Por Fernando Oriente
Imersão. Muitas vezes esse processo nos é proposto por uma obra de arte, seja ela qual for. O cinema moderno, pós-moderno e suas demais correntes surgidas desde os anos 50 e 60 nos convida frequentemente a essa imersão em um filme. Trata-se aqui de um processo de entrega, de projeção de nós mesmos num filme, num fluxo de imagens e sons, numa obra estética. Desse processo, quando aceitamos essa imersão, surgem algumas das mais fascinantes experiências cinematográficas que vivenciamos. É exatamente isso que ‘Exilados do Vulcão’, de Paula Gaitán nos propõe, melhor, nos convida. Um longa de pujança estética extrema – estética aqui entendida como um processo dialético entre forma e matéria. O filme de Paula é de uma beleza arrebatadora, uma beleza que surge da liberdade e da independência cênica adotada pela cineasta desde a condução sensorial que faz da evolução dramática, passando pelo rigor (no melhor sentido da palavra) com que constrói cada detalhe das cenas, pela força independente que dá às imagens, pelo brilhante trabalho de fotografia e do desenho de som e pela imensa autonomia interpretativa e simbólica que impõe à dramaturgia. Um filme realizado por uma artista que transcende o cinema, por uma cineasta de ponta que ao mesmo tempo é artista plástica, fotógrafa, poeta e vídeo-artista. Paula usa seu talento em todas essas áreas para construir ‘Exilados do Vulcão’ e o resultado é um dos filmes mais radicais (novamente no melhor sentido da palavra), criativos e cheio de vida e pulsões dos últimos tempos.
O filme propõe um desafio ao espectador, o retira totalmente da posição passiva de conforto e o coloca diante de um fluxo de planos e sequências autônomas, que carregam em si uma infinidade de significantes, constrói uma narrativa fragmentada e cíclica, trabalha constantemente a presença do choque entre corpos e espaços e abre caminho para inúmeras possibilidades interpretativas. Um filme em que a câmera registra personagens que se projetam nos espaços ao mesmo tempo em que os espaços se projetam nesses personagens. Trabalha simbolicamente a relação do ser humano com elementos básicos como a terra, a água, o ar e também as cidades e o campo. Funde os tempos, o que é real, o que é lembrado e aquilo que é imaginado. Tudo isso em imagens e em planos orquestrados por uma montagem precisa e pela força impressionante com que usa o corte e como isso proporciona uma ligação aguda entre a potência de um plano que se encerra com a força e a expectativa gerada pela chegada do plano seguinte. Paula não se preocupa em dar explicações e respostas, ela levanta questões, ela trabalha dentro das incertezas das imagens que nada mais são do que nossas próprias incertezas diante de uma vida e um mundo que não entendemos, nunca seremos capazes de compreender em sua complexidade, tanto naquilo que nos cerca, quanto naquilo que existe dentro de nós, em nossos processos identitários e existenciais.
‘Exilados do Vulcão’ tem como premissa uma mulher (Clara Choveaux) que descobre em meio a um incêndio provocado pelo homem que amava (Vincenzo Amato) fotos e um diário escrito a mão por ele. São pistas, signos isolados deixados por esse homem. E é a partir desse material fragmentado e de suas próprias recordações que ela irá percorrer uma jornada para tentar reconstruir o que ele viveu, com quem se relacionou, os lugares onde esteve. Inicia-se um processo de reconstrução do homem amado a partir de fragmentos, de memórias, de imagens, de textos. Ao tentar identificar quem era seu objeto amado, a mulher empreende uma busca também por si própria e como as arestas da relação entre os dois deixaram dúvidas ao mesmo tempo em que a ausência dele provoca dores, angústia e um vazio dentro da personagem de Clara Choveaux. A jornada dela será conduzida muito mais por aquilo que ela imagina e projeta sobre as pistas deixadas por ele do que por fatos concretos. Rostos em fotografias, passagens escritas a mão, nada traz certezas, não contam nada, apenas abrem possibilidades de leitura de uma mente, de um homem fragmentado, angustiado e vítima de uma doença grave. Paula acerta em cheio ao fundir os tempos da narrativa. Vemos Clara Choveaux presente fisicamente em cenas que ela imagina que aconteceram, a vemos observando o homem desaparecido em momentos que ela recria como se fossem passagens vividas por ele, ela o vê em encontros com outras mulheres, sozinho em meio ao campo, se deslocando por espaços amplos, interagindo com homens e mulheres que não sabemos quem são. É um filme abarrotado de espectros, são presenças fantasmáticas, mas que surgem em carne e osso e que vemos na tela se relacionando das mais diferentes maneiras tanto com Vincenzo Amato quanto com Clara. Ao mesmo tempo, a mulher lembra os momentos em que viveram juntos, eles se amando, se atraindo, se seduzindo, se confortando e se afastando.
O silêncio dos personagens é constante, eles falam por meio de suas presenças físicas, gestos, ações e, principalmente, por meio de suas expressões faciais. ‘Exilados do Vulcão’ é um filme de estudo do rosto, da geografia desses rostos, sem deixar de ser um longa de observação constante dos espaços e da relção desses espaços com os personagens. Se o rosto é uma paisagem como disse Godard, é nessa paisagem que Paula Gaitán vai buscar as sensações, as essências e os conflitos internos e externos de seus personagens. Mas o filme sabiamente intercala a presença forte desses rostos (que surgem diversas vezes ao longo do filme em belíssimos closes) com planos abertos, paisagens amplas, planos fechados de detalhes de objetos, de ambientes e de parte de corpos – muitas vezes nus. São esses espaços que são constantemente invadidos e ocupados pelos personagens, por seus gestos e suas prostrações, por aquilo que trazem de significante e incerto em suas faces. A fotografia é fundamental para consolidação da potência dos planos. Paula varia entre cenas escuras, luzes direcionadas a pedaços do quadro ou projetadas nos corpos dos personagens, sequências onde cores fortes como o vermelho e o azul preenchem todo o quadro com passagens em que a luz natural se impõe. Mas o que mais chama atenção é a presença do branco. Um branco que constantemente surge na tela e toma conta de todo o espaço, um branco que serve para criar imagens difusas, para provocar desfocamentos, para dar tons de abstração às imagens, para retirar a nitidez daquilo que estamos vendo.
‘Exilados do Vulcão’ é um filme lapidado por Paula Gaitán em seus mínimos detalhes. Desde a minuciosa construção de cada quadro, passando pela beleza compassada e sutil dos movimentos de câmera que sempre buscam a aproximação ou o afastamento em relação aos personagens e espaços até a forma com que posiciona a câmera sempre de maneira precisa, em enquadramentos funcionais que deixam abertas as possibilidades da relação entre o que está na tela com o extra-campo. O som é outro elemento fundamental, desde os ruídos, os sons diegéticos, as músicas e o textos em off (que misturam pensamentos da personagem de Clara Choveaux, textos lidos por ela no diário deixado pelo amante e por poesias e fragmentos de textos literários), tudo na banda sonora potencializa a preciosa mise-en-scéne de Paula.
O filme traz como fio condutor esse trajeto sensorial de uma mulher em busca de recriar, ou mesmo identificar e reconhecer um homem, ao mesmo tempo em que se vê incapaz de não entrar num processo que a leve a algum tipo de redefinição de si mesma e do mundo a sua volta. Uma jornada entre memórias, lembranças, situações imaginadas; entre o real e a ficção do real, entre o que foi o que pode ou poderia ter sido. Uma viagem em imagens e sons promovida por Paula Gaitán em meio às ruínas do tempo, dos espaços, entre as ruínas da memória e as ruínas da imaginação. Os planos e sequências autônomas de ‘Exilados do Vulcão’ são os fragmentos que conduzem Clara Choveaux e o filme em sua jornada. É um longa sobre o exílio, sobre exilados dentro dessas ruínas que constituem os fragmentos da existência, as incertezas da vida. É uma jornada de uma mulher por esses fragmentos existenciais de sua própria vida e da vida do homem que desapareceu – aquele que foi objeto de idealização, amor, projeção e desejo.
Como escreveu Walter Benjamin em ‘A obra de Arte na Era de Sua Reprodutibilidade Técnica’, “(…) o cinema faz-nos vislumbrar, por um lado, os mil condicionamentos que determinam nossa existência, e por outro lado assegura-nos um grande e insuspeito espaço de liberdade (…) o cinema fez explodir um universo carcerário com a dinamite dos seus décimos de segundo, permitindo-nos empreender viagens aventurosas entre as ruínas arremessadas à distância. (…) O cinema nega a velha verdade de Heráclito segundo a qual o mundo dos homens acordados é comum e o dos que dormem é privado”. Bem, é exatamente isso que Paula Gaitán faz em ‘Exilados do Vulcão’, esse filme extraordinário.
2 comentários