Por Fernando Oriente
‘Balada Para os Mortos’, de Lucas Sá
Em seu novo filme, Lucas Sá confirma a capacidade inventiva de sua construção cinematográfica. ‘Balada Para os Mortos’ pode ser visto como um curta sobre as perturbações e agressões externas que, a partir de medos e ameaças enraizados no inconsciente coletivo, tomam conta do cotidiano das pessoas e se tornam presença ameaçadora- bem como são materializados em imagem. Mas como estamos no campo do cinema, Lucas Sá irá – a partir de uma narrativa fragmentada que mistura gêneros e dispositivos – trabalhar com essas perturbações, medos e ameaças dentro da relação material entre as potências da imagem e seus desdobramentos tanto como significantes reais quanto como manipulações daquilo que pode ser visto e de como o que é visto pode ser tornado um significado. Como uma imagem perturba um espaço, como algo visível significa sempre mais do que aquilo que apenas representa como signo.
Os primeiros planos do filme, abertos, estáticos e filmados em belas construções de quadro, introduzem sutilmente um elemento de perturbação que nem todos percebem. Esses elementos irão se tornar centrais pelas primeiras cenas, que Sá constrói como um documentário, uma espécie de registro espontâneo que só é possível graças ao uso do suporte em digital. O tema central do filme é a violência e como essa violência é reconhecida por meio de imagens e se propaga circulando onipresente como uma constante ameaça na sociedade. Sangue, carne, pedaços de corpos, facas, ambientes tudo é associado pelas pessoas como materialização de agressão, como um devir natural da violência dentro do espaço e do corpo social. ‘Balada Para os Mortos’ usa tudo isso e, dentro de sequências sólidas e inter-relacionadas, manipula, provoca e levanta questões.
O curta se apóia na força de cenas díspares para fechar seu arco dramático de maneira criativa e eficiente nos planos finais. Acompanhamos sequências como um carro fúnebre em que luzes e música transformam num espaço festivo, uma aula de anatomia numa escola de medicina (com pedaços de corpos e carne de defuntos) e, principalmente, as cenas em que um personagem não identificado vai ao mercado, faz compras específicas aparentemente insignificantes e, ao chegar a sua casa, manipula tudo o que comprou para transformar em objetos (imagem) que irão mostrar-se, nas cenas finais, como os exatos elementos desestabilizadores que vislumbramos nos planos estáticos que abrem o filme e na sequência de documentário espontâneo que se segue.
Tudo no filme é calculado e sua estrutura em fragmentação causa um deslocamento no espectador, que se projeta como um curioso a examinar os fluxos de imagem questionando aquilo que vê, ao mesmo tempo em que tenta dar significados às micro-narrativas a partir de um repertório que é comum a cada um de nós no meio em que vivemos, com as constantes ameaças e perturbações externas que nos atormentam. Lucas Sá brinca e provoca com as imagens, na maneira como compõe o quadro e constrói o plano, nos enquadramentos (uma ótima variação de ângulos fechados e planos abertos), na forma como muda o tom e a cadência narrativa. ‘Balada Para os Mortos’ é instigante, criativo e mostra a força de um jovem cineasta que não tem medo de arriscar e experimentar.
‘A Propósito de Willer’, de Priscyla Bettim e Renato Coelho
Os diretores fazem dessa homenagem ao poeta Claudio Willer (nome seminal da poesia marginal e inventiva da cena paulistana desde o fim dos anos 1960) uma celebração do texto pela força única da imagem em Super 8. Belíssimos planos do centro de São Paulo, fragmentos do espaço urbano ganham uma textura única graças a granulação e as imperfeições da bitola em Super 8. Essa imagem torna-se uma camada espessa, uma materialização em luz onde o grão na película se projeta no espectador. A força sensorial e a beleza dessas imagens ao serem sobrepostas aos textos em off de Willer, lidos pelo próprio poeta ou pela diretora Priscyla Bettim, formam uma composição dialética que faz da imagem poesia.
Não é pelo simples fato de filmarem em Super 8 que os diretores conseguem a força e a beleza que vemos no filme. ‘A Propósito de Willer’ é um conjunto harmonioso de planos muito bem compostos, enquadramentos e movimentos de câmera belíssimos e ritmados, um uso preciso das variações da luz, a feliz mistura de cor e preto e branco na sucessão das sequências e uma montagem (em cortes secos e elipses) muito criativa. É toda a construção e a manipulação dos elementos da própria linguagem única do cinema que Priscyla e Renato fazem uso que conferem e se tornam a força propulsora das potências e da beleza do curta. Esses aspectos dão a dimensão imagética ideal para celebrar os belíssimos textos de Willer lidos em off, bem como o próprio autor, que aparece em várias sequências, filmadas pelos diretores ou em imagens retiradas de filmes de Carlos Reichenbach e Jairo Ferreira.
As sequências em que vemos estradas, praias e o mar se contrapõem e dialogam com as cenas urbanas e dão mais força aos textos de Willer que ouvimos. ‘A Propósito de Willer’ também resgata a força do cinema captado em película, principalmente a experiência visual cheia de texturas e com uma espessura que só Super 8 pode oferecer. Não é a toa que Priscyla Bettim e Renato Coelho já realizaram e continuam a realizar belíssimos filmes sempre captados nesse suporte único. Cinema como celebração das possibilidades da imagem e ao mesmo tempo uma homenagem e um resgate da beleza do trabalho de Claudio Willer.
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