‘Cemitério do Esplendor’, de Apichatpong Weerasethakul

Por Fernando Oriente

'Cemitério do Esplendor'Após mais de uma década depurando, relendo, procurando novos e sutis meios de afirmar seus mecanismos estéticos, formais e discursivos já solidificados, e ao mesmo tempo sempre se mantendo fiel aos seus temas, às estruturas de mise-en-scéne e opções formais, Apichatpong Weerasethakul (esse diretor tailandês de talento imenso, grandes filmes no currículo e um dos mais criativos e originais cineastas do cinema contemporâneo) chega ao seu novo longa-metragem, ‘Cemitério do Esplendor’, com o mesmo frescor, provocando nos espectadores constantes estados de maravilhamento diante do que vê e o que não vê na tela, elevando a aparente simplicidade de sua encenação naturalista a camadas de significação complexas e abertas aos mistérios da existência, ao constante paralelismo entre o naturalismo das cenas e todo um lado espiritual, fantasmático e a uma atmosfera mágica que se instaura de maneira onipresente em todo seu filme, que contamina cada fotograma e se projeta dentro e para além da matéria fílmica. Cineasta dos detalhes (e do que se esconde por trás desses detalhes), dos tempos longos, das texturas por trás da aparente banalidade do cotidiano, Apichatpong busca a beleza do existir, do descobrir o mundo e se auto-descobrir dentro das potências da existência, o encantamento e a naturalidade com que a vida pode ser vivida de maneira muito mais plena quando a beleza está além daquilo que a razão e a simples observação escondem.

Embora todos os seus filmes, principalmente desde ‘Eternamente Sua’ (2002) sejam excelentes, ‘Cemitério do Esplendor’ é talvez seu melhor filme desde ‘Mal dos Trópicos’ (2004). O novo longa tem como foco narrativo central um grupo de soldados que sofre de uma misteriosa doença que os mantêm constantemente dormindo, em um sono profundo e sereno em que nada é capaz de acordá-los. Mantidos em um dormitório que serve de enfermaria, localizado em um novo hospital que passou a existir onde antes era uma escola, eles são acompanhados por enfermeiras, familiares e voluntárias. Dentre essas voluntárias está Jen, uma mulher madura, que sofre de uma deficiência física – tem uma perna disforme, dez centímetros mais curta que a outra e anda lentamente com a ajuda de muletas. Jen é uma ex-aluna da escola onde hoje funciona o pequeno hospital. Na enfermaria ela se dedica a cuidar de Itt, um jovem soldado adormecido que não recebe visitas. Lá ela conhece Keng, uma garota com poderes mediúnicos capaz de se comunicar com os soldados adormecidos.

A vida de Jen é de uma entediante simplicidade, em que ela dedica-se ao seu trabalho como voluntária, vive com um segundo marido (um militar americano aposentado) e faz trabalhos de crochê, meias coloridas para bebês que tenta vender para ajudar na renda. Tanto ela quanto os demais personagens que vemos na tela (médicos, enfermeiras, pacientes do hospital, o marido americano de Jen) parecem viver em eterno estado de torpor, em que seguem suas rotinas de maneira mecânica, distantes um dos outros e distantes de suas próprias emoções. Toda a construção da parte inicial do filme é composta por Apichatpong registrando detalhadamente e de forma distante os pequenos gestos, as conversas breves, os deslocamentos e as ações dos personagens. Quando Jen torna-se mais próxima de Keng e essa passa a lhe contar o que escuta dos soldados adormecidos, quando conta que os vê em suas outras vidas, em seus sonhos, dentro de múltiplas realidades paralelas é que se inicia a jornada de iniciação de Jen em direção a uma maior compreensão do mundo e de si mesma.  Isso coincide com o fato dos soldados começarem a despertar e passarem algumas horas acordados antes de caírem novamente em sono profundo. Nesse meio tempo, enquanto Itt está acordado Apichatpong começa a construir uma complexa relação que irá se estabelecer entre ele e Jen.

Os dois almoçam juntos, contam fragmentos de suas vidas um para o outro, brincam sobre suas origens. Começam um processo de abertura, de desnudamento de suas emoções. Surgem afinidades, admiração, atração, sentido de proteção e uma confiança mútua entre eles. O tímido soldado e a resignada voluntária deficiente passam a entrar em contato com suas frustrações, desejos, esperanças e arrependimentos ao se abrirem um a ao outro, ao mesmo tempo em que encontram o prazer em compartilhar suas existências. Apichatpong instaura lentamente um processo de identificação e espelhamento entre eles que irá fazer com que se abram não só em relação ao outro, mas para si mesmos, passem a olhar para dentro, a aflorar seus sentimentos e perceber (mesmo que de maneira incompleta) seus desejos e complexidades. A sequência em que Jen e Itt vão jantar em um movimentado mercado da cidade, cheio de luzes artificiais, pessoas que passam de um lado para o outro, um burburinho constante da vida noturna que toma conta da cena enquanto os dois conversam e vão se abrindo cada vez mais um ao outro é uma das mais belas cenas do filme. O registro direto que Apichatpong faz dos ambientes, das pessoas, do movimento interno dos planos tudo é carregado de uma beleza singela que traduz uma alegria e um afeto partilhado pelos dois personagens que aproveitam a simplicidade do momento, a fugaz alegria que compartilham em meio a toda uma agitação de pessoas e sons. Eles são uma pequena parte de um mundo que pulsa, mas dentro desse meio são suas individualidades, emoções e seu crescente envolvimento afetuoso que tomam conta das sequências.

Ao mergulhar dentro de si mesma, Jen passa a perceber não só a complexidade de sua existência, mas começa a sentir as relações espirituais e as manifestações mágicas e o encantamento do mundo. O convívio tanto com Itt quando este está acordado quanto com a jovem médium Keng vão abrindo seus sentidos e suas percepções. Após visitar o templo de duas deusas e oferecer oferendas em meio a suas orações, Jen recebe no dia seguinte, enquanto come sentada sozinha no banco de um parque, a visita das duas deusas, que se materializam fisicamente em duas belas jovens vestidas em roupas simples e começam a conversar com ela. Após um breve instante de estranhamento, Jen passa a conversar naturalmente com as duas jovens, com duas entidades espirituais mortas que se apresentam em carne e osso em sua presença. O diálogo que se segue é revelador, as deusas contam que os soldados nunca irão se curar da doença do sono, já que todo o espaço onde ficam o parque e a escola transformada em hospital era um antigo palácio e exatamente embaixo da enfermaria onde dormem os soldados se encontrava o cemitério dos reis guerreiros, que usam a energia dos soldados, ao manterem-nos adormecidos, para continuarem lutando suas batalhas.

Cemitério do EsplendorSão dois tempos, múltiplas dimensões que convivem ao mesmo tempo. A realidade do tempo presente em que vive Jen e os soldados adormecidos e o tempo dos reis, das batalhas. No cinema de Apichatpong os tempos se fundem no mesmo instante e ele coloca tudo isso na superfície do filme, por meio da encenação direta e naturalista do mundo como o enxergamos, mas que por meio de sugestões, da construção de atmosferas que transcendem a simplicidade do registro das imagens e pelos climas sensoriais que o diretor cria sem abdicar da mise-en-scéne naturalista, além do que nos que é revelado nos diálogos, naquilo que é narrado pelos personagens, mas que não vemos.

Apichatpong instaura o mágico, o metafísico dentro das imagens secas da realidade que filma. Sugere tudo por meio de falas, pelas reações, gestos e expressões dos personagens, pelos tempos longos e reflexivos das sequências e da evolução narrativa, pelo apuro e destaque dado aos ruídos e sons diegéticos dentro da banda sonora, pela variação da luz natural, seja a luminosidade clara, branca e chapada que toma conta da tela nas cenas diurnas, seja pela luz difusa dos crepúsculos, seja pelo uso da incidência calculada das luzes artificiais e das penumbras nas sequências noturnas. O filme (bem como a maioria dos trabalhos do diretor) é construído em longos planos estáticos, com ângulos abertos (ele evita ao máximo os closes) que permitem que se vejam no quadro os personagens inseridos dentro do espaço, sofrendo a influência de outras ações e personagens que entram e saem de cena, ou se mantém nas bordas do quadro. A própria presença dos elementos imóveis, objetos, plantas, lagos, terra, grama, prédios e casas contextualizam de maneira mais vasta a presença reduzida dos personagens em meio à amplitude do mundo, aos limites dos espaços que extrapolam o campo e se projetam no fora de quadro.

As passagens, as fusões entre os campos do mundo material e físico e o universo do espiritual e fantasmático – habitado pelos mortos, entidades espirituais e pelos espaços que já não existem mais fisicamente – são feitas por Apichatpong dentro dos mesmos planos, das mesmas sequências. Tudo sem nenhum truque ou pirotecnia visual. Esses mundos convivem dentro das mesmas imagens naturalistas do diretor e se materializam para o espectador no interior da encenação naturalista e direta, sejam por meio do que é dito ou sugerido, pelos gestos, olhares ou a simples aparição física de personagens vindos de outros tempos, de outras dimensões e que contracenam com os protagonistas do filme diretamente. Os dois mundos convivem constantemente no filme e essa convivência é tratada com extrema simplicidade e naturalidade. Logicamente que a encenação, a construção de planos e cenas de Apichatpong são carregas por uma atmosfera sensorial, por pequenas e emblemáticas imagens e situações que indicam a constante presença da coexistência simultânea entre esses dois mundos, que indicam a existência de algo muito além do que as simples imagens revelam.

Em ‘Cemitério do Esplendor’, o momento mais forte, de uma beleza extraordinária, que indica os mecanismos como a presença do metafísico é inserida em meio aos ambientes filmados, são os planos estáticos em que vemos os soldados adormecidos na enfermaria e as luzes de neon que estão colocadas ao lado de cada leito vão trocando lentamente de cor (vão do vermelho ao verde, desse para o azul, depois para o amarelo e assim por diante). Esse registro direto, simples, belíssimo e poético das potências da luz, do movimento dessas luzes (que assumem materialidade física) ao iluminar artificialmente os espaços escuros e inundarem os ambientes com sua presença sensorial contamina as cenas de uma beleza que transcende o naturalismo e remete a significados mais complexos, ao mistério que se esconde por trás da aparente normalidade, que estão ligados a um processo de difusão e de percepções primárias e que são estendidos. Essa variação das luzes artificiais e suas cores fortes passa a tomar conta das ruas e em alguns poucos planos externos inseridos pelo diretor, que registram cenas corriqueiras da noite na cidade, vemos a mesma variação de luzes e cores tomarem conta do quadro, de espaços isolados dentro de uma cidade que segue sua rotina sem se dar conta dos elementos fantasmáticos que se inserem na aparente normalidade espaço-temporal. Apichatpong projeta de maneira direta, por meio do recurso das luzes, os elementos mágicos para fora do ambiente dos soldados adormecidos e mostra que essa convivência entre o físico e o espiritual se projeta para todos os lados. É o encantamento tomando conta do plano, penetrando as camadas sensitivas de representação.

Mas a sequência mais sintomática dos procedimentos de encenação de Apichatpong para fundir a realidade e o espiritual dentro das próprias cenas de registro naturalista acontece quando Jen e Itt estão tomando um lanche e conversando no parque vizinho ao hospital. Subitamente o jovem soldado cai no sono, Jen sai para caminhar e encontra Keng. As duas voltam onde Itt está adormecido e a jovem médium passa a ouvir do soldado adormecido o que ele está vendo: o antigo palácio, seus aposentos, seu luxo. Keng pergunta se Itt pode mostrar a ela todo o esplendor do que está vendo, do que não é visível ao olhar de quem apenas vê um parque meio abandonado à beira de um lago. Keng incorpora Itt, que toma conta de seu corpo e parte para uma caminhada com Jen. Vemos as duas andando e Itt, dentro do corpo de Keng, vai narrando detalhadamente cada aposento do palácio, os detalhes da decoração, a altura dos tetos das salas e quartos, as passagens e portas que ligam corredores aos diferentes ambientes luxuosos e seus ornamentos, espelhos, pias de pedra preciosa, um trono de ouro, uma cama esculpida na madeira. Apichatpong não nos mostra nada disso, tudo o que Jen e o espectador vêem nas imagens é o parque, seus caminhos de terra, seus bancos de pedra, suas árvores e esculturas pobres. Keng narra em detalhes o que vê do castelo ao mesmo tempo em que Jen comenta sobre o que vê do parque. Enquanto a jovem narra o luxo e a beleza de um espaço pertencente a outro tempo, preso em outra dimensão, Jen comenta sobre a vegetação, sobre as orquídeas que plantou há anos em uma árvores, sobre como uma escultura a faz lembrar de sua infância nos tempos da guerra entre a Tailândia e o Laos. O espectador e Jen vêem apenas o parque, filmado de maneira direta por Apichatpong, mas pela construção de cena, pelos relatos de Itt dentro do corpo de Keng, tanto nós quanto Jen projetamos e sentimos aquele outro tempo, aquela outra construção, outra dimensão, aquele outro olhar, sentimos a presença e os significados do palácio, os tempos distintos convivendo dentro das mesmas imagens, dividindo os planos. “O mágico é a própria coisa, é o que está na materialidade da cena. O mistério aqui é claríssimo, o morto eternamente presente e o mítico diafanamente transparente”, essa frase de Luiz Soares Junior, um dos críticos e pesquisadores responsável por algumas das melhores leituras da obra de Apichatpong resume de maneira precisa as potências da cena.

Cemitério do Esplendor, de ApichatpongNo desfecho da cena, logo após Keng pedir para Jen abrir bem os olhos e ver além daquilo que sua visão limitada a permite constatar, Jen passa a projetar e introjetar os diversos tempos, a sentir a materialidade da dimensão mágica que se esconde por trás das aparências. Ao mesmo tempo, Jen começa a se perceber de maneira mais complexa, abre mão de seus mecanismos de defesa e passa entender as complexidades e incertezas que constituem sua própria individualidade, seu ser, sua existência. Uma interação intensa e física entre Itt no corpo de Keng e Jen, quando essa levanta a saia e mostra sua perna deformada (num processo de desnudamento diante do outro) e começa chorar, irá fechar toda a sequência. Assim se fecha o processo de iniciação, de auto-descobrimento e de percepção das complexidades e mistérios, da magia que está presente constantemente em meio ao banal da vida real e dentro de cada um.

Jen sentada imóvel em um banco, vendo crianças jogarem futebol, de olhos arregalados e uma expressão que mistura perplexidade e arrebatamento fecha o filme. Um olhar, uma expressão que resumem todo o discurso de Apichatpong e se projeta no espectador. Nada é apenas o que vemos. O cinema único, encantado, direto e composto de camadas significantes que vão muito além das imagens de Apichatpong atinge mais uma vez o sublime.

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