimetricamente calculada pela câmera de Hou, que em suaves movimentos laterais, reorganiza e rearranja o quadro dentro de um mesmo plano, promovendo novas possibilidades cênicas sem nunca perder o controle absoluto que tem do encadeamento dos dramas, gestos, falas e expressões faciais de seus tipos e a relação deles com tudo que os cerca bem como com as emoções que carregam reprimidas dentro de si mesmos.
Não se constrói um filme tão complexo e cheio de camadas como ‘A Assassina’ por meio de estruturas estéticas se a forma e a plasticidade não forem totalmente adequadas e estiverem o tempo todo ao serviço dos enunciados e do discurso, assim como as modulações dramáticas que o cineasta deseja impor à obra. A beleza existe por uma razão específica, exprimir visualmente o que Hou Hsiao-Hsien quer atingir e sugerir por meio de imagens e planos. São nas lutas entre Nie Yinniang e Tian Ji’na que os dois personagens – que se amaram e foram prometidos um ao outro no passado – se encontram fisicamente mais próximos. É por meio da modulação das luzes e do surgimento de imagens embaçadas – seja por serem filmadas por trás de cortinas que estão presentes inúmeras vezes nos ambientes internos do filme ou pelo gradual aparecimento de brumas nos espaços ao ar livre e ainda por desfocamentos criados a partir da distância dos enquadramentos e a relação com as profundidades de campo – que sentimos o quanto de tensão, de sentimentos reprimidos e de incertezas estão corroendo os personagens, incapazes de verem ou sentirem qualquer coisa com nitidez ou razão.
Nie Yinniang é uma personagem condenada à solidão bem como a anular seus sentidos e afetos em função daquilo que lhe foi destinado (algo típico de um personagem clássico de wuxia). Mas a jornada da personagem está incompleta quando a vemos ao longo do filme e Hou irá conduzir as ações, as modulações dramáticas e a narrativa em uma direção incerta na qual possam surgir possibilidades para ela redirecionar sua jornada em uma consolidação de sua individualidade em que irá negar algo que lhe estava previsto e imposto e permitirá que peregrine em uma direção que encaminhe essa consolidação de sua persona não a um desfecho lógico ou algo já pré-determinado, mas num possível processo libertação e empoderamento e até mesmo em um novo recomeço, em que sua solidão permanecerá constante, mas muito mais sintonizada com suas pulsões e desejos do que ela mesma poderia imaginar. Escapar do destino de solidão é impossível, mas Hou cria sugestões para que seu fado tenha novas significações e oportunidades. Esse possível processo dramático com a ressignificação da construção interior da personagem, bem como toda a narrativa e suas modulações que surgem na tela ao longo do filme, é formatado em imagens e é apenas sugerido por meio da força de um discurso sempre colado e formulado na beleza e nas múltiplas probabilidades significantes de cada plano, de cada cena e das expectativas que o diretor constrói e manipula em relação ao porvir.
‘A Assassina’ é um filme em que o discurso, os dramas e a narrativa são compostos somente e a partir das potências da imagem, ou seja, das possibilidades e elementos estruturais exclusivos do cinema. Hou Hsiao-Hsien constrói uma obra rica em significantes e significados, mas deixa tudo fluir e até mesmo existir única e exclusivamente pelo poder das cenas, pela beleza visual, pela construção dos planos, pelo depuramento evolutivo da dramaticidade imposto na montagem, pela presença dos atores, pelos gestos, pelos movimentos, pelas modulações da luz, pelas intensidades das cores, por tudo que é sussurrado ou mesmo não dito. Com seu novo filme, o diretor atinge o ápice da capacidade da linguagem cinematográfica, faz o cinema ser uma arte que se constrói dentro de códigos lhe são exclusivos e só podem ser articulados por mecanismos e técnicas que somente uma linguagem de cinema puro pode garantir.
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