Por Fernando Oriente
Tudo nesse primeiro longa de ficção de Aly Muritiba gira em torno da obsessão. Um filme narrativo, que trabalha a evolução dos acontecimentos com competência e dentro do que a evolução dessa narrativa proporciona em questões de tensão, incertezas e suspense para o espectador. Nunca sabemos quais serão as ações que veremos, Muritiba sempre estende o desconforto por criar constantemente possibilidades dramáticas prontas para se eclodirem na tela, mas que na maioria das vezes são adiadas, fazendo o enredo continuar cada vez mais carregado pelas não-ações. A história toma rumos inesperados, em que a promessa de explosões de violência é sempre adiada, mas intensificadas a cada instante no decorrer do filme. Um filme que trabalha dentro de códigos do cinema de gênero, calcado numa encenação prodigiosa. A composição dos planos é sempre funcional e poderosa, a evolução lenta da angústia é trabalhada detalhadamente por meio da construção dos planos longos, dos ótimos enquadramentos, da decupagem e da montagem final. Um filme de espera, que se adensa no aspecto psicológico das tensões e mantém um constante clima dedesconforto e expectativa.
O filme é construído todo a partir do protagonista Fernando e são suas obsessões, sensações e ações que irão conduzir tanto a narrativa quanto as modulações dramáticas. No início do filme o vemos em melancólica situação de luto pela recente morte de sua mulher, cuidando de seu filho único e trabalhando como fotógrafo da polícia. Fernando é obcecado pela mulher morta, faz rituais em sua homenagem e que tentam reaproxima-lo dela mesmo após a morte. Dorme ao lado de suas roupas, as pendura cuidadosamente em cabides quando levanta da cama, coloca seus sapatos em diferentes cômodos da casa como se para materializar sua presença por meio de objetos, preencher o vazio por meio desses pequenos e repetitivos gestos. Ele passa a ferro os vestidos da mulher, guarda cuidadosamente suas roupas no armário, mantém inúmeras fotos dela pela casa. Ela é uma ausência que se torna, por meio da obsessão de Fernando numa presença quase material dentro do filme. Certo dia ele encontra uma caixa com fitas VHS no escritório da mulher morta. Passa a ver os vídeos sem parar. Assisti-a dançando numa apresentação de escola quando era criança e em diversas outras situações e momentos de sua vida que foram registrados em vídeos caseiros. No meio das fitas, Fernando encontra um vídeo em que sua falecida mulher aparece fazendo sexo com um amante, passeando com ele, mostrando os dois na rua e nos lugares em que visitam. O melancólico homem em luto entra em surto, desespera-se, mas Muritiba consegue construir essa passagem dramática com muita competência, evitando arroubos sentimentalistas e explosões de dramaticidade cênicas. O personagem de Fernando é, e continua a ser durante todo o longa, fechado, preso dentro de um turbilhão de sentimentos intensos que interioriza de maneira quase patológica, esconde ao máximo suas emoções e seus sentimentos.
As imagens em VHS, com sua captação ruim e texturas típicas do vídeo são usadas para dar materialidade à memória e ao passado dentro do filme. Após o golpe da descoberta da traição Fernando será movido por outra obsessão: achar o amante de sua mulher e vingar-se dele. Outro grande ponto alto em ‘Minha Amada Morta’ surge do fato de não só ele encontrar o amante, mas se aproximar dele ao ponto de alugar a casa dos fundos onde o homem mora com sua mulher e duas filhas e passar a conviver com eles. Muritiba cria uma relação de extrema tensão entre os dois personagens, Fernando e Salvador (o amante da mulher morta), bem como dele com todos os membros a família. Cada nova situação, cada cena que se segue vemos Fernando agindo friamente em seu plano de vingança, que em momento algum sabemos qual será e como se realizará. Surgem vários momentos em que a tensão criada na cena sugere que o marido traído pode matar Salvador, tudo em cena vira uma arma em potencial, cada vez que vemos os dois sozinhos nos parece um momento perfeito para a consumação violenta da vingança, mas ela nunca chega e Fernando segue obsessivamente em suas ações. Aproxima-se da filha adolescente de Salvador, tenta seduzi-la e tornar-se seu confidente, passa a frequentar a igreja evangélica da família e vai ao ponto de mostrar à esposa de Salvador o vídeo em que ele a mulher de Fernando fazem sexo, além de também tentar seduzi-la. Tudo isso funciona como elementos potencializadores das tensões e como picos dramáticos e impulsionam na construção de um suspense psicológico muito bem conduzido e orquestrado pela encenação de Muritiba.
A relação de Fernando e Salvador é sempre movida pela ameaça, pelo desconforto e pela maneira agressiva e misteriosa com que Fernando se posiciona e interage com Salvador. A relação do protagonista com a esposa e a filha adolescente do amante de sua mulher é de notável carga erótica. Aly Muritiba carrega na força e na significação dos gestos, dos olhares, dos diálogos (muitas vezes interrompidos bruscamente por Fernando), no tom de voz com que os personagens falam. A composição dos quadros, o uso dos primeiros planos e das relações que se estabelecem com os planos de fundo (sempre seguindo funcionalmente para compor em imagens as sensações do protagonista), a construção dos espaços, tudo ajuda a fazer de ‘Minha Amada Morta’ um belo filme de climas, onde a tensão e as incertezas contaminam cada sequência e criam fortes expectativas ao que está por vir.
‘Minha Amada Morta’, construído em cima da meticulosidade com que Fernando conduz suas obsessões caminha como um filme próximo ao cinema de crueldade, aquele que não busca nenhuma forma de conciliação. Embora Muritiba não faça de seu filme um claro exercício do cinema da crueldade – preenchendo a narrativa com arestas que indicam outras possibilidades além de uma vingança clássica -, o desfecho, com a presença de um leve e distante processo reconciliatório pode desagradar aqueles que esperavam a materialização do conflito, a consumação da violência que esta embutida em todo o longa. Essa sutil conciliação sugerida no desfecho não necessariamente significa que para Fernando ele não tenha completado seu processo de vingança (não existe a certeza, mas o gesto final de Fernando em relação a Salvador pode muito bem ser visto como a conclusão ou interrupção de seu projeto de retaliação e uma forma de suspender sua obsessiva busca por reparação). Nunca nenhumas de suas intenções ficam claras, o personagem é sempre composto de texturas existenciais que fogem do lugar comum e jamais somos capazes de saber aquilo que ele realmente deseja. Esse desfecho, com a não eclosão do conflito direto está longe de ser um problema, tem sua intensidade dramática e significativa de acordo com as expectativas e processos de recepção de cada espectador.
O que é claro no filme – e também um de seus pontos altos – é como Fernando tenta reconstituir sua vida antes da morte da mulher, num desejo obsessivo primeiro em mantê-la presente com seus rituais com as roupas, sapatos e fotos da morta, depois quando o processo da obsessão se torna a aproximação e a provável vingança do amante. Todas as suas ações, seus estados emocionais são dedicados a por em prática atos, processos meticulosamente realizados dentro de uma lógica quase paranoica para trazer de volta não só sua mulher morta, mas como construir uma realidade diferente, criar novos motivos para viver e ter em o que acreditar. São por meios de suas obsessões que ele procura preencher um vazio e uma angústia intransponíveis. Aly Muritiba realiza um filme direto, composto com sofisticação e densidade dramáticas, estruturais e narrativas, trabalha dentro dos elementos do thriller psicológico, do filme de vingança, ou seja, dentro do cinema de gênero, mas faz isso com honestidade e coerência e realiza um filme raro no Brasil, por estar inserido dentro desses elementos e trabalhá-los de maneira criativa, priorizando aquilo que deseja tanto na forma quanto no discurso. Evita choques e surpresas fáceis para manipular o espectador e dá a quem assisti ao longa todas as liberdades de como absorver, interpretar e assimilar seu material dramático e narrativo. Um filme poderoso, em que suas qualidades superam eventuais fraquezas.