Por Fernando Oriente
Os dois primeiros planos de ‘O Animal Cordial’ servem como uma aproximação a um espaço restrito em que todo o filme irá se desenrolar, lugar esse que não será jamais abandonado em sua crescente e sufocante claustrofobia. Quando vemos através da janela o interior do restaurante já quase vazio, prestes a fechar, é como se câmera de Gabriela Amaral Almeida desse a última espiada num ambiente antes de penetrá-lo e, nessa intromissão, carregar o espectador para a clausura isolada de um espaço em que nem personagens nem público terão como escapar. Aprisionados, nós e os personagens seremos testemunhas, agentes e cúmplices de uma explosão de violência. Violência bruta e da qual a diretora extrai o máximo de potência plástica sem se preocupar com justificativas narratológicas. O que passa a tomar conta da imagem é a materialização da brutalidade, o confronto físico e psicológico, o prazer e o impulso de aniquilar e subjugar o outro; reações que surgem a cada novo fato dado e que trazem uma amálgama de recalque exteriorizado, conflitos de classe e gênero, aliados ao prazer erótico de se mutilar a carne e anular o outro. Violência é elemento de gozo e poder, um poder frágil que precisa de mais violência para se manter e continuar a gozar.
As primeiras cenas de interior já estão carregadas de uma tensão que gradualmente sugerem fissuras dramáticas na imagem, transparecendo o desconforto e a animosidade com que as pessoas dentro desse restaurante se relacionam. Inácio, o dono do restaurante (Murilo Benício), despreza e é desprezado por todos seus funcionários, com exceção da garçonete Sara (Luciana Paes). Seu principal antagonista, fruto de enraizadas construções sociais baseadas nas hierarquias impostas entre opressores e oprimidos, é o cozinheiro homossexual Djair (Irandhir Santos). Os únicos clientes que jantam poucos minutos antes da “cozinha fechar” são um casal típico de uma classe média arrogante e um solitário que está mais preocupado em beber doses de uísque do que em comer. É o descaso, a suspeita e a antipatia com o outro que fornecem o tecido dramático das relações entre todos. É interessante notar como Gabriela Amaral faz de um restaurante com pretensões “gourmet” – esse espaço vendido e consumido pelas classes médias como local de lazer e prazer “sofisticado” – um ambiente de desconforto e de tensão desde as primeiras sequências. Existe no quadro, nas modulações da dramaturgia, a iminente sensação de brutalidade que virá à tona quando dois assaltantes invadem o restaurante.
A posição de predador e vítima é logo invertida, quando Inácio anula os assaltantes e passa a dar as cartas. Mas não é só os ladrões que passam a ser dominados por ele. Todos dentro do restaurante passam a ser controlados e ameaçados por Inácio. Aqui as tensões entre patrão e empregados, clientes e funcionários, classe média e pobres e de todos entre si começam a fugir de controle e são direcionadas ou reprimidas exclusivamente por aquele que controla a situação por meio da força, do poder contido na arma que empunha. Desse ponto em diante, Gabriela Almeida Amaral faz do que seria um simples roubo malsucedido um verdadeiro acerto de contas entre os instintos reprimidos (de classe, gênero, bem como de deslocamentos subjetivos) daqueles tipos enclausurados. A centelha provoca pela invasão dos assaltantes libera toda carga de violência que Inácio carrega, violência essa que irá se transferir gradualmente aos demais agentes desse jogo brutal.
Sem se preocupar em explicações psico-sociologizantes, ‘O Animal Cordial’ irá promover uma verdadeira explosão de brutalidade em que pulsões recalcadas se materializam em mortes, torturas psicológicas, sexo e expiações. Inácio torna-se um vingador de causa nenhuma, passa a eliminar e subjugar todos, sem distinção. É o típico homem branco e heterossexual brasileiro dos dias de hoje (cordial e “de bem”) que, perdido na banalização dos discursos de ódio que tomam conta de todas as esferas das interrelações, transforma em ação a violência e a vulgarização pela vida que carrega dentro de si – um opressor legitimado a oprimir.
O ponto forte que liga as ações, a tensão e o suspense do que está por se materializar na imagem está na personagem de Sara. Se de todos os tipos em cena o filme nas dá dúbias pistas de identidade, ela é a única de quem não temos rastros, não sabemos quem é – se esse é seu verdadeiro nome, qual sua ligação com os outros personagens e se tem ou não alguma coisa a ver com o roubo fracassado. Sem esse vínculo com o que poderia ser sugerido pelo extracampo, Sara é apenas a imagem que vemos na tela. Sua existência se resume a suas ações, gestos, inquietações, flutuações pulsionais, sua presença e suas transformações dentro do quadro. Acuada em um primeiro momento, ela vai se soltando a cada morte, ao sangue dos outros que é constantemente derramado e a cada promessa de novas agressões. Se une a Inácio e passa a ser sua cúmplice na espiral de brutalidade que toma conta da narrativa. Dessa cumplicidade nasce sua força e a sensação de um poder crescente, que se potencializa na pulsão erótica que a violência faz emergir nela e que culmina em uma trepada catártica com Inácio, com seus corpos sujos de sangue se contorcendo em meio aos cadáveres e as marcas da brutalidade que desarranjam todo o espaço. É no corpo de Sara em meio a uma situação caótica que está seu poder, seu gozo e a força que irá fazer com que entre os destroços de uma carnificina seja a última a ficar em pé e dar sequência às mutilações. Sua carne ferida e saciada irá terminar o processo de aniquilação dos demais corpos que seu chefe deu início.
Gabriela Almeida Amaral faz desse seu primeiro longa uma extensão do que havia construído em seus curtas e ainda vai além. Se no seu cinema anterior, em curtas como ‘O Terno’ ‘A Mão Que Afaga’ ou ‘Estátua’, já tínhamos a predileção por narrativas enclausuradas em espaços fechados e cheias tensão e horror psicológicos sugeridos, em ‘O Animal Cordial’ a diretora utiliza esses elementos de ponto de partida e insere, sem se esquivar, a violência gráfica que imprime na superfície das imagens. A cada tensão psicológica posta é seguida uma ação de brutalidade explícita. Aqui o sangue dá o tom; o vermelho passa a manchar o quadro e se incrustar no espaço dramático, os corpos têm suas carnes perfuradas, rasgadas e esmagadas. O sexo que era contido em pulsões reprimidas se materializa e o corpo que antes era resguardado pelas vestes agora aparece nu, na força e na beleza de Lucina Paes reafirmando o poder adquirido por sua personagem perfurando e cortando carne humana.
A câmera de Gabriela Almeida filma em ângulos fechados, se move na claustrofobia de um cenário restrito, fixa personagens, espaços e objetos em closes para depois abrir as distâncias focais jogando com o que é revelado de maneira nítida no centro do quadro ou nas variações de foco dos planos de fundo e nas bordas da tela. Todo o espaço interno dos enquadramentos é trabalhado em função das modulações dramáticas e das ações encenadas com vigor, bem como esses limites do que nos é dado a ver são orquestrados em função do que projetamos num extracampo que limita e se projeta para além das bordas da tela. Ao mesmo tempo em que não foge de materializar a violência na imagem, a diretora também trabalha com explosões de brutalidade que são percebidas vindas do fora de campo, por meio de sons e ruídos. A montagem trabalha com ações que são apresentadas na lógica linear de seu desenrolar ou por meio de pequenas elipses, pelas quais algumas situações não são mostradas e nos são reveladas apenas depois de ocorridas, em planos que materializam no quadro o resultado ou o desfecho daquilo que ocorreu entre um corte e outro. Toda a construção formal é articulada e cadenciada em função da tensão asfixiante que contamina os espaços, os personagens e a dramaturgia desde o início.
Sem panfletismo, por trás de tudo o que está em jogo nessa dramaturgia brutal restrita entre alguns poucos tipos (representantes de diversos gêneros, classes sociais e posições na estrutura social) e principalmente por meio dos intertextos contidos na violência das ações, ‘O Animal Cordial’ constrói um discurso político forte, um painel do Brasil nos dias de hoje, em que o outro não significa nada e os signos da alteridade são impossíveis de serem assimilados por indivíduos alienados e recalcados entre discursos de ódio, sentimentos de deslocamento, medos, arrogância de classe ou pelo simples fato de que o desprezo e a aniquilação do outro são formas de se auto afirmar numa sociedade à deriva e totalmente desigual – seja para se tentar manter a posição ou para se inverter a lógica de poder.