O novo longa de Abel Ferrara é de uma contemporaneidade espantosa. Seus temas, a maneira como Ferrara encara esses temas e arquiteta seu discurso e as possibilidades de leitura que surgem desse processo não só interagem com o estado das coisas do mundo atual como chegam a representar imagens, significados e sensações que traduzem a época e os valores em que vivemos. “Bem-Vindo a Nova York’ é sobre poder, carne (corpo), dinheiro, impulsos, relações de poder. No filme temos escancarada a incapacidade da essência humana ser dominada, muito menos domada, temos o sentimento de vazio do homem contemporâneo. Tudo com a intensidade e o jorro de encenação visceral laboriosamente construída de Abel Ferrara.
Ferrara parte da história real de Dominique Strauss-Kahn, antigo chefe do FMI e nome certo para concorrer (e vencer) as eleições para a presidência da França, que foi preso e acusado de assédio sexual a uma camareira de um hotel em Nova York em 2011. Esse mote envolvendo figura do alto escalão do poder mundial serve de ponto de partida para Abel Ferrara desenvolver um estudo sobre as relações de empoderamento na sociedade que vão além do dinheiro. Elas passam pelos impulsos desse poder, as ações desenfreadas que os que detêm essa força impõem a todos e a tudo o que está em seu entorno. Ter poder é conquistar, é consumar desejos, é fazer com que qualquer pulsão e mesmo obsessão seja satisfeita de maneira imediata, sem esforço, mecanicamente.
No centro dessa ciranda está o personagem Devereaux, o Dominique Strauss-Kahn de Ferrara interpretado por Gerard Depardieu em uma de suas grandes atuações na carreira, que remete muita ao vigor com que o ator se entregava aos papéis que vivia em filmes de Pialat e Marco Ferreri, entre outros.
Muita da eficácia do personagem de Devereaux vem de sua figura, da aparência obesa e desleixada, das dificuldades em se mover em meio à gordura excessiva do corpo, a respiração ofegante, o olhar injetado de fúria quanto tomado por seus impulsos sexuais. A complexidade do tipo criado por Ferrara no corpo e nos gestos de Depardieu vem das nuances de sua construção emocional. Embora surja na tela como uma besta predatória, homem de poder e força, além de intelectual brilhante, Devereaux é uma figura vazia existencialmente, um sujeito desencantado. Sua personalidade é movida por uma imensa falta, mais do que vazio, seu personagem carrega dentro de si a falta, a incompletude de algo que foge a mera consumação de seus impulsos e ao sucesso na carreira. Os excessos do protagonista de ‘Bem-Vindo a Nova York’, como o de quase todos os personagens de Ferrara, buscam suprir esse sentimento da falta, da incompletude que esmaga seus tipos.
Em seu cinema, Ferrara busca a força e o impacto sensorial do momento, das ações dentro de cada plano. Ele valoriza as obsessões humanas e a intensidade com que essas obsessões tomam conta do agir e marcam emocionalmente seus indivíduos. Tudo isso sem negligenciar as sensações de culpa, consciente ou não, bem como as sequelas e cicatrizes que os personagens carregam. Ninguém fica impune no cinema de Abel Ferrara. A ética religiosa complexa e seus desdobramentos é matéria onipresente na obra do diretor.
Por mais que o personagem de Devereaux mostre seu total desprezo pelo mundo e pelas pessoas a sua volta, seu desencanto existencial, a crença cínica na falência dos valores que um dia acreditou são características fundamentais de sua personalidade. Em “Bem-Vindo a Nova York’, Ferrara cria uma das mais belas cenas do filme exatamente em um monólogo de Depardieu em que ele discorre sobre sua formação ideológica nos tempos de estudante e depois professor e como o desencanto e a falência na crença religiosa, quase sagrada dessa ideologia fez com que se tornasse um homem amargo, que carrega suas cicatrizes interiores nos excessos que vão de uma trepada a outra, de uma suruba a próxima gincana sexual. É na carne, na possessão da carne e dos corpos de incontáveis mulheres (de estudantes a putas, de jornalistas a empregadas de hotéis e quais outras mais que aparecem a sua frente) que Devereaux exerce seu poder, um poder melancólico que Ferrara ressalta no contraste da beleza das formas dessas mulheres com a gordura e a flacidez obscena do corpo de Depardieu, bem como em seus limites físicos.
As relações de poder em ‘Bem-Vindo a Nova York’ são trabalhadas por Ferrara em dois registros distintos. Na primeira parte do filme, vemos Devereaux em diferentes situações em que consome sexualmente inúmeras mulheres, interage e aplica fisicamente seus impulsos sobre corpos que estão a sua disposição para o consumo. São cenas longas em que transa com prostitutas em quartos de hotel, participa de jogos eróticos regados a bebida, sorvetes e estimulantes sexuais em meio a seus amigos e garotas de programa, assiste duas mulheres se pegando enquanto interage com elas dentro de suas limitações, além de passar a mão, bolinar e se esfregar em quase toda personagem do sexo feminino que cruza seu caminho. Ferrara filme isso de maneira crua e direta, em ângulos fechados e movimentos de câmera que acompanham o fluxo das ações.
Em um segundo momento, quando Devereaux é preso, passamos a acompanhar os tormentos do todo-poderoso chefão do FMI, a perda do poder e do direito de fazer tudo aquilo que bem entende e deseja, a inversão da lógica desse poder. Ele é capturado, algemado, levado de uma delegacia a um presídio. A câmera apreende sua figura trancada em celas, atrás de grades, o vemos através de vidros blindados, barras de ferro, espaços claustrofóbicos.
Em uma das mais emblemáticas sequências do filme, Ferrara escolta de perto, em longos planos, o trajeto de seu protagonista pela cadeia a que é conduzido. Acompanhamos suas caminhadas por corredores, passando por grades, tendo suas impressões digitais tiradas, sua foto com crachá de presidiário sendo clicada por policiais que pouco se importam com ele. E, para coroar essa passagem fundamental do filme, vemos Devereaux se despindo na frente dos policiais, retirando cada uma das peças de sua roupa com as dificuldades que o físico lhe impõe até termos sua figura obesa totalmente nua em cena. A fragilidade de sua imagem nua, a ausência simbólica de todos os elementos que caracterizam seu empoderamento diante do mundo está revelada de forma chapada na tela. Novamente Ferrara compõe seus planos de forma direta, frontal.
Os jogos de poder prosseguem, a importância da figura de Devereaux é salva por aqueles que o colocaram no poder. Esses são personificados na personagem de Simone, sua bilionária esposa e mentora política, a responsável por planejar sua carreira e que almeja mais poder por meio do marido, o futuro presidente da França. Simone sabe de todas as características emocionais e condutas de seu marido. Aceita sua promiscuidade, seu vício por sexo (como ele mesmo admite). Ele é, nas mãos da mulher, um fantoche, mais uma peça na consumação e manutenção do poder econômico e político nas mãos daqueles que controlam o mundo: as corporações, os investidores, o Capital.
O cinema de Abel Ferrara tem muita influência de Samuel Fuller. Os dois colocam as emoções e a carga dramática de maneira frontal ao espectador. Está tudo na superfície da tela, nessa frontalidade da mise-en-scène, com fúria, intensidade e sem meio termo. São emoções traduzidas de maneira explícita na gênese dos planos, no centro das cenas, que subvertem noções preconceituosas do bom-gosto em função da força sensorial do cinema. Ferrara, como Fuller, trabalhada na potencialização dos excessos e na capacidade transcendente desses excessos.
Como diz o crítico e pesquisador Rui Gardnier, curador de uma retrospectiva completa dos filmes de Abel Ferrara que aconteceu alguns anos atrás em São Paulo e no Rio: “Em Ferrara o sujeito aspira ao sentimento do absoluto, almeja a completa dissolução do sujeito no mundo (ou no nada)”. Ferrara é o cineasta dos excessos em função da dramaturgia, na base do discurso fílmico. É um cronista dos conflitos internos entre os impulsos, o desprezo e a culpa, a religiosidade, a crueldade e o mundano. O sublime que nasce do aviltamento questionador dos paradigmas morais.
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