‘O Touro’, de Larissa Figueiredo

Por Fernando Oriente

o-touroUm lugar, seus significantes, sua mitologia, sua gente e seus espaços. A observação do real e do que está implícito dentro dessa realidade potencializada e ampliada pela ficção, pela representação desse real e pela gramática do cinema. ‘O Touro’, longa de Larissa Figueiredo, consegue alcançar momentos de grande intensidade não só pela feliz escolha de fundir ficção e não-ficção no mesmo tecido dramático e narrativo (o que o filme consegue realizar de maneira positiva), mas principalmente pela belíssima construção de planos e pelo trabalho minucioso de câmera. Por meio de planos sequências potentes, que estabelecem uma complexa junção entre o ser humano e os ambientes por onde eles circulam e se inscrevem fisicamente, uma variação criativa e funcional do posicionamento de câmera e das distancias focais, bem como pela maneira como planos saem de tomadas abertas, fecham em planos médios ou closes, circulam por meio dos tipos e do espaço e constantemente reorganizam o quadro dentro do mesmo plano ou por uma decupagem baseada em transições por cortes secos e pequenas elipses, toda a forma, a estrutura de ‘O Touro’ servem muito bem a intenção de Larissa tanto em “documentar” a Ilha de Lençóis, no Maranhão, e sua gente, quanto na trabalhar no campo da ficção e da mitologia.

É o trabalho formal, estrutural e gramatical de Larissa que tornam ‘O Touro’ um belo filme. O filme usa uma personagem fictícia, Joana (vivida pela atriz portuguesa Joana de Verona) que visita a Ilha de Lençóis para investigar a lenda de que Dom Sebastião, mítico rei português, não teria morrido e sim fugido para o litoral maranhense e na ilha fundado uma pequena comunidade da qual era o rei e, desde então, todos os que lá nasceram e nascem são seus descendentes. A personagem Joana é híbrida, ela vive sua persona ficcional ao mesmo tempo em que aparece como ela mesma, dentro de um registro documental, como uma estrangeira que investiga o lugar e sua gente e procura descobrir como vivem, o que fazem e pensam, ao mesmo tempo em que tenta conhecer sobre a história do lugar, seus mitos, suas crenças e lendas. Essa fusão, tão comum no cinema contemporâneo entre a ficção e não-ficção, tem resultados muitos bons dentro da solução da dramaturgia do filme. Embora, as vezes, ‘O Touro’ perca um pouco sua intensidade, essa é rapidamente recuperada e desemboca em sequências finais realmente poderosas e complexas, sequências essas em que a ficção e o lado mágico tomam conta totalmente do filme.

o-touroNesse constante intercâmbio entre o registro documental e a ficcionalização, Larissa estabelece um forte jogo entre a relação campo e extra-campo. Nas sequências em que o filme se atém a registrar documentalmente as pessoas e os espaços, a importância, a força dramática e a narrativa fixam-se no que está dentro do quadro, dando pouca ênfase ao espaço fora de quadro. Quando ‘O Touro’ muda seu registro e se concentra na parte ficcional, esse dispositivo potencializa demais o fora de campo e o que vemos na tela se relaciona de maneira intensa com o extra-campo, que surge carregado de possibilidades, mistérios e de uma sensorialidade metafísica, mágica e simbólica. Um filme em que a beleza surge de maneira intensa, mas nunca porque é procurada pela câmera. A beleza e o esplendor são fruto das ações e contemplações objetivas da encenação, da matéria do filme. O belo está por trás das pessoas, dos objetos, dos lugares, das ações; ele rompe as construções de cena e torna-se parte das sequências. Os personagens, principalmente Joana, fazem parte ou são integrados pela própria existência dos ambientes onde se encontram e que a câmera de Larissa perscrutina com movimentos cadenciados, ângulos múltiplos e diferentes distâncias focais. É constante a entrada e saída de personagens do quadro e  é notável a maneira como esses personagens são reincorporados à cena pela composição dos planos. A relação personagens, espaço e deslocamentos temporais é muito bem trabalhada pela diretora e são funcionais ao extremo na recepção e construção do discurso.

Ao investigar uma lenda portuguesa a personagem Joana, bem como a atriz Joana de Verona acabam por revelar (e viver) a mitologia, as tradições, as crenças e peso histórico complexo que existem na ilha. Com isso, o que ‘O Touro’ realmente nos revela é a força do lugar, de sua gente, de seus espaços e todo o poder simbólico típicos daquelas pessoas e do ambiente em que vivem. A lenda de Dom Sebastião é absorvida pela simbologia e pelos significantes culturais, históricos e metafísicos característicos da comunidade maranhense. Uma relação complexa se estabelece a partir da encenação e da montagem, relação essa entre o tempo presente e o tempo vivido, entre a materialidade e o lado físico do real apreendido ou representado pelas cenas e toda uma espiritualidade cheia de crenças, mitos, fé e lendas que se fundem no imaginário, nos modos de viver e pensar o mundo e a presença nesse mundo complexo.  Discurso e dramaturgia que têm sua força na imagem e no discurso intenso que essas imagens carregam e reproduzem, na construção dos planos e sequências, na movimentação da câmera entre pessoas e lugares, na elaboração dos quadros e no poder simbólico e representacional que esses recursos formais da gramática cinematográfica fazem surgir na tela. ‘O Touro’ é cinema, um cinema potente.

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