Por Fernando Oriente
Existe um ponto, um centro a partir do qual todo o discurso e a enunciação do novo longa de Hong Sang-soo são construídos: a luz. A luminosidade, suas intensidades, texturas e nuances, a maneira como ela condiciona toda a composição do quadro, evolui em harmonia ou oposição a dramaturgia e a narrativa, a forma como essa luz reflete as emoções e conflitos do interior dos personagens são a base formal e poética com que Hong constrói um de seus filmes mais pessoais e amargos. Se como diz Julio Bressane, “o devir do quadro é o devir da luz”, em ‘Na Praia à Noite Sozinha’ todo o tornar-se e o vir a ser, bem como as transformações dos personagens e ações, são condicionadas e reconfigurados pelas modulações da luz. É por meio de um elemento formal e estrutural de linguagem cinematográfica, que aqui assume o papel de dominante da composição discursiva, que o diretor conduz o espectador dentro de seu estilo característico de encenação. A luz de ‘Na Praia à Noite Sozinha’ é a luz de inverno, seja filtrada pelas nuvens do céu nublado de Hamburgo ou iluminando os espaços com a beleza melancólica em seu tom dourado a partir do céu azul na Coréia. Uma luz que suavemente emoldura os detalhes de um vaso de flor, penetra por janelas em ambientes internos ou acompanha os personagens em seus deslocamentos pelos espaços abertos, ao mesmo tempo em que, ausente nas cruciais cenas noturnas, é transposta em funcionalidade estética ao uso que Hong Sang-soo faz da luz artificial que invade a noite.
‘Na Praia à Noite Sozinha’ é dividido em três atos, cada um num espaço-tempo distinto e separado por elipses potentes. Acompanhamos a atriz Younghee logo após o término de seu romance com um diretor de cinema casado. Frágil, num misto e esperança e desilusão, ela vive o conflito de ainda acreditar na retomada de sua relação com esse homem e os indícios de que esse amor não será nunca consolidado. Em sua jornada por esses três diferentes lugares, primeiro a cidade de Hamburgo na Alemanha – em que passa os dias se deslocando pela cidade ao lado de uma amiga coreana moradora de Hamburgo que conheceu na viagem – e depois em sua volta a Coréia do Sul, onde reencontra conhecidos e amigos do passado em uma cidade no litoral até a última parte do filme, em que se hospeda em um hotel de frente para a praia, Younghee está sempre à deriva, tanto geográfica quanto existencialmente.
Sua interação com os demais personagens reflete seu estado de espírito, trata cada um que cruza seu caminho com um misto de afeto e ressentimento. Projeta neles suas próprias frustrações e vê em cada um aquilo que ela própria se tornou, foi incapaz de se tornar (mas que não aceita) e o conformismo com que o ser-humano é obrigado a lidar para sobreviver em um mundo que paixões, desejos e ambições têm que ser reprimidos por forças que fogem do controle e oprimem as pulsões e ilusões de autorrealização, bem como as ideias utópicas de que poderemos um dia vir a ser ou viver aquilo que sonhamos para nós mesmos e nossas vidas. A força de Younghee está em ir na contracorrente e não aceitar o que o destino apresenta a ela, num misto de fúria inconformada e dor resignada e que a faz se distanciar/discordar do modo como os personagens com quem interage aceitam a submissão e anulação existencial de seus desejos. Mesmo sabendo de sua condenação, ela revida com sua agressividade não conformista.
Novamente Hong Sang-soo trabalha os deslocamentos físicos de seus personagens como reflexo das instabilidades e da volatilidade dos tipos em processos de crise e questionamentos existenciais, que, ao se afastarem de seus habitats cotidianos, procuram se redefinir, refletir e buscar respostas em lugares distintos, bem como dentro de si mesmos. O confronto com novos ambientes, promove a liberação de sensações, pensamentos e ações até então recalcados. A inscrição do tempo vivido em novos espaços desloca os movimentos internos dos personagens, notadamente de Younghee, em direção a uma liberdade espaço-temporal que se oferece como possibilidade de novas auto definições de subjetividades fraturadas.
Como em toda sua obra, Hong constrói a evolução dramático-narrativa de ‘Na Praia à Noite Sozinha’ sobrepondo momentos de contemplação – em que a câmera acompanha os personagens em ações corriqueiras, observações e reflexões silenciosas e movimentação por espaços internos e externos – com cenas em que a palavra toma conta da diegese por meio de longos diálogos que vão de simples conversas afetuosas a conflitos verbais violentos; que em ‘Na Praia à Noite Sozinha’ atingem uma virulência extrema por meio de rompantes discursivos carregados de fúria, frustração e raiva – Younghee é uma das personagens mais agressivas já vistas no cinema de Hong Sang-soo, uma mulher forte que extravasa suas dores e conflitos internos por meio de uma agressividade verbal que mistura sinceridade sem freios e uma urgência em encontrar soluções para seus dilemas morais e desejos conflituosos frustrados que dilaceram seu estar no mundo.
Mais uma vez, é notável o trabalho de câmera de Hong Sang-soo, que abusa de planos longos, movimentos de aproximação e recuo e constantes variações de distâncias focais dentro do mesmo take, compondo as tensões dos diálogos e dos dramas sem usar o corte e a relação campo/contra-campo. Hong resolve todos os conflitos dentro do mesmo plano, na maneira como compõe e reconfigura o quadro. Ao mesmo tempo, ele faz da câmera um elemento presente, quebra a ilusão do dispositivo por acentuar e deixar explícita a presença física da câmera e seus deslocamentos e movimentos, coloca na superfície da encenação a mecânica das aproximações e recuos, os deslizamentos laterais da imagem e, no caso de ‘Na Praia à Noite Sozinha’ o diretor acompanha a violência dos diálogos com uma movimentação brusca dessa câmera personagem, que vai de um personagem a outro de maneira rápida, em travellings curtos e secos que desestabilizam o quadro e acentuam tanto a presença do tipo que fala em enquadramento como as reações daquele que responde no extracampo.
A força da mise-en-scéne que Hong Sang-soo imprime nas cenas de diálogo – dos mais serenos e banais aos mais intensos -, com todo esse complexo trabalho e câmera e reorganizações de quadro, permite com que o discurso do filme seja ampliado profundamente em suas texturas. Organicamente, Hong faz de seus diálogos momentos cruciais para a evolução narrativa e para as soluções dramatúrgicas, ao mesmo tempo que que discute questões existenciais, comportamentais, políticas, afetivas e próprio cinema e fazer cinema. Intercalados com as sequências contemplativas – igualmente encenadas de maneira preciosa -, os longos diálogos, as conversas corriqueiras, as discussões acaloradas formam camadas de observação do mundo, de desnudamento emocional de personagens e de construção dramática de conflitos e relações. A força da palavra é sempre propulsora dos tecidos de discurso fílmico, sempre aliada à solidez e à significância das imagens registradas com primor e detalhamento – imagens que, da mesma forma, são promotoras de materialização de todas as discussões e temas presentes na enunciação do filme. Tudo emoldurado, proposto e configurado a partir da luz e suas modulações.
‘Na Praia à Noite Sozinha’, assim como cinema de Hong Sang-soo, é resultado da força da dialética presente entre a palavra, o texto falado e a estilística das composições de imagens, tudo aliado a uma primorosa construção espaço-temporal que promove as ações, as texturas dos personagens e o estar no mundo dentro de temporalidades e durações que se redefinem na materialidade sensorial das presenças, dos movimentos e gestos que ocupam os espaços captados e configurados pela câmera. Um cinema de potência altíssima de um dos maiores realizadores do cinema contemporâneo.
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