‘O Último Trago’, de Luiz Pretti, Pedro Diogenes e Ricardo Pretti

Por Fernando Oriente

o-ultimo-tragoUm filme de fantasmas, de espectros, de vivos adormecidos e mortos que lutam. Um resgate da ancestralidade como ressignificação, do conflito do ser humano dentro do caos, da perda de identidade no cotidiano material que só pode ser retomada naquilo que o tempo deixou em aberto, nas chagas mal curadas do passado, nas lutas apagadas e interrompidas pela história, mas vivas na transcendência dos valores. Corpos que carregam feridas, espíritos que carregam feridas. Os tempos que se estendem e se fundem. O deslocamento dos vivos é permeado pela consciência dos fantasmas, que chamam à luta, que reorganizam e abrem caminho para multiplicidade espaço temporal que evita o apagamento e exige a ampliação dos sentidos e da percepção. Uma consciência do peso material transcendente de existências que se prolongam no continuum temporal. Ambientes carregados de uma paralisia que só será capaz de ser rompida com a volta ao tempo que homem enterrou. ‘O Último Trago’ é filme de gesto, não o gesto diegético, mas o gesto de seus realizadores em se atirarem em uma construção fílmica baseada no valor simbólico e metafísico da imagem. A autonomia da imagem e dos planos como o próprio discurso.

O longa, assinado por Pedro Diogenes e pelos irmãos Luiz e Ricardo Pretti, trabalha em três movimento básicos, que se prolongam em novos movimentos internos que se abrem dentro de cada um deles. A primeira e a última passagens do filme são construídas dentro da simbologia, da autonomia significante dos planos, dentro de um conceito de obra em aberto. Entre essas passagens temos o meio do filme, em que a narrativa torna-se mais linear (sem nunca abandonar seu potencial simbólico) e a encenação é composta por um contato mais naturalista presente no registro das cenas e na transição entre planos e sequências. Um bom recurso aqui é a variação no uso da janela. No início e no fim do filme temos um quadro mais estreito, que reduz as bordas laterais e potencializa a alta carga simbólica e alegórica das sequências no interior central dos planos. O meio do filme é captado em scope, o que prolonga o campo diegético e aumenta a sensação de amplitude dos espaços. ‘O Último Trago’ é construído pela variação entre planos-sequência – altamente funcionais na revelação sensorial, dramática e espacial das ações, personagens e ambientes – e planos curtos, geralmente em ângulos mais fechados que concentram a dramaturgia na superfície do plano ou que servem para ampliar os sentidos de determinadas ações e gestos por meio da montagem e da sucessão entre os takes. Um filme em que a estrutura e a forma são fundamentais e conseguem promover resoluções de dramaturgia pelo uso preciso da linguagem própria e única da manipulação eficiente da gramática cinematográfica.

Os três movimentos do filme se projetam um no outro. Personagens/arquétipos assumem diferentes papéis ou reafirmam sua significação simbólica cada vez que retornam ou reaparecem em cena. ‘O Último Trago’ é um filme de resistência, que chama pela ação diante do caos, que busca redimensionar e resgatar o valor do ser humano em meio a um mundo desencantado. Seu discurso é político e atualíssimo, mas é construído de maneira sensorial, simbólica e metafórica. Os diretores não fazem uma radiografia do momento histórico em que vivemos por meio de representações realistas, mas pelas constantes inter-relações entre o que é sugerido pela simbologia e o que é mostrado em fragmentos, recortes da realidade direta das ações. As sequências que se passam em um bar isolado no interior do Ceara e que são o miolo do filme são registradas de forma mais realista, personagens são trabalhados e desenvolvidos dentro de suas características identitárias e existenciais. As relações entre eles são exploradas de maneira mais direta. Mas tudo o que se passa nesse longo trecho do filme é carregado pela que vimos antes e irá se prolongar e se abrir em múltiplas camadas de leitura e significação no trecho final.

o-ultimo-tragoO que temos nas sequências no bar são personagens apáticos, angustiados, paralisados e anestesiados dentro de um tempo morto que se arrasta. São tipos que vivem de rompantes: explosões de violência, canções interpretadas pela personagem Marlene, um personagem que toca seu violão sem parar, reflexões poéticas ou diálogos curtos e secos e uma tensão onipresente que toma conta de tudo e de todos. Esses personagens são os espectros vivos, os seres apáticos que são chamados à reação, à luta pelos fantasmas e suas representações. ‘O Último Trago’ inverte relações, o poder de ação, a potência de luta e resistência vem dos mortos, daqueles apagados pelo passado e que ressurgem para concluir seus percursos e chamar os vivos à retomada da consciência. O aparente naturalismo dessas passagens no bar é constantemente questionado e ressiginificado pela força metafísica e transcendente das sequências que abrem e fecham o filme; elas ganham uma dimensão que vai muito além do que está na tela, na simplicidade das ações e se prolongam dentro de uma relação que é estabelecida pela superposição de tempos, pela invasão simbólica de mitos e pelos fatos do passado que voltam à tona por meio dos personagens fantasmas – que sempre surgem como personagens/personas femininas, dando ao feminino um poder maior dessa representatividade ancestral, o que podemos ver como uma analogia à maternidade e ao papel central da mulher como fonte principal da vida, vida essa que se desloca no tempo e volta à tona para se reafirmar e guiar o destino presente e aberto. A consciência, o poder, a ação e reação vêm do passado, vêm desses fantasmas (dessas mulheres), vêm da ancestralidade e de tudo que foi soterrado e calado pelo tempo linear que apaga valores, ideologias, lutas e identidades. O tempo multifacetado – sobreposto e em constante desdobramento – é o centro de ‘O Último Trago’, é ele que sugere e cria a possibilidade de percepção e existência aos personagens e aos espaços por onde se deslocam. Mas em nenhum momento os diretores apontam um caminho óbvio para redenções, o filme é calcado num registro de não-conciliação.

O filme acerta e se torna mais forte pela entrega dos realizadores a um universo multidimensional, pela recusa à linearidade diegética, pela entrega aos simbolismos e metáforas, pela desconstrução dramático-narrativa, pela constante inserção de planos e sequências que surgem como elementos desestabilizadores, pelo fato de sempre tirarem o espectador de seu lugar de conforto, pelo constante prolongamento do que vemos na tela numa relação espacial que vai além do campo e do extra-campo e penetram o espaço das representações e leituras múltiplas. Um filme de forma, de entrega total à potência da imagem, que ganha demais pela fotografia primorosa e seu uso marcante da luz, das intensidades e variações dessa luminosidade e pela inserção de filtros. Sem contar a precisa encenação, a manipulação de climas e tensões e a construção altamente significativa dos quadros. ‘O Último Trago’ é mais um filme que vem para consolidar ainda mais Pedro Diogenes, Luis e Ricardo Pretti e o cinema de invenção e altamente original do coletivo Alumbramento entre o que temos de melhor no contemporâneo cinema independente brasileiro.

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